As palavras têm asas - 3 –
programa de 3 de Dezembro de 2022
Na minha primeira crónica afirmei que vos diria como é que
as palavras ganham asas, e direi, mas primeiro terei de vos falar do chão de
onde elas hão-de voar, sim, de que sítio fixo ou estável hão-de elas partir
para a sua missão ou função de voar. Um dia, no ano lectivo de 1989-90, escrevi
uma canção para os meus alunos que tinha esta razão de ser no voo das palavas:
Vamos para a escola, companheiros,
Unidos na alegria de estudar
A língua de um país de marinheiros,
Falada numa terra junto ao mar!
É tempo de aventura!
Dá gozo descobrir
Que as palavras têm asas p’ra voar.
E na melhor altura,
Dos ninhos nascem sonhos de encantar.
É tudo uma questão de confiar!
A coisa tem piada!
Falar e escrever
São tarefas que se fazem com prazer;
Às vezes dão maçada,
Mas ninguém entra no jogo p’ra perder.
É tudo uma
questão de ver e querer!
Ora, então, vamos responder à pergunta donde partem as
palavras para seus voos? Do sítio onde as aprendemos e nós começamos por
aprender as palavras que nos ligam a um território, a um chão, a um lugar
especial, o da família, o da casa, o dos pais, o dos irmãos, o das educadoras,
que é preciso dizer que agora muitas crianças já aprendem as palavras no chão
dos infantários, no chão das amas. Aprendemos a falar para nos fixarmos a um
território, e nesse território estão em primeiro lugar as pessoas, os pais.
Todas as palavras nos prendem à terra e progressivamente as vamos treinando
para voar e voar quer dizer andarem por outros espaços e por outras pessoas,
servirem para outros sentidos.
Lembremos as palavras que antecedem as palavras,
aquele tagarelar, aquelas sequências de sons que os bebés enunciam e que nos
servem de jogo encantatório para descobrirmos o que querem dizer. Toda a nossa
descoberta da linguagem é para nos apetrecharmos com um instrumento que depois
dará para tudo o que precisarmos de dizer ou de enunciar. Nós vamos crescendo e
vamos aprendendo cada vez mais palavras.
Entrando nas escolas, essa nossa
capacidade de linguagem está sempre a aumentar e é então que nos damos conta de
que elas têm asas: a maior parte das nossas palavras são para nos fixarmos à
vida, à realidade, às vivências da casa, dos caminhos para a escola, dos
lugares onde comemos e bebemos, onde brincamos, dos nomes das pessoas, dos
amigos, dos vizinhos, das roupas e dos calçados, do que é nosso e do que não é.
Mas a cada passo damos conta de que usamos as palavras para estar noutras
dimensões desse real, para exprimir sentimentos, para recordar, para sonhar,
para rezar, para fantasiar a realidade.
As palavras são o nosso corpo mas
saem-nos dele para descobrir outros corpos, outros seres, outras realidades.
Vede, por exemplo, a palavra pão e começai a fixá-la no chão a que pertence, na
mesa, no forno, na cozinha, depois usai as paredes para a erguer e começai a
deixá-la voar, pelos campos, pelos barcos de transporte de cereais, pelos
tractores, pelos supermercados… Vou atrás dela, esperai lá, até à próxima.