Pesquisar neste blogue

domingo, agosto 16, 2020

Acumular valores para nossa reinvenção cultural

Vou publicar aqui no meu blogue o texto que escrevi para celebrar os 80 anos do GFSMP

Em louvor dos 80 anos de vida do grupo Folclórico das Lavradeiras de Santa Marta de Portuzelo: 1940-2020 

I

Se usarmos esta associação denominada Grupo Folclórico das Lavradeiras de Santa Marta de Portuzelo para, através da sua prática cultural continuada durante 80 anos, definirmos o que podemos entender por um grupo folclórico, admito que possamos consensualizar facilmente nos seguintes descritores:

a) O grupo é o resultado da iniciativa de uma liderança determinada (o indivíduo e a sua família), habilitada em termos de conhecimentos vários ou específicos, apaixonada cogitiva e afectivamente por um conjunto de práticas culturais, cujo acumulado nos sete lugares da freguesia e na região, permite um tratamento estético plural nas suas dimensões artísticas: música coral e intrumental, trajes, danças, rituais festivos de socialização e de religiosidade. Neste caso, o indivíduo médico António Eduardo Sousa Gomes, jovem, com prática de animação cultural ao longo da vida académica, entrou na esfera dos interesses culturais e recreativos que a Sociedade de Instrução e Recreio Santamartense já mobilizava e tornou-se a «chave» da liderança necessária.[1] É certo que as circunstâncias da organização política do Estado Novo favoreciam este tipo de associativismo, mas não são de causalidade primeira na concretização do Rancho das Lavradeiras de Santa Marta fundado em 1939/40, pois os antecedentes culturais e associativos já vinham de longa data, com incremento a partir de 1916, segundo Abel Viana. [2]

b) O grupo assume um formato associativo que se polariza em torno da meia centena de elementos, fomato esse que o torna plasticamente mobilizável para a animação cultural, dentro e fora do seu território de origem e de identidade; a constituição deste grupo segue regras de recrutamento definidas pela liderança ou por ela condicionadas em função de objectivos estéticos. O formato é claramente inspirado na simbiose de duas práticas culturais: a existência de rusgas ou tocatas ou estúrdias para animação das práticas agrícolas ou festivas em espaços rurais, a existência de grupos de teatro com componente musical e coreográfica.[3]

c) Ao assumir a identidade de «lavradeiras» o grupo perspectiva a sua configuração em função de um imaginário etno-cultural que tem a mulher como agente privilegiado da representação, quer em termos de uso de trajes, quer em termos de funções produtivas (agricolas e artesanais), quer em termos de maternidade e de organização familiar, quer em termos de coralidade, quer em termos de capital simbólico de um ideal de «feminino». Este recurso de «capital feminino» é absolutamente determinante das qualidades de «chieira», «vaidade», orgulho», «libertação», «desenvolvimento» que os grupos folclóricos sabem que colocam em jogo no conjunto das relações sociais e familiares da sociedade rural. A autonomia de comportamentos que a mulher assume vai ser determinante no desenvolvimento da imagem de «seriedade», «competência», «estética», que o grupo vai ou não conseguir atingir no seu currículo de actuações e realizações.[4]

d) O grupo constitui-se para dar visibilidade a práticas culturais de uso e representação local, depois regional e por último nacional, entrando numa lógica concorrencial de oferta e procura dos mais variados palcos (palanques, eiras, ruas, largos) e planos de representação (cerimónias, inaugurações, desfiles, festas, procissões, festivais, convívios, arraiais); neste cumprimento da representação, o grupo visa obter o reconhecimento social entre pares de que está sempre à altura das exigências e é «introcável» por outros.[5]

e) A constituição e domínio performativo do repertório de trajes, cantares, danças e rituais de apresentação decorre do empenho cultural e artístico da sua liderança e da capacitação dos seus elementos, em sucessivos movimentos de fixação: o processo metodológico da recolha compagina-se mais ou menos com o da criação e o da adaptação, o movimento de selecção compagina-se mais ou menos com o da experimentação e o do aplauso público, o movimento da representação compagina-se mais ou menos com as posses dos elementos (ourar e trajar) e com as determinações que os estudos de folclore vão gerando em função de intenções de ilustração ou de documentação.[6]



[1] Testemunho de Graça Sousa Gomes, neta: «O meu avô formou-se em Coimbra com 22 anos, em 1930. O certificado dele não menciona nota. Menciona apenas “aprovação com distinção”. Efectivamente integrou o orfeão académico mas não sabemos durante quanto tempo. Em relação a formação musical, não tinha qualquer habilitação. Chegou a compor e escrever as letras para um musical que percorreu todo o país, mas ele tocava e um amigo que não sei quem era, eu era muito pequena, ia escrevendo a música. Lembro-me bem da paixão que ele tinha pela música. Muitas vezes me sentava numa cadeira de baloiço em frente ao piano e com o gira discos ao lado. Ficava embevecida a vê-lo pôr discos de música clássica em que ele era o maestro de uma orquestra imaginária e “dirigia” essa orquestra enquanto a música tocava. Outras vezes sentava-se ao piano e tocava, tocava, tocava, sempre de ouvido. Sem pautas à frente. Sempre tocou de ouvido, sempre a duas mãos e muito bem. É preciso lembrar que o meu avô nasceu no Porto na freguesia de Paranhos e só depois da sua formatura e casamento se fixou em Santa Marta de Portuzelo. Praticamente lá “caiu” depois de ter decidido afastar-se do Porto devido a problemas familiares. Rapidamente se apaixonou pelo folclore. »

[2] - Sobre os movimentos culturais anteriores ao Estado Novo, consultar Mensário das Casas do Povo, números 105 a 108, 1955, artigos de Abel Viana:  «Alguns Cantos e Danças Populares».

- Sobre a fundação do grupo, para além da história do mesmo que escrevi em 1990, para celebrar o cinquentenário: Machado, José (1991). «Os Grupos Folclóricos: da iniciativa familiar à responsabilidade institucional», Água Mole Revista de Cultura Popular, nº 4, Braga, pp 36-51.

[3] Esta matéria constitui-se como campo de conversação intensa com os elementos mais antigos do grupo. Tive a felicidade, em 1989/90, de ainda entrevistar alguns que iniciaram o movimento folclórico em Santa Marta:

- Entrevista a Margarida Jocelina Fernandes de Araújo, nascida em 1921, natural de Portuzelo, entrou com 18 anos para o grupo; seu pai, António José de Araújo, artista na fábrica do Sordo, fez a primeira Revista aos 14 anos; integrou a Sociedade de Instrução e Recreio Santamartense com o Dr. Sousa Gomes. Reparos e memórias de Margarida Araújo: «as saias das lavradeiras mesmo eram um pedaço abaixo do joelho»; «em Maio de 1940 actuaram na Exposição dos Centenários, em Matosinhos»; «nem gostava do rancho, iam ali, vinham e acabava a festa, gostava de ficar na terra para namorar»; «agora é sempre seguido, até enjoa»; os fatos das mordomas eram de gente com posses»; «a tocata tinha bandolins, violinos, flautas, violão, acordeão, concertina, ferrinhos»; «andei eu a trabalhar para outros ganharem».

- Testemunho de Passos Sales, nascido em 1918, natural de Santa Martinha, artesão de cangas, de rodas, de velas votivas e de palmitos, armador de andores: a sua primeira actuação foi em Guimarães, nas Festas Centenárias, a 28 de Maio de 1940, tinha o grupo 33 elementos; o último passeio com o grupo foi a S. Pedro do Sul; quando casou, quinze dias depois foi com o grupo para Londres; ele e o Isac eram os «mores» do grupo; recorda que o Dr. Sousa Gomes queria sempre pessoas elegantes no grupo, a princípio teve que aceitar as pessoas de idade; os de S. Lourenço trouxeram a gota de S. Lourenço; o Agostinho, de nomeada «o Melro», é que foi o responsável pela mistura e apropriação das danças de outras terras no repertório de Santa Marta; a prioridade de fechar festivais era sempre dada ao grupo; a ida à Finlândia projecta o grupo; naquela altura os rapazes fizeram força para o reitor da igreja os acompanhar. Confessa que se tivesse de pagar do seu bolso as viagens com o grupo gastaria uma fortuna. Reconhece a importância da esposa do médico, a D. Júlia, a qual ainda tinha mais vontade de andar com o grupo; nas saídas prolongadas, ela distribuía o café aos elementos do grupo, toda a gente a admirava por ser a esposa do médico a fazer isso, ela dava carinho ao grupo.

[4] A tradição do culto a Santa Marta pode, de uma forma simbólica, explicar a força da presença feminina na identidade do grupo. Sobre o costume de bordar a camisa para o dia do parto e depois ser oferecida a Santa Marta e acabar leiloada e disputada por outras mulheres, ver O Almanaque do Porto, artigo de V. de S. «Tradições do nosso Minho, Santa Marta de Portuzelo», S/D.

[5] - Sobre esta problemática dos repertórios dos grupos, é sempre de grande utilidade a leitura do Mensário das Casas do Povo, quer em termos de trajares, quer em termos de músicas e de instrumentos. Consultar: Mensário das Casas do Povo, nº 145 e 146, de 1958, artigos de Matos Gomes sobre trajes.

- Sobre o carácter regional do repertório que os grupos presentes ao Concurso Internacional de Canções e Danças Populares apresentaram, ver Mensário das Casas do Povo, nº 37 de 1949.

- No repertório identificam-se danças pelo lugar em que foram recolhidas: Vira de Samonde, ensaiado pelos irmãos Oliveiras, fundadores do rancho/grupo; Vira de Barrosa, um núcleo de casas integrado no lugar de Fonte Grossa; Vira de Santa Marta, referido ao «souto» de Santa Marta no lugar de Fonte Grossa.

[6] Neste aspecto, as referências à dedicação dos dirigentes, em termos de «amor a trajes», são intensivas e destacam a dedicação de D. Júlia, esposa do Dr. Sousa Gomes.

- Testemunho de Maria Rosa Antunes Azevedo, natural de Fonte Grossa, nascida em 1932, filha de João Azevedo, contínuo da Casa do Povo, acompanhante do grupo; ela entrou para o grupo aos 12 anos depois de pedir ao dr. Sousa Gomes, por casa de quem andava a fazer uns trabalhos, que a deixasse entrar; aos 17 gravou uns discos e com o dinheiro que ganhou comprou um fio de oiro e uns brincos à rainha; gravou em 1949 a chula de Viana, vai-te embora António, abaixa-te ó serra d’Arga, vira de Dem, Rosinha do meio, Senhor da Serra, Ai amor; também gravou o todos me querem (quem gravou primeiro este tema foi a Cecília Lorsa); continuou no grupo depois de casada; as quatro filhas que teve andaram todas no grupo infantil e as duas mais velhas passaram para o adulto; o marido da mais velha andou no grupo com um filho; o grupo começou na Sociedade Santamartense mas depois o doutor arranjou maneira de ensaiar na Casa do Povo; a festa de Santo Isidro chamou-se depois Festa das Colheitas, era uma festa em Setembro, com muito peso, muito bairrismo, muito popular, tinha cortejo de oferendas: tabuleiros com roscas, toalhas bonitas, «segredos». Deixou o grupo em 1987, a filha era solista e o genro era dançador, mas depois entraram outras a cantar… «A gente já está velha»… «levei uma mala e trouxe quatro cheias de roupa que me deram, daqui íamos com fome mas lá no Brasil comíamos quanto queríamos». O grupo era uma festa e era sempre recebido em festa quando chegava do estrangeiro. A crise do grupo explica-se bem: lume à beira da estopa, vem o diabo e assopra… O doutor deixava tudo pelo grupo, só fazia o bem, sabe Deus como ele morreu.

- Testemunho de Cecília Lorsa: o doutor Sousa Gomes dedicava-se totalmente ao grupo, era médico, teve mais prejuízo do que o que ganhou, não levava dinheiro a ninguém; como folclorista não havia ninguém como ele; o José Rosa Araújo andava sempre com o grupo, Abel Viana foi colega muitos anos do pai do senhor Manuel Gaspar Lorsa, a pedido dele fez-se a viagem a Beja. Recorda que os espectáculos eram feitos com explicação das danças, trajes e cantares pelo doutor Sousa Gomes; as viagens a Espanha e França, várias vezes, à Finlândia, à Suécia, à Dinamarca e à Noruega, mas também a actuação no Casino do Estoril, em Beja, em Évora. O ouro era do doutor Sousa Gomes, os trajes eram recolhidos por eles junto das pessoas que os ofereciam pelos trabalhos, a D. Júlia, esposa do doutor, compunha as saias por sua conta, bordava; foram «uns escravos». A preocupação doutor era fugir «às velhotas», não era qualquer pessoa que entrava para o grupo; o grupo era criticado pelo estilo de dançar, mas «as nossas danças eram libertas», era tudo muito organizado, tudo a rigor.

 

Sem comentários: