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terça-feira, outubro 29, 2019

As contas que vão ficando por fazer: o Estado Novo e a cultura popular (1)


 Está na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, uma exposição que deveria passar por Braga, assim deixo esta recomendação às autoridades da cultura municipal local. Trata-se da exposição «Sarah Affonso e a Arte Popular do Minho», a artista modernista (1899-1983), casada com Almada Negreiros, cujos trabalhos decorrem dessa fonte de inspiração que denominamos o folclore , o qual terá marcado profundamente a sua vivência em Viana do Castelo entre 1904 e 1915.
(Foto de: Sarah Affonso, Estampa Popular (Casamento na Aldeia), 1937 
Óleo sobre tela, Museu Calouste Gulbenkian, tirado de: https://www.pontedelimacultural.pt/actualidade-subpag.asp?t=paginas&pid=2038
Na mesma data de Sarah Affonso, nasceu em Braga Francisco Martins lage, cuja memória de vida é lembrada e estudada em livro da autoria de Maria Barthez, editado neste corrente ano pela Gradiva, com o título Memória de Francisco Lage, da prática à teoria.


https://www.fnac.pt/Memoria-de-Francisco-Laje-Maria-Barthez/a7142680
O que poderá haver de comum entre as duas obras que acabei de referir é tudo de quanto hoje se ocupam os animadores culturais que tomaram o folclore como fonte inspiradora ou como recurso temático ou como representação cultural. 

No cruzamento das duas obras vai ficar durante 41 anos o Estado Novo e as suas políticas culturais, como também continua a estar a democracia que já leva 45 anos de regime, ou seja, Sarah Affonso e Francisco lage são assuntos paradigmáticos para nos percebermos e para nos considerarmos, nós os do Minho ou que aqui vivemos, uns privilegiados enquanto objectos de estudo, de pintura, de representação. 

Quem vir a exposição e quem ler o livro de Maria Barthez há-de, certamente, questionar-se sobre, pelo menos, cem anos do nosso desenvolvimento cultural. Uns irão ficar com muitas certezas, outros com muitas dúvidas, especialmente os que lerem o livro acerca das dinâmicas culturais de Francisco Lage e das suas relações com o SPN/SNI (Secretariado da Propaganda Nacional / Serviço Nacional de Informações), onde esteve quase sempre integrada a sua acção enquanto profissional da animação cultural institucionalizada. 

Vou dedicar alguns artigos a este assunto. Francisco Martins Lage nasceu em Braga, na freguesia de São Lázaro em 19 de Dezembro de 1899, filho natural de Maria Angelina de Sousa Machado, empregada, serviçal, de José António Martins Lage; são referidos os avós maternos (Joaquim Sousa Machado e Maria Teresa Gonçalves), mas não são referidos os paternos. Estudou no Liceu Sá de Miranda, fazendo a quarta classe em 1907, com 8 anos, e em 1911 foi para Lisboa estudar teatro, terminando o curso de arte dramática em 1913 com elevada classificação. Em 1920 Lage casou com Grácia da Purificação Pedreira de Almeida, sem descendência. O pai era capitalista e foi sócio da empresa A Bracarense (empresa de tecelagem de paramentos, mas que em 1926 o filho orientou para a tecelagem civil; a empresa encerrou em 1930). O primeiro artigo de Francisco Lage foi publicado em 1916 na revista Terra Portuguesa sobre «cobertas estampadas». Afirmou-se como dramaturgo, autor de peças com temática regionalista, sobre o mundo rural,  sobre história, e como etnógrafo, sendo considerado à época «uma das pessoas que mais sabia, entre nós de folclore e etnografia». 

Em Braga, a partir de 1926 escreveu para o Correio do Minho; exerceu o cargo de vogal da Comissão Administrativa da CMB. Em 1929 relacionou-se com António Ferro e neste mesmo ano organizou a parada etnográfica e agrícola no âmbito das festas de S. João (3 mil figuras, duzentos carros, 2 quilómetros de ruas da cidade) e o III Congresso do Minho e Feira das Amostras da Província, em Viana do Castelo. A parada foi considerada espectáculo de grandeza comovedora e teve representação de usos e costumes ligados à vida rural, segundo o calendário agrícola. Exemplos de carros: o carro das podas, o carro da pruma, o carro do tojo, o do sargaço, o do pão, o da casa, o do linho, o da lã… 

Em 1929, Francisco Lage estava apostado em «tornar Braga uma cidade moderna» (p. 27); ora é precisamente sobre este desiderato que se deve colocar a questão: porquê mobilizar os quadros da sociedade rural para tornar uma cidade mais moderna? Porquê mobilizar para a modernidade a entrada de todas as obras entretanto elaboradas no âmbito da etnografia e da antropologia como valor patrimonial, como arquivo, como «objectos a salvaguardar? Porque era assim que procediam as cidades modernas pelo mundo fora? Lage queria fazer o que de mais progressivo se fazia no estrangeiro e vai daí… fez como sabia que se fazia: mobilizar a sedimentação cultural do mundo rural e despejá-la na modernidade desejada. Como? Em Museus, em Paradas, em Desfiles, em Exposições, em Indústrias Culturais… 

(a continuar)

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