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sexta-feira, janeiro 17, 2020

O Estado Novo e a cultura popular (4) - Conclusão

Se o leitor estiver recordado, tomando como linha de reflexão a leitura do livro de Maria BARTHEZ, Memória de Francisco Lage, da prática à teoria, Gradiva, Braga, 2019, no último artigo eu perguntava o alcance de se declarar que o Estado Novo foi um «adestrador» da cultura popular. Adestrar significa domesticar, manipular, configurar um ser a determinadas características de identidade. No caso do Estado Novo poderemos resumir assim o tal «adestramento»: levar o cidadão português a identificar-se como homem religioso, católico, cumpridor das leis e da ordem do Estado, mais rural do que urbano, chefe de família, educado e disciplinado, apreciador e consumidor das suas produções materiais, continuador de patrimónios edificados, criador de modelos inspirados na tradição, inovador controlado, sem excessos ou rupturas de paradigmas instituídos como identitários, crítico pacífico mas não opositor ao regime, etc. Até que ponto os conteúdos da cultura popular tradicional cumpriram ou foram mobilizados para sustentar este perfil de cidadão? Estamos perante uma obra que não avança novas perspectivas de análise desta questão, antes se limita a projectar a representação política que faz do Estado Novo como Ditadura Nacional a todos os conteúdos e a todas as iniciativas. Esta limitação intrínseca da análise faz com que se mantenha aquela ideia da nebulosa «fascista» do regime, mas sem descortinar marcas de confirmação, em termos de conteúdos ligados aos temas da cultura popular e tradicional. No capítulo III a investigadora dá a entender que Lage tinha critérios e modo de ver a etnografia que, a terem sido seguidos, poderiam ter dado outro caminho aos do SPN/SNI, mas quais? Não diz claramente; tudo parece andar em torno dos conceitos de autenticidade versus exposição, ou seja, as exposições públicas ou musealizadas teriam critérios de visibilidade que poderiam ferir os da autenticidade das peças. O povo musealizado seria uma versão «fake» (como agora se diz) do povo real? Era preciso que se demonstrasse então se havia outros critérios para apresentar ou musealizar o povo, era preciso demonstrar que Francisco lage polemizou com alguém. Não são de todo convincentes do tal «adestramento» as referências às exposições de costumes, à criação de museus, à promoção de concursos, à categorização de prémios literários, à mobilização de artistas ou de criadores. Falta o sumo das polémicas, se as houve. Três iniciativas são sintomáticas de toda esta problemática: a Exposição do Mundo Português e o Bailado Verde-Gaio e a criação do Museu do Povo. Todas são vistas como situações míticas e mistificadas, o leitor procura as justificações, mas elas não estão lá, as que estão só confirmam a validação que as ciências humanas e sociais ao tempo lhe conferiram. Como é possível declarar que o Museu de Arte Popular é a «etnografia do regime», e umas linhas à frente afirmar que este Museu tinha uma «qualidade museográfica inédita, absolutamente moderna à época e que chega inalterada até aos nossos dias»? No Epílogo, pp. 503-504, Marta Barthez conclui que Lage partilhou um modo de ser dentro de uma atitude nacionalista, modo de ser esse que estava sustentado numa cultura enciclopédica e numa visão futurista: «Tendo presente o SNI, tabuleiro de xadrez estratégico onde se movimenta Francisco Lage, e a sua imaginação dialógica, pode dizer-se, que nem sempre foi bem-sucedido, mas sempre perseguiu, muitas vezes com sucessos efémeros, devido à sua determinação, seja como etnógrafo, dramaturgo, ou criador. Fortemente empenhado, totalmente entregue, de forma sistémica, aos seus praticar/teorizando e ao teorizar/praticando, estamos convencidos que Francisco Lage colocaria os seus saberes ao serviço de qualquer regime, por que faziam parte dos seus códigos genéticos, fosse qual fosse o quadro ideológico em que movimentasse.»  Dito isto, concluímos: os regimes totalitários passam e as ideias ficam.

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