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terça-feira, dezembro 19, 2006

Deveres de ofício: de Novembro a Dezembro


São os cactos da nossa janela, ao cuidado do tempo e das mãos da Tininha que os preserva como os dias, espinhosos e floridos, tão intensos de dores como de cores. Os extremos dão jeito à delimitação das isotopias do sentido e esta dos cactos veio a propósito. Que se preservem as imagens, as reais e as da literatura, umas e outras acabadas nas palavras.
De Novembro, ficaram os dias, agora, reduzidos a memórias breves, uma, a dos aniversários de amigos e de familiares, dada pontualmente pelo calendário do telemóvel, outra, a dos trabalhos escolares, esta sempre apagada e recalcada pelos seguintes, que seguem todos ensarilhados uns nos outros, os de trás avisando sobre os da frente e estes não querendo saber dos avisos e continuando sempre a mesma pressa de consumo e de esquecimento. Será marca da idade, defesa da própria vida contra as veleidades que os trabalhos futuros trazem agarrada a si, como se fossem os decisivos do nosso entusiasmo. E depois passam e foram o que pareceram, gastadores de sabão. Mas a graça está em fazer bolinhas e vê-las sair e vê-las pousar e vê-las sumir. Mas talvez eu esteja mesmo a escrever isto movido pela memória do livro «Quatro Estações», poemas de Mário Dias Ramos e fotografias de Miguel Louro, que eu fui, com os autores, apresentar ao Diana-Bar da Póvoa de Varzim, esse espaço de animação que a autarquia povoense mantém em ritmo de cruzeiro, no fim de tarde de 25 de Novembro: os poemas, disse o autor, beberam o sentido no envelhecimento do corpo, no cansaço da vida, na utopia de um lugar outro que vem empurrar este; as fotografias, disse eu, beberam a luz na fuga de si mesma contra o tempo, evitando o contacto próximo com as coisas, as casas, as ruas, os corpos, o mar. Precisamos de continuar a pensar que não nos esgotámos, caráspite!

A bola - duas idas às Antas foi obra, mas os convites fizeram-se para isso e gastaram-se assim. Só me falta agora uma terceira vez para confirmar a roleta do azar. Já por uma vez, aqui há anos, num jogo Porto-Real Madrid, eu saíra com amigos de Braga e com o bilhete para meu pai que me esperava à porta do estádio, ainda o velho; eu saíra já tarde, mas todos nos fiáramos na leveza da auto-estrada. Foi bonita a angústia de não ver saída que não a de seguir em frente, naquela fila ronceira de carros e mais carros, que houvera acidente lá algures e o trânsito entupira. E eu no carro, éramos cinco e dois miúdos, então, carro que nem lhe adiantara nada ser rápido e ser seguro e ser jipe! E meu pai à minha espera! Entrámos para o Estádio a cinco minutos da segunda parte. Agora: Porto-Arsenal. Desta vez pareceu-me o tempo de saída de Braga demasiado cedo, mas aceitei que o azar nos pudesse visitar de novo e considerei o horário uma questão de seguro. Éramos quatro. Que a pariu, à auto-estrada e a mais quem lá anda convencido que é larga e rápida e segura. Que o pariu, ao acidente lá na frente e a quem o viu ou por ele passou a esganar-se e a esganar quem fosse e pudesse agarrar. Que me pariu a mim que aceitei o convite de meu irmão, que saiu de Lisboa uma hora antes de eu sair de Braga, e me esperaria religiosamente com o bilhete na mão até eu chegar se entretanto não me tivesse ocorrido uma troca de vítimas, ele pelos filhos dos colegas com quem ia, que localizaram meu irmão por telemóvel e lhe ficaram com o meu bilhete. Já passavam vinte minutos da primeira parte quando entrei nas Antas, e quando abracei meu irmão já passavam vinte e dois, tal foi a pressa com que subi um ror de escadas. Eu já fiz a promessa de voltar a viajar com o mesmo condutor e com os mesmos amigos na hora de morrer, que assim chegaremos todos atrasados, e bem. Mas se houver uma terceira hipótese, há-de ser com bilhete na mão e saída de véspera. Sempre quero ver se o destino ou o azar, que é seu parente, têm os cornos afiados.

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