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quarta-feira, janeiro 16, 2008

Sobre o «novo modelo» de governação das escolas

(Fotografia de «parede rústica» na casa de FR no lugar de A do Cavalo, freguesia de Moreira de Rei, concelho de Trancoso. JM)

O novo projecto de Decreto-Lei sobre o regime jurídico de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário encontra-se em processo de consulta pública até ao dia 31 de Janeiro.

O que é que de diferente se prevê em relação ao actual regime? Tudo, embora possa parecer que se trata de um modelo que apura o anterior. Há duas novidades que são tudo em que consiste a diferença: trata-se de instituir a figura do Director da Escola (escola aqui entendida como agrupamento de escolas ou agrupamento de agrupamentos) e trata-se de instituir um Conselho Geral que não seja presidido por professores e onde estes não estejam nunca em maioria. Dos dois outros órgãos, o Conselho Pedagógico é compreendido agora como uma mera extensão do Director e o Conselho Administrativo mantém a sua definição.

Na verdade trata-se de introduzir um novo modelo de governação das escolas, assente em dois pilares fundamentais: o reforço da participação das famílias e comunidades na direcção estratégica dos estabelecimentos e a constituição de lideranças fortes na direcção executiva dos mesmos. Como se sabe, o anterior modelo assentava também nestes dois pilares fundamentais que originavam dois órgãos: a Assembleia de Escola, presidida por um professor e a Direcção Executiva, um órgão colegial, presidido por um professor. Onde estão as diferenças: numa palavra só: a linguagem deste novo diploma acentua por demais essa ideia peregrina de que a escola deve ser entregue à comunidade e o seu director presta contas à mesma e ao Estado. A diferença está num tom de autoritarismo indisfarçável. A diferença está numa vontade de experimentar um caminho que se pensa ser de mais responsabilização individual e de maior controle social, duas componentes da demagogia contemporânea que sempre foram, na essência, contrárias à própria ideia de escola conduzida pelos conhecimentos e, ela sim, vigilante sobre o corpo social, estudiosa e crítica.

Desejava-se que fosse esclarecida e fundamentada esta vontade de mudança, com base não só em estudos que apontassem os defeitos ou as insuficiências ao modelo vigente, mas também em estudos que apontassem para a eficácia do novo modelo e que não fossem outros senão esse argumento estafado que um líder só governa melhor que um órgão colegial ou que um órgão presidido por um professor é mais incapaz que um órgão presidido por um não docente. A leitura e o estudo atentos do diploma deixam-nos a convicção que se trata de mais um experimentalismo inconsequente, alicerçado num basismo democrático que conduzirá, estamos certos, à paralisia e ao abastardamento das funções da escola e dos seus métodos, para além de ser fundado nessa ideia corruptora de que um director que presta contas é mais eficiente que um conselho de gestão eleito democraticamente. Dizemos experimentalismo inconsequente não porque não venha a ter consequências, mas sim por estar no seguimento de outros experimentalismos sobre os quais não se faz a devida ponderação de consequências, como é o caso da mais recente experiência das Assembleias de escola, por exemplo. Dizemos basismo porque, no contexto de uma democracia representativa, esta ideia de entregar a direcção estratégica das escolas à comunidade dos pais ou das instituições culturais, é uma derrogação das prerrogativas essenciais do sistema escolar obrigatório, universal e gratuito que a Nação já contratualizou com o Estado através do Governo e que inscreveu na sua Constituição e na Lei de Bases. Querer que a comunidade escolar, através de sucessivas esferas de representação, esteja constantemente a escrutinar a escola é aceitar a corrupção do sistema escolar pela lógica dos interesses circunstanciais e epocais.

O preâmbulo deste Decreto-Lei polariza-se em torno de duas unidades de sentido: as escolas cumprem uma missão de serviço público e a sua direcção deve ser uma liderança forte, capaz de executar com eficácia as medidas de política educativa. O Estado pretende reforçar a sua autoridade, na sequência de anteriores medidas, como a alteração do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, a prática de reunião regular com os Conselhos Executivos e a organização destes num Conselho das Escolas, a delegação de competências de gestão e os procedimentos de avaliação externa das escolas.

Este reforço da autoridade faz-se reduzindo o papel liderante dos professores na escola, quer por redução dos mecanismos de representação dos grupos disciplinares no conselho pedagógico, quer por constrangimento das funções docentes sob o espectro de mecanismos exteriores de avaliação, quer ainda por declaração explícita de que não deve ser um professor a presidir ao Conselho Geral e que os professores não devem estar em maioria neste órgão. Este discurso anti-professor, a ter os fundamentos legítimos que deviam ser os da sua dedicação inteira aos aspectos do ensino e da aprendizagem, deveria então ser mais coerente e estender-se à Direcção Executiva da escola. Mas aqui o legislador preferiu preparar o caminho para que a escola seja presidida por um fiel serventuário do Estado, como se verifica pelo estatuto e pelas funções que lhe são atribuídas.

Por outro lado, a par do reforço da autoridade central, o diploma pretende conseguir também o reforço da autoridade da comunidade sobre a escola, ou seja, o reforço da participação das famílias na direcção estratégica da escola. Esta abertura da direcção das escolas à comunidade escolar que é constituída pelos pais, pelos alunos, pelos professores e pessoal não docente, mas também pelas autarquias e pelas instituições e organizações económicas, sociais, culturais e científicas da comunidade local, será conseguida através da instituição de um órgão próprio, o Conselho Geral, ao qual competirão as funções de aprovar o Regulamento Interno, aprovar o Projecto Educativo e o Plano Anual de Actividades, acompanhar e fiscalizar as suas concretizações e eleger o Director da Escola, o qual tem de prestar contas da gestão a este órgão.

Há na definição deste órgão uma semelhança com a anterior previsão da Assembleia de Escola, só que esta podia e devia ser presidida por um professor. As funções também parecem as mesmas, mas agora há uma novidade: o Conselho Geral elege o Director – Director com maiúscula porquanto o indivíduo é em si mesmo um órgão de poder – elege-o de entre candidatos ao cargo com programa de acção. E o Director vai responder perante este Conselho Geral, presidido por um não docente, através de relatórios periódicos, podendo ser destituído ou não reconduzido caso a sua acção desagrade ao Conselho Geral.

Quanto a esta representação do Director, não se criem ilusões sobre a sua dependência directa e exclusiva da Tutela, pese embora seja eleito pelo Conselho Geral. O facto de poder ser candidato qualquer professor de qualquer escola com perfil adequado, acumular as funções da gestão administrativa, financeira e pedagógica, designar os representantes das estruturas de coordenação e supervisão pedagógica (nomear os coordenadores dos departamentos curriculares, os coordenadores dos directores de turma e os directores de turma), já é suficiente para o aproximar de um estatuto de «super-homem», com todo o poder que há para exercer, como também é suficiente para o conduzir à mais absoluta dependência de lógicas locais e de parcialidades de temperamento ou de estilo.

Por sua vez, o Conselho Geral dificilmente será o que pretende: a sua composição resulta de uma aritmética de percentagens: nenhuns representantes devem estar em maioria, mas o presidente não deve ser professor. Os modos de exercício das suas funções ou hão-de decorrer do livre arbítrio dos seus membros e das antinomias ou sintonias dos seus ideais, ou, se calhar o mais certo, hão-de acabar por ser regulados superiormente, caso não haja consensos nem boas vontades estratégicas. Nenhuma das anteriores insuficiências da Assembleia de Escola foi superada e nenhuma nova se lhe acrescentou. Aliás, permita-se o desabafo de quem já foi Presidente da Assembleia de Escola, dadas as omissões da Tutela à assembleia de escola, tudo se mantém para o órgão que a substitui ser uma fachada sem destino. Abre-se uma caixa de Pandora, vamos ver como se fechará e quem o fará.

Dissemos atrás que este modelo é um experimentalismo inconsequente. De facto trata-se de experimentar um modelo que funciona por aí em outras sociedades, mas que não teve nem tem tido qualquer tradição de uso na nossa. Por este facto, experimente-se. Mas não é isso que nos deve impedir a sua discussão. Se o próprio diploma legal reconhece que na gestão actual das escolas há boas lideranças - «Sob o regime até agora em vigor, emergiram boas lideranças e até lideranças fortes e existem até alguns casos assinaláveis de dinamismo e continuidade», se o preâmbulo do diploma expõe desabridamente a ideia de que a autonomia que se tem praticado ainda não conduziu a qualquer mudança substantiva nas formas de gestão e nos seus resultados, fica-se desconfiado da generosidade que se põe na defesa de um modelo que carrega o sistema sobre os ombros de um líder com perfil e com projecto de trabalho. Temos uma costela sebastianista entranhada e ela aflora a cada passo. É certo que a autoridade decorre de um contexto e de um regime, mas os seus mecanismos, numa sociedade democrática, têm de ser transparentes e explícitos.

Dissemos atrás que este modelo é basista na defesa do poder da comunidade local sobre a escola. Numa democracia representativa, em que a sociedade escolhe o governo, há muito quem defenda que a consulta das bases se deve fazer a toda a hora e momento e que os órgãos, certos órgãos ao fim e ao cabo, até devem ser entregues ao poder das comunidades locais para funcionarem nas condições de amadorismo extreme. Devemos perguntar-nos: houve mudanças de resultados quando se introduziram os «representantes» da comunidade escolar nos seus órgãos? Se alguém as conhece, que as publicite, mas não será esse o caso dos legisladores que afirmaram textualmente neste diploma: «Finalmente, o presente decreto-lei corresponde a um terceiro objectivo: o reforço da autonomia das escolas. A necessidade de reforçar a autonomia das escolas tem sido reclamada por todos os sectores de opinião. A esta retórica, porém, não têm correspondido propostas substantivas, nomeadamente no que se refere à identificação das competências da administração educativa que devem ser transferidas para as escolas

Este diploma é um «chutar a bola mais para a frente» dentro desses princípios «politicamente correctos» no tempo de hoje que são os de querer agradar ao povo e ao Estado. A escola é concebida como mais uma instituição social que ora deve ser gerida de baixo para cima, ora deve ser controlada de cima para baixo, dentro dos parâmetros da gestão política corrente: hoje reduzir os números disto, amanhã daquilo, depois daqueloutro. Na linguagem insiste-se no crescimento da autonomia organizativa das escolas, mas sempre dentro de um quadro restritíssimo e num contexto de mera regulamentação interna por questões de funcionalidade. Os pressupostos de que um conselho pedagógico liderado pelo Director com menos gente funciona melhor do que um conselho pedagógico liderado por outro professor e com mais representantes dos diversos saberes disciplinares têm-se revelado arbitrários: o que os faz funcionar é a qualidade das intervenções pedagógicas e dos projectos de trabalho. Um Director e pouca representatividade podem ser o caminho mais rápido para a subserviência e para o acriticismo deste órgão.

Na verdade, uma leitura atenta dos princípios gerais e dos princípios orientadores espelha bem a leveza teórica do diploma: a linguagem dá para tudo, para associações, para empresas, para escolas, mas as escolas deviam merecer a riqueza da terminologia que lhes é própria e não serem abafadas por ideias de «banalidade» genérica: o binómio educação e ensino merecia mais rigor na especificação dos seus princípios. Os saberes, as disciplinas, as aprendizagens, perdem a centralidade. Sobram os alunos, as pessoas, mas isso não chega para fundar a escola.

A governação das escolas é um argumento dos sistemas políticos e este diploma espelha bem o estado em que perspectiva esta relação, neste caso de absoluta subalternidade da escola em relação a determinadas políticas de desenvolvimento social, pautadas pela guerra partidária de gestão dos interesses locais na colocação dos quadros do Estado e pela sintonização dos saberes e das aprendizagens com a satisfação imediata das clientelas escolares.

José Hermínio da Costa Machado, PQND 1º Grupo da Escola EB 2/3 Dr. Francisco Sanches, 10 Escalão, Professor Titular.

1 comentário:

Anónimo disse...

É uma avaliação justa, desassombrada e bem argumentada. Parabéns.