http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/museus-e-monumentos/rede-portuguesa/m/museu-de-arte-popular/
Este é o segundo artigo e visa responder à questão das
relações entre o Estado Novo e a cultura popular. Já sabe o leitor que estes
artigos têm ponto de partida na leitura da obra de Maria BARTHEZ, Memória de Francisco Lage, da prática à teoria, Gradiva, Braga,
2019. A questão de saber determinar como e até que ponto o Estado Novo definiu
os caminhos da cultura popular, em termos de propostas conceptuais ou
protocolos metodológicos de procedimento, tem de se compreender à luz dos
pressupostos ideológicos do poder dominante e dos pressupostos ideológicos das
forças de oposição ou de resistência ao exercício desse poder. Correndo o risco
de simplificar, sabe-se que o Estado Novo tem um projecto para a sociedade
portuguesa e que o vai exercer através de mecanismos institucionais de
controle, numa criação de burocracia corporativa, com recurso a instâncias
policiais e de censura. As forças de oposição dividem-se em dois campos, um de
inspiração totalitária também, mas comunista, digamos, outro de inspiração mais
social-democrata, sem adesão ideológica ao modelo dos países então ditos
socialistas. O que há de comum entre o poder instituído e as forças de oposição
é uma espécie de «ódio à américa» ou à liberdade concebida segundo um modelo de
sociedade capitalista. É neste quadro de tomadas de posição, com a criação de
movimentos culturais ora na defesa de um nacionalismo mais integrista e
personalizadamente renovador ou de outro mais internacionalista e socialmente
revolucionário que devemos procurar o esclarecimento da questão supra colocada.
Todas as forças em presença investem simultaneamente na defesa de valores
identitários que resultam do estudo das ciências sociais e que beneficiam, ao
tempo, de um caudal imenso de estudos comuns a todos os países da Europa e do
mundo, podemos dizer. Neste quadro, saber o que resulta do acumulado cultural,
antropológico, literário, artístico, etnográfico, etc., e o que resulta da
inspiração ou criação local dos mecanismos implementados pelo Estado Novo, é um
desafio investigativo. O livro que tenho estado a analisar não o faz, a meu
ver, de modo adequado e esclarecido; cai na tentação fácil de considerar que
aquilo que o regime apoia e mobiliza é de sua invenção. Passemos ao caso das
paradas, desfiles, museus, grupos de folclore, gabinetes de estudo, feiras,
exposições, etc. Por exemplo, a
interpretação da parada agrícola
como caso sintomático de invenção de tradições por parte do Estado Novo não me parece
adequada; o conceito de parada industrial ou agrícola estava estabelecido em
muitos países, alguns avançavam já para a criação de reservas étnicas ou
preservação de costumes típicos em ambientes permanentes; nem mesmo acho bem
que se atribua ao Estado Novo a invenção dos eventos que vão enquadrar as
tradições nessas paradas ou exposições ambulantes e efémeras: o palco e as
circunstâncias em que se vai fazer a representação do uso ou costume, como, por
exemplo, a apresentação e desfile do boi bento, a exibição do modo de namoro, a
cavalgada dos feirantes, a lavagem da roupa, a cultura do linho, etc., estavam
inventados. Classificar a «Parada» como invenção, como vai ser depois o «desfile etnográfico»,
ou o «cortejo de oferendas», ou a «feira das colheitas», é, em relação aos
estudos que então já circulavam (a maior parte dos quais consta da biblioteca
pessoal de Francisco lage, como a autora explica), uma interpretação abusiva. O
controle político e cultural e ideológico dos conteúdos exibidos, o controle
das gentes envolvidas, com o medo de que possam manifestar-se em sentido
diferente, aí, sim, concordo que se possa e deva falar, mas não é o que a
autora Maria Barthez faz. Sintomático, é por exemplo, que a autora não
confronte fontes de informação que se avançavam sobre as manifestações
populares, dentro do campo semântico do Estado Novo e dos seus mecanismos,
como, por exemplo, as posições do Conde da Aurora que descreve os carros da
Parada como «teorias»: a teoria das vessadas, a teoria do pão, as teorias dos
frutos das espadeladas de todo mister
do linho… (In Revista Ilustrada de
Cultura literária scientífica e artística, vol II nº 10, Porto, 1929. Dizer
também que estas experiências de apresentação das teorias na Parada são uma
antecipação do que vai ser a «etnografia do regime» do Estado Novo depois de
1935 também não me parece correcto, dado que estas representações eram
frequentes e comuns nas festas, nos teatros; a espectacularização das tradições
e dos momentos rústicos regionais já andava feita na literatura, entrou para a
fotografia, era uma prática comum desde o século XIX em toda a Europa; a
representação de quadros de costumes estava já institucionalizada em alguns
países, em museus… (a continuar)
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