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terça-feira, dezembro 06, 2022

Crónicas da Rádio Francisco Sanches (2022-2023)

 As palavras têm asas - 3 – programa de 3 de Dezembro de 2022

Na minha primeira crónica afirmei que vos diria como é que as palavras ganham asas, e direi, mas primeiro terei de vos falar do chão de onde elas hão-de voar, sim, de que sítio fixo ou estável hão-de elas partir para a sua missão ou função de voar. Um dia, no ano lectivo de 1989-90, escrevi uma canção para os meus alunos que tinha esta razão de ser no voo das palavas:

Vamos para a escola, companheiros,

Unidos na alegria de estudar

A língua de um país de marinheiros,

Falada numa terra junto ao mar!

 

É tempo de aventura!

Dá gozo descobrir

Que as palavras têm asas p’ra voar.

E na melhor altura,

Dos ninhos nascem sonhos de encantar.

É tudo uma questão de confiar!

 

A coisa tem piada!

Falar e escrever

São tarefas que se fazem com prazer;

Às vezes dão maçada,

Mas ninguém entra no jogo p’ra perder.

É tudo uma questão de ver e querer!

Ora, então, vamos responder à pergunta donde partem as palavras para seus voos? Do sítio onde as aprendemos e nós começamos por aprender as palavras que nos ligam a um território, a um chão, a um lugar especial, o da família, o da casa, o dos pais, o dos irmãos, o das educadoras, que é preciso dizer que agora muitas crianças já aprendem as palavras no chão dos infantários, no chão das amas. Aprendemos a falar para nos fixarmos a um território, e nesse território estão em primeiro lugar as pessoas, os pais. Todas as palavras nos prendem à terra e progressivamente as vamos treinando para voar e voar quer dizer andarem por outros espaços e por outras pessoas, servirem para outros sentidos. 

Lembremos as palavras que antecedem as palavras, aquele tagarelar, aquelas sequências de sons que os bebés enunciam e que nos servem de jogo encantatório para descobrirmos o que querem dizer. Toda a nossa descoberta da linguagem é para nos apetrecharmos com um instrumento que depois dará para tudo o que precisarmos de dizer ou de enunciar. Nós vamos crescendo e vamos aprendendo cada vez mais palavras. 

Entrando nas escolas, essa nossa capacidade de linguagem está sempre a aumentar e é então que nos damos conta de que elas têm asas: a maior parte das nossas palavras são para nos fixarmos à vida, à realidade, às vivências da casa, dos caminhos para a escola, dos lugares onde comemos e bebemos, onde brincamos, dos nomes das pessoas, dos amigos, dos vizinhos, das roupas e dos calçados, do que é nosso e do que não é. Mas a cada passo damos conta de que usamos as palavras para estar noutras dimensões desse real, para exprimir sentimentos, para recordar, para sonhar, para rezar, para fantasiar a realidade. 

As palavras são o nosso corpo mas saem-nos dele para descobrir outros corpos, outros seres, outras realidades. Vede, por exemplo, a palavra pão e começai a fixá-la no chão a que pertence, na mesa, no forno, na cozinha, depois usai as paredes para a erguer e começai a deixá-la voar, pelos campos, pelos barcos de transporte de cereais, pelos tractores, pelos supermercados… Vou atrás dela, esperai lá, até à próxima.

Crónicas da Rádio Francisco Sanches (2022-2023)

Para o centenário de nascimento de José Saramago - 2

Se houve escritor português que levantou as palavras e as fez voar foi José Saramago, autor de nossa literatura cujo centenário de nascimento celebramos este mês de Novembro, a 16, tendo ele falecido em 2010 na ilha de Lanzarote no arquipélago das Canárias, onde tinha fixado uma de suas residências pelo mundo. 

Nascera em 1922 na Azinhaga, concelho da Golegã, no Ribatejo. Entre outros, foi prémio Camões em 1995 e prémio Nobel da Literatura em 1998, tendo sido condecorado no nosso país com o mais elevado e prestigiante Grande Colar da Ordem de Santiago da Espada e a título póstumo com o Grande Colar da Ordem de Camões. O seu percurso biográfico é balizado pelas origens humildes de sua família, pela sua formação académica a nível secundário, pela sua profissão de serralheiro mecânico, depois pela sua profissão de jornalista e director de jornal, pela sua militância no partido comunista e pela sua dedicação à escrita. Nestas balizas biográficas conheceu a insatisfação e fez levantar surpresas e admirações, causou polémicas, enfim, marcou o seu e nosso tempo, notabilizou-se pelo que escreveu, em quantidade e qualidade, sendo o seu estilo muito peculiar. 

Ao longo do meu percurso escolar, acompanhei os voos de suas palavras e de suas obras que li e conservo na minha biblioteca, não todas, mas bastantes. Li e referi aos meus alunos algumas de suas histórias, falei de seu estilo de escrita entre professores, acompanhei as polémicas de sua vida e de suas narrativas absolutamente marcadoras de nossa literatura, não só pelos temas escolhidos ou descobertos para os seus livros, mas sobretudo pelo foco e perspectiva do desenvolvimento narrativo das histórias ou das ideias. José Saramago marcou o meu tempo de professor de português, não só por uma das suas obras ser de leitura obrigatória no ensino secundário, mas pela influência que as suas obras e as suas posições ou ideias desencadearam na didáctica da língua materna. 

O estilo é o homem, ouvimos dizer há muito em todo o tipo de intervenções sobre autores ou artistas ou artífices ou criadores, e, de facto, a escrita de Saramago depressa desencadeou uma polémica intensa nas escolas: a chamada escrita oralizante, sem marcadores de pontuação ou de formação de texto a que estávamos habituados, polarizando as questões da didáctica de formalismos e de marcas de longa duração na formatação dos textos: que a leitura tudo regula e que a língua materna tudo supera, com as práticas discursivas a funcionarem na inteligência de cada um acabam por ler bem e de forma correcta o que parece estar em linha contínua de texto e de enunciação. Na prática, os professores passaram a dar muita mais atenção às escritas de seus alunos, aos modos de ler e de articular, às distinções de ouvido e de entendimento lógico. As acusações ao autor sobre as irregularidades de sua escrita não acabaram nem acabam, estão sempre a renascer aqui e ali, mas deixaram de ser o foco das questões de didáctica, tendo esta assumido as complexidades de sua aprendizagem e de seu ensino, aproveitando todos os textos e tipos de textos. 

Mas a polémica maior das obras de José Saramago entrou pelas escolas dentro, não por os seus textos serem lidos pelos alunos, nem todos adequados a leituras de sala de aula e nem sempre ou melhor quase nunca selecionados pelos autores de manuais, mas sim pela qualidade imaginária das histórias, pela surpreendente invenção de personagens, pelo desenrolar imprevisto das acções diegéticas. José Saramago encontrou nas histórias já conhecidas e nas que inventou a partir de causas ou realidades provocadoras, peripécias, motivos, ideias, desenvolvimentos de problemas, casos e figuras, diálogos e reflexões, retratos e descrições, que colidiam com as representações habituais da vida ou que contradiziam as expectativas: atribuir as suas polémicas histórias à sua natureza ideológica de compromisso político é reduzir o impacto de suas obras na nossa complexidade civilizacional: José Saramago inquietou-se com o desenvolvimento do mundo, com a qualidade de voda no planeta terra, com a religião, com a história de nossos monumentos, com a nossa capacidade de discernimento de soluções para os problemas que criamos. Continuemos a lê-lo e continuemos a polemizar com as suas obras.