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quarta-feira, dezembro 16, 2020

Leitura de MOVIMENTO, um livro de poesia II

 O poema é, em primeira análise, uma mancha gráfica, um formato regular, um hábito de apresentação da escrita: alinhamento à esquerda e extensão à direita variável, consoante o ritmo requerido pelo discurso; nessa mancha sobressaem de imediato parênteses que contêm sintagmas discursivos que interrompem a linearidade discursiva da voz principal, obrigando o leitor a atar os fios de sua leitura (ler a segunda voz, dialogante com a primeira). O poeta João Luís Barreto Guimarães já se explicou em entrevista passada como produz e por que produz assim; o que me ficou é que a mancha gráfica obtida em cada poema era para ele uma matriz de sentido visual, como o plano do arquitecto que dá a casa por concluída, ainda que no papel; o poema fica realizado quando o sentido expresso ou criado se integra numa forma que também satisfaz o olhar. A mancha gráfica é o corpo com que o poeta faz viver para a leitura o seu poema. Posto isto (das relações entre forma e formato e conteúdo e sentido e discurso e ritmo frásico e vocalização, falaremos depois).

O segundo movimento cósmico do livro é o dia do sol, o princípio estruturante, criador... (faz bem o leitor em procurar o livro dos símbolos nas culturas). O poeta começa o dia do sol pelos mistérios ou deveres ou ofícios de dar e tirar a vida, revisitando a tradição da matança do animal de corte, pelo avô da família, o guardião dos gestos precisos e orientados. Depois mergulha no movimento da ironia e da pilhéria social com uma diatribe sobre o religioso acumulado pelos oficiantes da palavra, os clérigos, também ele devedores de seu ofício ao sol. É vicentino e pícaro o poema  sobre o mercado de Natal, é um libelo sobre os desafios do capitalismo que alastra no bem-estar das cidades europeias, tomando Viena como centro de ajuntamentos, lembrando a lua a herança árabe. A poética chega também aos vermes que nos roem, como o do envelhecimento, mas exibem-se primeiro como ofertas publicitárias, só depois como solidão inscrita nas casas e nas famílias. Mostar continua como exemplo de integração das diferenças ou da sua tolerância e Deus continua como razão ou hipótese para a complexidade do universo, reinventada que pode ser em buracos negros.

A vantagem de um leitor é poder sentir, citando de viés o Pessoa.


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