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segunda-feira, agosto 24, 2020

Acumular valores para nossa reinvenção cultural

Em louvor dos 80 anos de vida do grupo Folclórico das Lavradeiras de Santa Marta de Portuzelo: 1940-2020

II 

Em resumo, estes cinco descritores, que agrupamos numa díade conceptual, podem satisfazer a definição de grupo folclórico: iniciativa e liderança, composição e habilitação, identidade e missão, representação e mérito, repertório e dinâmica.[1]

Donde apareceu este tipo de associativismo, este formato de unidade cultural, esta célula do desenvolvimento local? Que raízes tem no passado e que vectores adquiriu com a modernidade? A meu ver, este tipo de sujeito colectivo da animação cultural, esta pessoa colectiva, tem raízes nos meios e processos de representação cultural que se verificaram em todas as sociedades para gerirem as celebrações e as distracções, para implementarem os momentos festivos e para acompanharem as funções religiosas. As mesmas razões para a génese do teatro, da coralidade, da música instrumental, da poética, da arte de rua, das récitas e dos espectáculos, das romarias, dos jogos, etc, satisfazem com explicações a génese dos grupos folclóricos. Neste sentido, os grupos folclóricos ganham lastro histórico e podem perfeitamente ir beber origens em movimentos de representação do poder real ou do poder de senhorios nobres e religiosos, podem perfeitamente reinvindicar, para fundamentação de conteúdos repertoriais, as práticas culturais e recreativas que a sociedade barroca produziu, por exemplo. Qual a cantiga popular de amor que não vai beber ao imaginário trovadoresco, por exemplo? Qual o cantar ao desafio que não vai beber aos cancioneiros de escárnio e madizer ou aos cantos goliárdicos? Qual o cortejo etnográfico que não vai beber às exposições ou paradas da modernidade? Qual o desfile que não se inspira nas procissões ao longo da história?[2]

A variedade de pretextos para os grupos folclóricos se formarem também revela as razões que os definem: as práticas agrícolas de entreajuda, os desfiles festivos, as embaixadas de representação do poder, a organziação dos momentos de lazer, os concertos, os grupos de romeiros, os poetas e músicos ambulantes, os cortejos de oferendas para obras, etc. A simples enunciação de que um grupo folclórico é uma amostra da aldeia para apresentar as músicas, as danças e os trajes que se usavam num determinado espaço de tempo, contém em si a resposta aos descritores que apresentámos acima. Este intuicionismo foi acompanhado, desde muito cedo, por trabalhos de etnografia e de antropologia que acumularam, desde Garrett, para fixarmos um momento muito próximo da invenção da palavra folclore, uma extensíssima base de conteúdos culturais.[3]

Mas, embora com enraizamento em várias iniciativas do passado (sirvam de exemplo as embaixadas reais a outros povos para celebração de casamentos, ou os bailes e agrupamentos músicos que participavam nas procissões e desfiles durante o período barroco), a criação e o desenvolvimento dos grupos folclóricos são a concretização dos estudos teóricos sobre a identidade dos povos que a modernidade estimulou e acelerou e que os meios tecnológicos do progresso permitiram consolidar: a fotografia, a pintura, a aguarela, o cinema, o museu, a galeria, a monumentalização, a peregrinação, a visita de estudo, a missão de recolha, a edição ilustrada, a imprensa, os saberes curriculares. Estes meios estão hoje a ser redescobertos e mobilizados para «refundação» de orientações, para «revisão» de perspectivas, num movimento que nem sempre  evita tendenciosismos e pressupostos ideológicos precipitados. Somos de opinião que um grupo folclórico, hoje com acesso a um caudal de fontes de informação que a diacronia possibilita, requer cada vez mais atenção e estudo e constitui um desafio cultural pleno de potencialidades nos processos de desenvolvimento local e regional. [4]

A corrente cultural que inspirou a fundação de grupos folclóricos há mais de cem anos tinha adquirido ao longo do século XIX uma força excepcionalmente inspiradora em dois movimentos transformadores do sentido civilizacional: um decorrente das invenções tecnológicas que acabariam por se impor como aquisições absolutas e imprescindíveis do progresso social, a máquina a vapor, a electricidade, por exemplo, outro decorrente das concepções políticas de carácter nacionalista, patriótico e independentista. Estes dois movimentos teceram em si mesmos, de modo diferente, essa corrente de estudos e de realizações a que chamamos cultura tradicional ou o folclore: o primeiro pareceu virar-lhe as costas e ultrapassá-la com um transformismo social acelerado, o segundo recuperou-a para sustentar precisamente os valores de identidade nacional.

A leitura dos textos de Almeida Garrett, em Portugal, e a invenção do conceito de «folclore», por William Thoms,[5] em Inglaterra, darão ao leitor um substracto fundador ao que acabo de afirmar, farão perceber esta tensão entre o progresso e a tradição que esteve e está ainda presente nos programas de transformação política e social em todos os países do mundo. [6]

Precisamente num tempo que ficou marcado pelo aparecimento de recursos e agentes transformadores da vida dos povos, decorrentes dos progressos científicos e tecnológicos, os mesmos povos reagiram com todas as forças ao levantamento de valores culturais, literários, patrimoniais, etnográficos, etc. no sentido de os transportarem para o futuro como bens simbólicos, como motivos contrastivos, mas complementares, dos novos modos de vida. Um sentido agudo desta problemática fez-se sentir em torno das dinâmicas de desenvolvimento, rurais e urbanas.

Outra área sensível em que este embate de valores se verificou foram as guerras nacionalistas e as guerras mundiais para as quais se mobilizaram valores patrióticos profundamente enraizados na cultura dos respectivos povos. Até nos países onde se verificaram revoluções violentamente alteradoras do paradigma ideológico até então dominante, esta tensão entre o progresso e a tradição se mobilizou como problema a resolver no ajuste de contas entre vencedores e vencidos.


[1] Embora fundado em 1940, a escritura deste grupo fez-se em 15/06/1981 no Cartório daa Secretaria Notarial de Viana do Castelo, definindo-se a associação com fins de «agrupar cidadãos de ambos os sexos, tendo como finalidade a dinamização de actividades artísticas e recreativas». Em termos de condições essenciais para a admissão , declarou-se «todas as pessoas de qualquer idade, residentes ou não em Portuzelo, que se submetam a cumprir os estatutos, mediante pedido de admissão».

[2] Para melhor entender estas questões e as respostas possíveis, aconselho a leitura de quatro artigos que publiquei no Correio do Minho, na rubrica «Braga nas Tradições», os quais podem ser acedidos no meu blogue https://mineirodejales.blogspot.com/.  Nesses artigos faço uma leitura crítica da obra de  Maria BARTHEZ, Memória de Francisco Lage, da prática à teoria, Gradiva, Braga, 2019:

- https://mineirodejales.blogspot.com/2019/10/as-contas-que-vao-ficando-por-fazer-o.html

- https://mineirodejales.blogspot.com/2019/11/o-estado-novo-e-cultura-popular-2.html

- https://mineirodejales.blogspot.com/2020/01/o-estado-novo-e-cultura-popular-3.html

- https://mineirodejales.blogspot.com/2020/01/o-estado-novo-e-cultura-popular-4.html

 [3] A variedade de pretextos continua ainda hoje num acumular de iniciativas que motivam e estimulam a organização dos grupos.  Vejamos, por exemplo, como esta continuidade de práticas performativas, em que os grupos folclóricos se encaixam sempre com os seus trajes e as suas músicas e coreografias, se mantém hoje em dia no âmbito geocultural das festas de Viana do Castelo: Festa das Colheitas, Cortejo etnográfico com variação temática e com ocorrência em ciclo festivo, Concursos para o Guiness, Formações massivas de dançadores para fins de promoção ou criação de imagem: o coração de Viana, Participações em festivais informais e nas actividades de outros grupos, Integração em projectos estéticos de outras instituições ou agentes artísticos, Concepção de espectáculos temáticos (as rosas, a vinha, o ciclo do linho), Escolas de formação com ensino de música e de dança e de criação artesanal, Quinta de Santoinho, Irmandades ou Geminações com cidades e países estrangeiras, Turismo: eventos variados, colaboração com Conjuntos, bandas, orquestras.

- Os prémios, os concursos e a organização dos cortejos também determinaram o desenvolvimento dos grupos: Sobre prémios aos melhores trajes regionais, oferecidos pelo Conselho Nacional de Turismo, ver jornal A Aurora do Lima de 18 de Agosto de 1939, «A Festa do Traje Regional».

- Sobre «O Cortejo Etnográfico» de 1948, em Viana do Castelo, no centenário da cidade, onde se refere que o primeiro tinha sido em 1935, ver Mensário das Casas do Povo, nº 27, Setembro de 1948.

[4] Recuemos a Janeiro de 1884, ano I da Revista de Guimarães para verificarmos como esta missão de recolha das nossas tradições populares já constituía um encargo de conhecimento para os estudiosos das mais variadas proveniências académicas. Os desafios ou diálogos entre cantador e cantadeira já aparecem registados, bem como as adivinhas cantadas, a pesquisa dos dialectos locais e regionais, as sínteses descritivas, como esta, por exemplo: «De todas as províncias portuguesas, (o Minho) é talvez a única que se veste de cores garridas e variegadas, especialmente as mulheres: apenas na Maia predomina a cor preta nas saias; em todos os outros cantões as cores preferidas são o branco, o vermelho, o amarelo e o verde, misturadas nas diferentes peças do vestuário. As músicas verdadeiramente locais, como a chula e a cana-verde, são alegres, como uma nota viva e cheias de esperanças, que faz esquecer por um instante a imaginação das suas preocupações utilitárias.» (…) Na província há ainda hoje pela festa dos Reis autos-sacros, chamados reisadas: actores e compositores são indígenas. Quem percorreu a província tem ouvido os improvisos (descantes) acompanhados pela viola, rebeca e clarinete, assim como a flirtation (o namoro) em verso rimado.» (Revista de Guimarães, Vol. II, 1885, pp. 223-224)

[5] Sobre o trabalho de William Thoms, a quem se atribui a invenção da palavra «folclore», consultei recentemente Narrating The (Trans) Nation : The Dialectics of Culture and Identity, Edited by Krishna Sen & Sudeshna Chakravarti, onde li o artigo «"OUR NATIONAL FOLK-LORE" : WILLIAM THOMS AS CULTURAL NATIONALIST», por Jonathan Roper, Senior Research Fellow in English and Comparative Folklore do Department of Estonian and Comparative Folklore, o qual sintetizo: Thoms fundou em 1899 a revista Notes & Queries , mas já tinha cunhado como criação sua o termo folclore que escreveu Folk-Lore em 1846; a revista apelava a que as pessoas, os estudiosos, os curiosos, os investigadores, contribuíssem para o estudo de "as maneiras, costumes, observâncias, superstições, baladas, provérbios, etc. dos velhos tempos". Num segundo apelo visa a preservação das lendas ou da sabedoria lendária da terra pátria;  num terceiro apelo já visa o folclore nacional da Grâ-Bretanha. A sua grande fonte de inspiração é o trabalho dos irmãos Grimm na Alemanha, trabalhos aparecidos ente 1819-1822-1830 (ano em que lê em alemão a Mitologia alemã) obra que ele considerava mais próxima da obra do inglês John Brand Popular Antiquities, embora de qualidade muito superior em termos de exposição e tratamento dos materiais recolhidos. Thoms não fez recolhas de campo, pediu que lhe enviassem materiais, apelou a que outros recolhessem e lhe enviassem os apontamentos; estes apelos foram em, 1836, 1846  e 1850. Thoms não teve o êxito que esperava mas o sucesso deve ver-se na relação que a Inglaterra nacionalista e imperialista teve com as tradições; neste artigo fica-se sensível á análise dos estudos sobre o folclore distinguindo por exemplo a importância que se dá aos conceitos de povo e de folclore e a crítica que se faz aos sujeitos ou casos individuais que o estudam e abordam.

[6] Sobre as concepções de «folclore» muito se terá de compreender. Deixamos aqui um registo sintomático de como noutras paragens esta questão se tornou, muito cedo (1942), determinante para a orientação dos estudos e das práticas culturais, ao mais já se tinham passado quase cem anos desde os apelos de Garrett e dos estudos de William Thoms. A propósito de folclore e seus conceitos, aqui vai um breve apontamento da leitura do livro  de John Szwed sobre Alan Lomax (1915-2002), O homem que gravou o mundo (versão Kindle, 2010): «Uma das primeiras reuniões académicas importantes sobre o estudo do folclore foi a “Conferência sobre o Carácter e o Estado dos Estudos em Folclore”, patrocinada pelo Conselho Americano de Sociedades de Instrução e realizada na Universidade de Indiana nos dias 11 e 12 de Abril de 1942. Alan Lomax foi um dos oradores mais jovens de uma sala cheia de alguns dos estudiosos mais conhecidos do mundo, muitos dos quais pensavam no folclore como apenas um meio de entender o passado. Em sua palestra, ele expôs uma visão do folclore que estava o mais longe possível da concepção do folclore como antiguidade ou modo de expressão do antigo. O folclore, disse ele, deve ser entendido como o assunto definitivamente interdisciplinar, tão complexo que requeira linguistas, sociólogos, antropólogos, músicos e estudiosos da literatura; de facto, departamentos universitários inteiros devem ser dedicados ao seu estudo. O folclore foi o produto simultâneo de artistas individuais e da comunidade em que eles funcionam, e o seu estudo adequado deve incluir autobiografias de artistas folclóricos e leituras aprofundadas de seus repertórios, bem como deve incluir estudos em toda a comunidade sobre o que o folclore significa para as pessoas e como funciona nas suas vidas. Estudos etnográficos comparativos e estudos históricos entre regiões, países e o mundo, devem ser o próximo passo, com estudiosos buscando padrões e descobrindo os princípios que governam o folclore. Isso constituiria uma ciência do folclore. Para aqueles estudiosos que ficaram felizes em passar a vida classificando e ordenando itens escritos do folclore como coleccionadores solitários de borboletas, esta proposta foi um pouco assustadora.» (Sublinhado nosso)

 

domingo, agosto 16, 2020

Acumular valores para nossa reinvenção cultural

Vou publicar aqui no meu blogue o texto que escrevi para celebrar os 80 anos do GFSMP

Em louvor dos 80 anos de vida do grupo Folclórico das Lavradeiras de Santa Marta de Portuzelo: 1940-2020 

I

Se usarmos esta associação denominada Grupo Folclórico das Lavradeiras de Santa Marta de Portuzelo para, através da sua prática cultural continuada durante 80 anos, definirmos o que podemos entender por um grupo folclórico, admito que possamos consensualizar facilmente nos seguintes descritores:

a) O grupo é o resultado da iniciativa de uma liderança determinada (o indivíduo e a sua família), habilitada em termos de conhecimentos vários ou específicos, apaixonada cogitiva e afectivamente por um conjunto de práticas culturais, cujo acumulado nos sete lugares da freguesia e na região, permite um tratamento estético plural nas suas dimensões artísticas: música coral e intrumental, trajes, danças, rituais festivos de socialização e de religiosidade. Neste caso, o indivíduo médico António Eduardo Sousa Gomes, jovem, com prática de animação cultural ao longo da vida académica, entrou na esfera dos interesses culturais e recreativos que a Sociedade de Instrução e Recreio Santamartense já mobilizava e tornou-se a «chave» da liderança necessária.[1] É certo que as circunstâncias da organização política do Estado Novo favoreciam este tipo de associativismo, mas não são de causalidade primeira na concretização do Rancho das Lavradeiras de Santa Marta fundado em 1939/40, pois os antecedentes culturais e associativos já vinham de longa data, com incremento a partir de 1916, segundo Abel Viana. [2]

b) O grupo assume um formato associativo que se polariza em torno da meia centena de elementos, fomato esse que o torna plasticamente mobilizável para a animação cultural, dentro e fora do seu território de origem e de identidade; a constituição deste grupo segue regras de recrutamento definidas pela liderança ou por ela condicionadas em função de objectivos estéticos. O formato é claramente inspirado na simbiose de duas práticas culturais: a existência de rusgas ou tocatas ou estúrdias para animação das práticas agrícolas ou festivas em espaços rurais, a existência de grupos de teatro com componente musical e coreográfica.[3]

c) Ao assumir a identidade de «lavradeiras» o grupo perspectiva a sua configuração em função de um imaginário etno-cultural que tem a mulher como agente privilegiado da representação, quer em termos de uso de trajes, quer em termos de funções produtivas (agricolas e artesanais), quer em termos de maternidade e de organização familiar, quer em termos de coralidade, quer em termos de capital simbólico de um ideal de «feminino». Este recurso de «capital feminino» é absolutamente determinante das qualidades de «chieira», «vaidade», orgulho», «libertação», «desenvolvimento» que os grupos folclóricos sabem que colocam em jogo no conjunto das relações sociais e familiares da sociedade rural. A autonomia de comportamentos que a mulher assume vai ser determinante no desenvolvimento da imagem de «seriedade», «competência», «estética», que o grupo vai ou não conseguir atingir no seu currículo de actuações e realizações.[4]

d) O grupo constitui-se para dar visibilidade a práticas culturais de uso e representação local, depois regional e por último nacional, entrando numa lógica concorrencial de oferta e procura dos mais variados palcos (palanques, eiras, ruas, largos) e planos de representação (cerimónias, inaugurações, desfiles, festas, procissões, festivais, convívios, arraiais); neste cumprimento da representação, o grupo visa obter o reconhecimento social entre pares de que está sempre à altura das exigências e é «introcável» por outros.[5]

e) A constituição e domínio performativo do repertório de trajes, cantares, danças e rituais de apresentação decorre do empenho cultural e artístico da sua liderança e da capacitação dos seus elementos, em sucessivos movimentos de fixação: o processo metodológico da recolha compagina-se mais ou menos com o da criação e o da adaptação, o movimento de selecção compagina-se mais ou menos com o da experimentação e o do aplauso público, o movimento da representação compagina-se mais ou menos com as posses dos elementos (ourar e trajar) e com as determinações que os estudos de folclore vão gerando em função de intenções de ilustração ou de documentação.[6]



[1] Testemunho de Graça Sousa Gomes, neta: «O meu avô formou-se em Coimbra com 22 anos, em 1930. O certificado dele não menciona nota. Menciona apenas “aprovação com distinção”. Efectivamente integrou o orfeão académico mas não sabemos durante quanto tempo. Em relação a formação musical, não tinha qualquer habilitação. Chegou a compor e escrever as letras para um musical que percorreu todo o país, mas ele tocava e um amigo que não sei quem era, eu era muito pequena, ia escrevendo a música. Lembro-me bem da paixão que ele tinha pela música. Muitas vezes me sentava numa cadeira de baloiço em frente ao piano e com o gira discos ao lado. Ficava embevecida a vê-lo pôr discos de música clássica em que ele era o maestro de uma orquestra imaginária e “dirigia” essa orquestra enquanto a música tocava. Outras vezes sentava-se ao piano e tocava, tocava, tocava, sempre de ouvido. Sem pautas à frente. Sempre tocou de ouvido, sempre a duas mãos e muito bem. É preciso lembrar que o meu avô nasceu no Porto na freguesia de Paranhos e só depois da sua formatura e casamento se fixou em Santa Marta de Portuzelo. Praticamente lá “caiu” depois de ter decidido afastar-se do Porto devido a problemas familiares. Rapidamente se apaixonou pelo folclore. »

[2] - Sobre os movimentos culturais anteriores ao Estado Novo, consultar Mensário das Casas do Povo, números 105 a 108, 1955, artigos de Abel Viana:  «Alguns Cantos e Danças Populares».

- Sobre a fundação do grupo, para além da história do mesmo que escrevi em 1990, para celebrar o cinquentenário: Machado, José (1991). «Os Grupos Folclóricos: da iniciativa familiar à responsabilidade institucional», Água Mole Revista de Cultura Popular, nº 4, Braga, pp 36-51.

[3] Esta matéria constitui-se como campo de conversação intensa com os elementos mais antigos do grupo. Tive a felicidade, em 1989/90, de ainda entrevistar alguns que iniciaram o movimento folclórico em Santa Marta:

- Entrevista a Margarida Jocelina Fernandes de Araújo, nascida em 1921, natural de Portuzelo, entrou com 18 anos para o grupo; seu pai, António José de Araújo, artista na fábrica do Sordo, fez a primeira Revista aos 14 anos; integrou a Sociedade de Instrução e Recreio Santamartense com o Dr. Sousa Gomes. Reparos e memórias de Margarida Araújo: «as saias das lavradeiras mesmo eram um pedaço abaixo do joelho»; «em Maio de 1940 actuaram na Exposição dos Centenários, em Matosinhos»; «nem gostava do rancho, iam ali, vinham e acabava a festa, gostava de ficar na terra para namorar»; «agora é sempre seguido, até enjoa»; os fatos das mordomas eram de gente com posses»; «a tocata tinha bandolins, violinos, flautas, violão, acordeão, concertina, ferrinhos»; «andei eu a trabalhar para outros ganharem».

- Testemunho de Passos Sales, nascido em 1918, natural de Santa Martinha, artesão de cangas, de rodas, de velas votivas e de palmitos, armador de andores: a sua primeira actuação foi em Guimarães, nas Festas Centenárias, a 28 de Maio de 1940, tinha o grupo 33 elementos; o último passeio com o grupo foi a S. Pedro do Sul; quando casou, quinze dias depois foi com o grupo para Londres; ele e o Isac eram os «mores» do grupo; recorda que o Dr. Sousa Gomes queria sempre pessoas elegantes no grupo, a princípio teve que aceitar as pessoas de idade; os de S. Lourenço trouxeram a gota de S. Lourenço; o Agostinho, de nomeada «o Melro», é que foi o responsável pela mistura e apropriação das danças de outras terras no repertório de Santa Marta; a prioridade de fechar festivais era sempre dada ao grupo; a ida à Finlândia projecta o grupo; naquela altura os rapazes fizeram força para o reitor da igreja os acompanhar. Confessa que se tivesse de pagar do seu bolso as viagens com o grupo gastaria uma fortuna. Reconhece a importância da esposa do médico, a D. Júlia, a qual ainda tinha mais vontade de andar com o grupo; nas saídas prolongadas, ela distribuía o café aos elementos do grupo, toda a gente a admirava por ser a esposa do médico a fazer isso, ela dava carinho ao grupo.

[4] A tradição do culto a Santa Marta pode, de uma forma simbólica, explicar a força da presença feminina na identidade do grupo. Sobre o costume de bordar a camisa para o dia do parto e depois ser oferecida a Santa Marta e acabar leiloada e disputada por outras mulheres, ver O Almanaque do Porto, artigo de V. de S. «Tradições do nosso Minho, Santa Marta de Portuzelo», S/D.

[5] - Sobre esta problemática dos repertórios dos grupos, é sempre de grande utilidade a leitura do Mensário das Casas do Povo, quer em termos de trajares, quer em termos de músicas e de instrumentos. Consultar: Mensário das Casas do Povo, nº 145 e 146, de 1958, artigos de Matos Gomes sobre trajes.

- Sobre o carácter regional do repertório que os grupos presentes ao Concurso Internacional de Canções e Danças Populares apresentaram, ver Mensário das Casas do Povo, nº 37 de 1949.

- No repertório identificam-se danças pelo lugar em que foram recolhidas: Vira de Samonde, ensaiado pelos irmãos Oliveiras, fundadores do rancho/grupo; Vira de Barrosa, um núcleo de casas integrado no lugar de Fonte Grossa; Vira de Santa Marta, referido ao «souto» de Santa Marta no lugar de Fonte Grossa.

[6] Neste aspecto, as referências à dedicação dos dirigentes, em termos de «amor a trajes», são intensivas e destacam a dedicação de D. Júlia, esposa do Dr. Sousa Gomes.

- Testemunho de Maria Rosa Antunes Azevedo, natural de Fonte Grossa, nascida em 1932, filha de João Azevedo, contínuo da Casa do Povo, acompanhante do grupo; ela entrou para o grupo aos 12 anos depois de pedir ao dr. Sousa Gomes, por casa de quem andava a fazer uns trabalhos, que a deixasse entrar; aos 17 gravou uns discos e com o dinheiro que ganhou comprou um fio de oiro e uns brincos à rainha; gravou em 1949 a chula de Viana, vai-te embora António, abaixa-te ó serra d’Arga, vira de Dem, Rosinha do meio, Senhor da Serra, Ai amor; também gravou o todos me querem (quem gravou primeiro este tema foi a Cecília Lorsa); continuou no grupo depois de casada; as quatro filhas que teve andaram todas no grupo infantil e as duas mais velhas passaram para o adulto; o marido da mais velha andou no grupo com um filho; o grupo começou na Sociedade Santamartense mas depois o doutor arranjou maneira de ensaiar na Casa do Povo; a festa de Santo Isidro chamou-se depois Festa das Colheitas, era uma festa em Setembro, com muito peso, muito bairrismo, muito popular, tinha cortejo de oferendas: tabuleiros com roscas, toalhas bonitas, «segredos». Deixou o grupo em 1987, a filha era solista e o genro era dançador, mas depois entraram outras a cantar… «A gente já está velha»… «levei uma mala e trouxe quatro cheias de roupa que me deram, daqui íamos com fome mas lá no Brasil comíamos quanto queríamos». O grupo era uma festa e era sempre recebido em festa quando chegava do estrangeiro. A crise do grupo explica-se bem: lume à beira da estopa, vem o diabo e assopra… O doutor deixava tudo pelo grupo, só fazia o bem, sabe Deus como ele morreu.

- Testemunho de Cecília Lorsa: o doutor Sousa Gomes dedicava-se totalmente ao grupo, era médico, teve mais prejuízo do que o que ganhou, não levava dinheiro a ninguém; como folclorista não havia ninguém como ele; o José Rosa Araújo andava sempre com o grupo, Abel Viana foi colega muitos anos do pai do senhor Manuel Gaspar Lorsa, a pedido dele fez-se a viagem a Beja. Recorda que os espectáculos eram feitos com explicação das danças, trajes e cantares pelo doutor Sousa Gomes; as viagens a Espanha e França, várias vezes, à Finlândia, à Suécia, à Dinamarca e à Noruega, mas também a actuação no Casino do Estoril, em Beja, em Évora. O ouro era do doutor Sousa Gomes, os trajes eram recolhidos por eles junto das pessoas que os ofereciam pelos trabalhos, a D. Júlia, esposa do doutor, compunha as saias por sua conta, bordava; foram «uns escravos». A preocupação doutor era fugir «às velhotas», não era qualquer pessoa que entrava para o grupo; o grupo era criticado pelo estilo de dançar, mas «as nossas danças eram libertas», era tudo muito organizado, tudo a rigor.