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quarta-feira, março 22, 2006

Vi e gostei

«Cristo(s) e a Transcendência» - Exposição de Pintura de Artur Bual.

Também estive na inauguração da exposição de pintura e desenho de Artur Bual, sob o título de «Cristo(s) e a Transcendência», na Sala do Recibo do Mosteiro de São Martinho de Tibães, organizada pela Paróquia de Mire de Tibães, pelo Mosteiro de São Martinho de Tibães e pelo Museu Pio XII.
Uma pessoa que tenha recebido o postal de convite não vai a contar pisar o quadro que o mesmo postal reproduz, uma pintura que representa a «piétá», a Mãe com seu Filho nos braços, descido da cruz, em posição rígida de cadáver estendido, num equilíbrio precário de corpo abandonado, completamente exposto na sua nudez de sacrificado até à exaustão de sangue e de formas. Os apagamentos voluntários dos rostos, quer de Maria, quer de Jesus, estão no contexto figurativo de construção gestualista e visceral da pintura, com sobreposição caótica de manchas e de traços, mas onde predomina a vermelhidão sanguínea, coagulante e saturante, progredindo lentamente para um brilho luminoso e dourado que encima o quadro como zona de libertação visual.
É este quadro que se pisa, em reprodução, claro está, na subida dos poucos degraus que dão para a Sala do Recibo. Creio que este calcamento foi propositadamente provocado, como medida indutora de reflexão, mas a posteriori, ou seja, o visitante passa e pisa a pintura, pode sair até sem se aperceber que o fez, mas se se der conta cai noutra conta maior e reflecte, entrando muito provavelmente na dimensão pastoral que a paróquia, por ser organizadora, quis investir nesta exposição: o sentimento de culpa ganha alguma densidade narrativa e mergulha na história que se conhece, trazendo para a memória as tradições narrativas que encheram a infância e que fazem ainda parte do imaginário da Quaresma e da Semana Santa: a ideia de Cristo ter sido e ser continuamente espezinhado por todos nós.
Aqui lembrei-me da minha inibição infantil de perfurar a terra durante a Semana Santa, fosse com piões, fosse com sachos ou com os pés.
Todavia não é só nesta dimensão pastoral e catequética que o investimento museológico pretende ganhar, mas na própria construção estética da exposição: o visitante visita-a num percurso marcado a vermelho e dourado, o tal vermelho sangue e o tal dourado solar que, potenciados pela iluminação cuidada, configuram os arquétipos do sacrifício e da ressurreição cristãs, mas que são também os meios extremos de todo o imaginário religioso: a carne e o céu, a terra e o sonho, o sujo e o limpo, o desejo e a acção, a morte e a vida.
Que a exposição destes quadros de Artur Bual, pintor, escultor e ceramista nascido em Lisboa em 1926 e falecido na Amadora em 1999, tenha o título que tem «Cristo(s) e a Transcendência», com aquele «s» metido ali para referir as pinturas e os desenhos, é outra dimensão que mistura as funções estéticas e as funções religiosas num propósito de abrir perspectivas de conversa e de reflexão: os Cristos não variam assim tanto de aspecto ou de posição ou de enquadramento, mas variam de perspectiva pictural, ou seja, mudam em função da organização do quadro, sendo este diversamente trabalhado num estilo modernista de traços e manchas caóticos, de orientações incisivas e agressivas, conflituantes e perturbadoras, recorrendo a processos de colagem e a processos de saturação.
Meti aqui a palavra «modernista» no sentido de pintura gestual, ainda que figurativa nos seus princípios, mas sobretudo expressionista de estados de espírito, tradutora de conflitos interiores e de pulsões inconscientes ou não verbalizáveis, mas sobretudo porque este termo contrasta nitidamente com um desenho e um quadro que estão nesta exposição e que são datados de 1943, teria o pintor os seus 17 anos, revelando um outro estilo, o clássico, na tradição da pintura hierática, balizada pela naturalidade de construção, numa sugestão do Cristo humano demasiado humano como nós.
E é dentro destes dois estilos em confronto que a exposição ganha leitores, estou certo, até porque é esta mudança radical da representação que precisamos de re-interpretar, trazendo à liça as mudanças que vivemos desde os anos quarenta, quer nos quadros mentais do conhecimento, quer nos próprios percursos individuais dos artistas.
É muito fácil trazer para esta exposição o filme ainda bem presente de Mel Gibson sobre a paixão de Cristo.
As palavras de apresentação do padre Adelino Ascenso, que conviveu muito de perto com Artur Bual, e que já as pensara e escrevera para a exposição destes mesmos quadros na Igreja Matriz da Amadora em 2005, reforçaram também estas duas vertentes que a exposição, em contexto da Semana Santa Bracarense, quer abordar: a pastoral libertadora da fé cristã e a liberdade da criação artística, vertentes estas que se conseguem tomando ambas a liberdade de incomodar quem vê e quem ouve e quem segue e quem acredita.
Que Artur Bual se revela como artista ávido de sempre mais liberdade criadora, ganha sentido neste tempo e nestes dias de marcados fundamentalismos, até gráficos. Aqui lembrei-me de um quadro, de uma pintura de Nuno Barreto, em que o Cristo na Cruz está guardado pela polícia de choque, sim, a nossa, e lembrei-me também da recente e ainda não resolvida questão dos «cartooms» dinamarqueses sobre Maomé. E fiquei feliz pelo fulgor da liberdade criativa de Bual num tema tão tradicionalmente convergente em termos da representação de Cristo. Como disse o Padre Ascenso, num e noutro caso, numa e noutra vertente, a verdade é o relâmpago que o profeta ou o artista fazem brilhar no escuro, de uma alma, ou de um quadro.

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