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terça-feira, junho 23, 2020

S. João em tempo de pandemia.

Aqui fica a cantiga que criei e que o meu grupo interpreta para celebrarmos as festas sanjoaninas na cidade de Braga neste tempo de pandemia. A festa foi suspensa, celebra-se nas redes sociais e no distanciamento físico possível e desejável.

S. João em tempo de pandemia

Vamos botar uma cantiga
Em louvor de S. João
O nosso tempo assim obriga
E a pandemia é a razão

Ó S. João inspirador
Dos excessos da folia
Dá-nos um dom cuidador
Dá-nos a sabedoria

Ó S. João propiciador
Do nosso divertimento
Dá-nos um dom cuidador
Dá-nos o conhecimento

Ó S. João motivador
Das paixões da mocidade
Dá-nos um dom cuidador
Dá-nos criatividade

Ó S. João regulador
Da festiva animação
Dá-nos um dom cuidador
Dá-nos a ponderação

Ó S. João anunciador
Do sentido da esperança
Dá-nos um dom cuidador
Dá-nos a perseverança

JM / Braga/ 2020

Trata-se de uma composição musical com letra e música de José Machado, construída no tempo e modo de chula minhota, com arranjos de harmonização e criação de estribilho separador melódico da autoria de Daniel Pereira Cristo. Na gravação intervieram elementos da Associação Cultural e Festiva «Os Sinos da Sé», com vozes e instrumental: concertina, clarinete em dó, braguesa, cavaquinho, castanholas. O Daniel foi responsável pela introdução da gaita-de-foles e do bandolim, criou a percussão, reforçou as cordas e também cantou. A poética cruza a linguagem popular com a dos valores religiosos, numa perspectiva humanista que integra, na dimensão do louvor ao orago S. João, a oração com súplica dos dons intelectuais e emocionais imprescindíveis ao entendimento e à superação de momentos difíceis, como é o caso da pandemia COVID 19. O separador ou estribilho instrumental confere à cantiga uma aproximação aos hinos ou marchas de celebração eufórica das emoções. Deseja-se que esta cantiga possa mobilizar os ouvintes para uma coreografia de rua, tanto a nível individual como a nível de grupo, salvaguardadas as distâncias que as orientações de saúde aconselham neste momento. Assim, quem dançar poderá, em passo de chula ou de malhão, rodopiar sobre si próprio, seguir em frente ou recuar, abrir os braços e imitar movimentações mais contemporâneas de voo, abraço ou devaneio pessoal de saudação e euforia.

Ficha técnica
Autor da letra e da melodia: José Machado (Associação Cultural e Festiva «Os Sinos da Sé»)
Arranjos e separador instrumental: Daniel Pereira Cristo
Mistura e Masterização: Hélder Costa

Executantes: Daniel Cristo, Henrique Viana, Luís Silva, José Machado, Fernando Faria, João Fernandes, José Faria, Hermínia, Albertina Fernandes, Joana Sofia, Ilda Barros, António Machado, António Teixeira, Casimiro Pereira.


sábado, junho 13, 2020

Viver as tradições em liberdade, com vírus, com riscos, com medos e com decisões

Braga nas Tradições

Viver as tradições em liberdade, com vírus, com riscos, com medos e com decisões

O título que resume o tema desta crónica não vai no sentido de saber interpretar a virose que originou a pandemia COVID19, mas inspira-se no seu imaginário para considerar que as nossas práticas culturais ditas tradicionais requerem a sua vivência em liberdade, posto que nelas e por elas se transmitem todos os vírus que as podem condicionar e desenvolver, posto que nelas e por elas se assumem os riscos de prosseguir ou de mudar, posto que nelas e por elas se expressam os medos e as fantasias, posto que nelas e por elas se tomam as decisões de realização e de cumprimento dos eventos mais díspares. 

Pressuponho que o leitor interrogue aqui os conceitos de práticas culturais tradicionais e que peça a explicitação dos vírus, dos riscos, dos medos e das decisões. Dá sempre jeito tomar um exemplo de alavanca: o comboio servirá o efeito. 

Quando William Thoms cunhou para o léxico dos povos a palavra folclore, deu como prova eminente o perigo que a representação do comboio então já possuía, nos caminhos do progresso tecnológico e social: as viagens de comboio tornar-se-iam tão prementes e consistentes que acabariam por fazer desaparecer as características singulares da cultura ou maneira de pensar dos povos que até então apenas se deslocavam a pé ou a cavalo ou de barco, num modo lento e em concordância com as regras naturais do clima e dos ciclos agrícolas e comerciais. O comboio, e os demais inventos tecnológicos que começavam a surgir por todo o lado, vinha acelerar tudo. 

Ortigão de Sampaio, aqui no Norte, no seu jornal «Alvorada» conclamava que o progresso trazia consigo uma outra dimensão de velocidade que não dependia apenas dos jornais ou dos telégrafos, ou dos telefones ou dos comboios. Dizia ele que na sua região, ali naquele círculo limitado de Delães, Riba D’Ave, Famalicão, ainda não tinham chegado os artifícios do progresso e já no ar andavam todas as transformações de costumes e de modos de pensar tradicionais. Também Camilo Castelo Branco propusera, uns anos antes, mas por via do que se esperava que o comboio alcançasse para os povos, que os pilares da civilização assentavam no romance, na viabilidade e no fluido transmutativo. 

O que sejam as novidades que vêm pelos ares ou o que seja este fluido transmutativo que é fundamento da civilização é que nos aproxima das viroses, considerando que os agentes que as provocam não se vêm nem se calcula que existam até aparecerem e depois tudo condicionam e arrastam. 

Pois bem, se considerarmos aquele tipo de práticas culturais que tomamos por tradicionais, como sejam, por exemplo, as romarias, as músicas do folclore, as práticas religiosas, a linguagem coloquial, as nomeadas e as toponímias, havemos de interrogar-nos sobre os vírus que as desestabilizam, que as corroem e alteram, que as obrigam a adaptações de todo o tipo. Vírus como o da curiosidade de saber onde está o grau de pureza ou de autenticidade de uma cantiga, onde está a identidade nacionalista ou local de um costume, onde assenta o princípio da normatividade de uma frase. Basta uma interrogação e a doença alastra. Mas se ficarmos pelo nível dessa instância de criação de sentido que são as culturas populares, os riscos e os medos associados às suas criações e à sua estabilidade de alcance fazem-nas andar numa corrida pela sua adaptabilidade, pela sua actualização: como saber da estabilidade de uma moda ou de uma tendência? Como saber da coerência do politicamente correcto? Como saber da verdade de uma opinião? Como saber da actualidade de um repertório? Andando, se faz caminho e as decisões terão forçosamente de assumir os caminhos percorridos e a percorrer. Poderemos perguntar sempre: para onde vamos? Onde queremos chegar? A consistência das decisões radica na firmeza dos propósitos e nos conhecimentos reunidos. 

Esta pandemia traz-nos uma sugestão de caminho a fazer que é o de testarmos constantemente. Mas como estar, em cultura, se não cumprirmos, se não actuarmos, se não criarmos?