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quinta-feira, dezembro 31, 2020

Movimento (III) - os poemas do dia da lua

6 poemas de Movimento reflectem a luz proveniente de outra fonte, buscando a lua como símbolo das correntes de influência que recebem a sua força de outras instâncias, que é como dizer de outros astros. O poeta recolhe a inspiração poética do quotidiano e aqui ficam seis ideias de nossa quotidianidade cívica cuja luminosidade ou força é dependente de circunstâncias mais fortes: a idade, a doença, o café, as chaves de casa, o guarda-chuva, a segunda-feira.

O surpreendente da poesia de João Luís Barreto Guimarães é a transformação de uma ideia vulgar em unidade poética, em lugar do simbólico, em sentido transcendente. A construção poética é uma surpresa de argumentação, não só na linearidade discursiva, mas também no cruzamento dessa linearidade por intervenções parentéticas, complementares, irónicas, intrusivas, que aumentam os planos da leitura.

Imagine-se o leitor uma pessoa madura, com aquela idade que é invejada pelos amigos e ainda não respeitada pelos inimigos, veja-se a sair de casa para o trabalho, que é como quem diz para o mundo que está sempre de volta, e dê consigo a ouvir uma voz interior que lhe recorda simplesmente que «Na idade surpreendente estamos a meio de nada / como moedas que sobram de viagens ao estrangeiro» (A idade surpreendente). A desarrumação do mundo pode ser a causa desta falta de luz própria que o sujeito pensa ter para se desafiar a dar sentido às coisas. A lua gravita em volta da terra, a lua recebe a luz do sol. Parece sempre não ter fim a arrogância do homem que se condidera no melhor da idade, mas as moedas que pagam a vida não têm todas a mesma cotação.

Noutra situação, o médico sabe que pode ser ele a luz do paciente, que é suposto alguém ter a solução para o mal do outro. Mas quem é quem no espaço e no tempo da doença e da saúde, ainda mais se entrarmos no foro das doenças mentais? O poema não vai questionar o cidadão que vê tudo de fora das grades do espaço hospitalar. O poeta vai colocar em dúvida aquela pessoa cujo saber era suposto resolver o problema do paciente. Quem é o doente no espaço psiquiátrico? O que está no território delimitado pelas grades ou o que passa no exterior? (A Grade) Diga lá o leitor se não acha este poema uma surpresa!

A cadeira (Café Exílio). Este poema é uma viagem pelas nossas memórias de frequência de cafés, na cidade intensa. Quantas vezes é preciso arranjar uma cadeira, ir buscá-la a outra mesa, apanhá-la a quem se estava a apressar para a ter. Coloque agora o leitor toda a personificação na cadeira e admire o seu uso e a sua situação de cansaço resultante do mesmo. Que luz ou sentido faz transcender esta função utilitária do objecto para a racionalidade de absorção do contínuo passar de noites e dias?

(Perguntas) «Hoje quando torno à casa espanto-me quem era aquele que buscava simetria». Para mim, este poema recebe a luz da tradição, isto é, do acumulado documental arquivado para organizar o que quer que seja. Quem colecciona as coisas fa-lo seguindo critérios. O avô que alinha os netos por alturas, na noite de Natal, segue esse critério pelo fascínio do crescimento, naturalmente. Quem organiza as chaves da casa poderá fazê-lo pela forma das mesmas, pelo tamanho, pelo peso, sei lá. O espanto do poema é o sujeito coleccionador ou organização do arquivo espantar-se com aquele que organizou, em tempos, as chaves da casa pelo critério da simetria. Donde lhe vem a luz de tal espanto?

«O sol castiga pela ausência» (Natureza-morta com guarda-chuva ferido). O poema é construído a partir da representação do guarda-chuva como objecto velho e destruído pelo vento, num dia em que as nuvens se juntaram e ameaçam chuva torrencial, como as gaivotas se juntam para anunciar a saída dos barcos para a pesca. A culpa é do sol que castiga pela ausência.

«Então não / tens outro arbítrio do que arrepiar as mangas / (encher o punho de tinta) e / disparar a matar» (Segunda-feira outra vez). A escrita tomada à letra como revólver, motivada pela desconsideração do trabalho pessoal, pior, pela apropriação dos méritos da pessoa, acto praticado a miúde nas relações de trabalho, truque por debaixo da mesa para ultrapassar a progressão por mérito. 

Alguém me chamou a atenção para o facto de eu interpretar os poemas como se estivesse a falar para os meus alunos do ensino básico. Não nego.

quarta-feira, dezembro 16, 2020

Leitura de MOVIMENTO, um livro de poesia II

 O poema é, em primeira análise, uma mancha gráfica, um formato regular, um hábito de apresentação da escrita: alinhamento à esquerda e extensão à direita variável, consoante o ritmo requerido pelo discurso; nessa mancha sobressaem de imediato parênteses que contêm sintagmas discursivos que interrompem a linearidade discursiva da voz principal, obrigando o leitor a atar os fios de sua leitura (ler a segunda voz, dialogante com a primeira). O poeta João Luís Barreto Guimarães já se explicou em entrevista passada como produz e por que produz assim; o que me ficou é que a mancha gráfica obtida em cada poema era para ele uma matriz de sentido visual, como o plano do arquitecto que dá a casa por concluída, ainda que no papel; o poema fica realizado quando o sentido expresso ou criado se integra numa forma que também satisfaz o olhar. A mancha gráfica é o corpo com que o poeta faz viver para a leitura o seu poema. Posto isto (das relações entre forma e formato e conteúdo e sentido e discurso e ritmo frásico e vocalização, falaremos depois).

O segundo movimento cósmico do livro é o dia do sol, o princípio estruturante, criador... (faz bem o leitor em procurar o livro dos símbolos nas culturas). O poeta começa o dia do sol pelos mistérios ou deveres ou ofícios de dar e tirar a vida, revisitando a tradição da matança do animal de corte, pelo avô da família, o guardião dos gestos precisos e orientados. Depois mergulha no movimento da ironia e da pilhéria social com uma diatribe sobre o religioso acumulado pelos oficiantes da palavra, os clérigos, também ele devedores de seu ofício ao sol. É vicentino e pícaro o poema  sobre o mercado de Natal, é um libelo sobre os desafios do capitalismo que alastra no bem-estar das cidades europeias, tomando Viena como centro de ajuntamentos, lembrando a lua a herança árabe. A poética chega também aos vermes que nos roem, como o do envelhecimento, mas exibem-se primeiro como ofertas publicitárias, só depois como solidão inscrita nas casas e nas famílias. Mostar continua como exemplo de integração das diferenças ou da sua tolerância e Deus continua como razão ou hipótese para a complexidade do universo, reinventada que pode ser em buracos negros.

A vantagem de um leitor é poder sentir, citando de viés o Pessoa.


quarta-feira, dezembro 09, 2020

Leituras de MOVIMENTO, um livro de poesia

 

Para ler este livro de João Luís Barreto Guimarães o melhor é o leitor manter a ligação à internet ou então munir-se de um livro que esclareça o valor simbólico dos astros. Hoje o google presta-se a auxiliar a leitura. Trata-se de uma poesia que tem, neste livro, o cosmos como assunto de ilustração, fonte de referências, tradição cultural, em suma. Esta cosmologia poética é abordada em estilo de conversa, através do recurso ao pensamento parentético, um auxiliar valioso para tudo o que o poeta ou a voz principal quer esclarecer, completar, diluir, problematizar, enfim...O discurso poético parte do nosso quotidiano e assume-o como necessidade verbal de integração nas bíblias dos povos, sim, nesses livros paradigmáticos que estão também na cabeceira de muitos hotéis.

Pois bem, a leitura dá sempre ansiedade de confronto ou de espalhamento de brasas, por isso aqui vão alguns atrevimentos de síntese pessoal.

Em «Dia de Saturno», primeiro movimento no espaço poético sideral, o poeta segue o movimento dos vestígios civilizacionais, dos acontecimentos já considerados ultrapassados, mas visitáveis, revisita as ruínas e as pedras classificadas, os versos ou estrofes em falta, ou em excesso, nas obras, as produções de imitação de cânones, as figurações sugeridas nas proibições de figurar, os ossos das múmias, os objectos de uso na antiguidade... O que pensa o poeta ou o que o faz pensar?: o sentido que está inscrito neles e o sentido que é retirado deles e das circunstâncias em que nos estão acessíveis. O que foi considerado vital perdeu uma vida e ganhou outra, a de sugerir hipóteses de triunfo noutros campos. O movimento que em Saturno interessa é o de saber como nos podemos repetir, ou como queremos morrer, ou como vamos libertar-nos de uns pesos para conseguirmos outras levezas de andar por aqui a visitar museus e obras em ruínas ou em degradações acumuladas. Saturno, lugar de morte ou lugar de vida? É tempo de ir ler a simbologia do astro...