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quinta-feira, março 09, 2006

Leitura de livros

As Palavras sabem a terra, poesia de Fernando Aldeia, pseudónimo literário de Ferreirinha Antunes, transmontano radicado em Braga mas nascido e criado em Vinhais e Bragança, editora ausência, Vila Nova de Gaia, 2006.

Este livro foi lançado formal e publicamente na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva em Braga há três semanas, mas vai agora ser lido e reinterpretado transmontanamente na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro em Braga no próximo dia 11 de Março, às 17.30, numa sessão cultural que será orientada crítica e literariamente pelo Doutor José Cândido Martins, da Universidade Católica, com leituras de textos e com música clássica ao vivo, para despertar sentidos, avivar memórias e fomentar entusiasmos – tudo em nome da vida, antes de mais, que o livro é um testamento de valores e de apreciações éticas e poéticas sobre o nosso tempo e sobre a evolução dos nossos hábitos de o viver.
A reinterpretação transmontana é um acto de leitura possível como qualquer outro e que, no caso desta obra, favorece um pouco mais a sua intenção cosmopolita de atravessar fronteiras e de aproximar imaginários. Até porque o autor nos conduz por espaços muito divergentes: a aldeia interior, a cidade marítima, o solo africano. Mas este tipo de reinterpretação escuda-se em linhas de sentido que o poeta mantém acesas ao longo de todo o livro: a consideração do tempo, enquanto clima, e a consideração da terra, do terreno e do território, enquanto força motriz. Não há quase poema em que não esteja presente a criação poética sobre o clima, e não há quase poema em que não se apele à superação dos constrangimentos territoriais. Que um transmontano não vive sem a variação verbal contínua sobre a repetição destes dois factores, só quem lá nasceu o sabe dizer melhor.
Dispõe-se o poeta, um intensivo praticador da «palavra adjectivada» a partilhar connosco, com os leitores, o entusiasmo pelo sonho, pela utopia de a nossa terra, o nosso lugar, ser o centro irradiador de sentido humano, espiritual, gerador de transcendência e de superação de limitações economicistas, bélicas ou politicamente oportunistas.
O poeta fez-se homem, socializou-se num ambiente físico e humano de constrangimento de recursos, mas amadureceu na companhia de outros poetas sonhadores como ele, Sophia de Mello, Eugénio de Andrade, Miguel Torga, Fernando Pessoa, entre outros que são citados e referidos, e esta companhia aumentou-lhe os argumentos da esperança numa terra mais digna e mais compensadora.
O poeta mobiliza-nos para uma linguagem de sabores primitivos, iniciáticos, rituais, quase sempre provados na infância, também renovados na idade adulta e sempre presentes numa memória de sensações genuínas, incorruptas, geradoras de uma percepção do mundo e da terra como sítios de criação: as fragas, o vento, a chuva, os pássaros, o rio, o restolho, o mosto, os socalcos, o olival, a serra, o mar, o céu, o vinho, o pão.
A que lugares regressamos na hora de um balanço sobre as nossas vidas? À casa dos pais, ao pai, à mãe, à fonte, ao rio, à terra, aos seus sabores. Se há um paraíso como ponto de partida, há-de por força haver um paraíso de chegada. O poeta faz-nos crer que sim, mesmo quando carrega numa adjectivação crua sobre os negócios do mundo e as situações mais angustiantes do homem. Pode retardar-se a ressurreição, mas alguém acredita que ela será inevitável.
Fernando Aldeia é um poeta cantante dos afectos imprescindíveis à vida comum, quotidiana, ciente de que esses afectos se acumularam ao longo da história deste país e nos projectam optimismo, esperança, ânimo. Num tempo de modismos e de insinuações críticas, mergulhadas numa visão contínua de crise e de oportunismo, lemos neste livro um poeta seguro do seu património verbal como valor solar, alegre, azul, livre.
As memórias dos amigos que partiram, Sebastião Alba, mestre José Veiga, e as reflexões sobre os lugares e as situações de fascínio como o rio, o mar, o pão, a margem, o Verão, o Outono, a chuva de Maio, a infância, o Natal, Moçambique, ocorrem como criações simultaneamente poéticas e narrativas dos mesmos valores e sentimentos que os poemas deixaram vincados: a gratidão, a esperança, a justiça, o convívio, a partilha, a solidariedade.
Por fim, a palavra do poeta abre para o erotismo como tema recorrente do desejo à felicidade e ao bem-estar pessoais, mas também como tema recorrente do êxtase e da conciliação com a natureza mãe e com os seus elementos primordiais, e ainda como tema recorrente da expressão dessa liberdade criadora que é a essência do poeta enquanto geradora de novas geometrias, portanto de novos espaços e de novos seres. José Machado, Braga, Março de 2006.

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