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quinta-feira, março 09, 2006

amostras e fil�es

amostras e fil�es
Um incidente escolar
O incidente escolar entre alunos da escola Francisco Sanches e alunos de uma turma da escola de Tadim, que se deslocara a esta escola para ver a exposição de desenho e gravura de Escher, deve fazer-nos reflectir.
Ainda presenciei algumas cenas de desafio verbal e visual, não assisti às cenas de pontapés e outras agressões verbais e gestuais que me disseram ter existido antes, também tive um pequeno momento de diálogo com os alunos dos dois lados, com os de Tadim foi de curiosidade e de alerta, mas com os da nossa escola foi de censura e de reparo, alguns e algumas tinham sido já meus alunos no 5º e 6º anos, censura e reparo que pouco ou nada adiantaram, como pude constatar, ainda que o conflito nessa altura já estivesse quase sanado.
Os alunos do 9º ano das duas escolas encararam-se como rivais e trataram de se desafiar, não importa quem começou nem quem fez o quê ou disse isto e aquilo, mas as duas «tribos escolares», usemos esta terminologia, não viram melhor meio para se conhecerem que não fosse este caminho iniciático e ritual da agressão verbal, gestual, física até, incluindo aqueles tiques de cobra cuspideira.
Recuei à minha infância quando, entre desconhecidos, nos desafiávamos a ver quem era o primeiro a chegar a sua saliva à cara do vizinho, antes de medir forças. Recuei aos meus tempos de passeios escolares por outras escolas e revi-me envolvido em cenas do género, só verbais é certo, mais por razões de tempo e de costumes e menos por razões de educação ou de vontade. Pensei nas claques futebolísticas, pensei nas claques de aplauso e de dinâmica concursiva, pensei até nos partidos que disputam eleições: em todas estas cenas ou filmes de memória verifiquei o clima de desafio e de agressão verbal, gestual e simbólica entre as partes, como que a reviver o mito da superioridade de uns sobre os outros, como que a disputar os territórios de pertença e de visita ou invasão.
Lembrei-me ainda das chegas de bois barrosões, lembrei-me até dos cantadores ao desafio, lembrei-me do hip-hop e por aí fora, separei gente e limpei sangue, acudi a quem pude e a quem não pude, deixei bater, deixei passar. Foi sempre assim, ainda é assim, a educação, ou melhor, a civilização pedagógica não consegue limpar estes rituais de socialização.
Mas o facto é que eu já me esquecera há muito deste tipo de cenas, julgava-o mesmo caído em desuso, por ser considerado bárbaro, resquício de primitividade instintiva e animal, próprio de processos identitários esquizofrénicos ou deturpados. Convencera-me que a moral e a civilidade se teriam ocupado da catarse destes rituais e os teriam já superado pela convivialidade e pela cidadania da tolerância.
Ou seja, ao fim e ao cabo, eu convencera-me de que a escola cumprira o seu papel de educadora, até pela inércia educativa dos programas e das disciplinas e das áreas não disciplinares, já que estas terão vindo para visar até as temáticas da cidadania.
Não obstante, os alunos do 9º ano agrediram-se, intimidaram-se, uns e outros de ambas as escolas alcunharam-se de bonitos e de feios, os de cá mandaram os outros para a terra deles, os outros apelidaram os de cá de convencidos e xenófobos. Xenófobo é precisamente aquele que rejeita os de fora, por estranhos, por invasores do território.
Explicar aos alunos que estes comportamentos preenchem o código instintivo de uma socialização tipicamente defensiva e autista, mas que são a viragem negativa do desejo de conquista e de sedução, impunha-se na minha relação com eles, mas não fui oportuno nem convincente. Ao fim e ao cabo os alunos de uma e de outra escola manifestaram a inveja e o ciúme, jogaram no mais feroz dos egoísmos. Mas o que me fere neste caso é precisamente esta ideia ter sido assim e não ter sido de outra maneira, pelo lado do cumprimento, da saudação, da companhia, da troca de informações, da troca até de telefones e de contactos. Pois é precisamente de contactos e de trocas culturais que estamos a precisar, é de encontros amigáveis, é de abertura de janelas. Mas as coisas nunca são como a gente as vê, que o prova Escher, o artista que os alunos foram afinal desafiados a ver e a compreender.

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