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segunda-feira, janeiro 28, 2008

A furiosa autonomia

Já vou nos 55, mas ainda me lembro bem de a argumentação dos novos, eu andava também longe dos dezoito, quando se afirmavam desejosos de ter 18 anos ser precisamente esta: para poder fazer o que os outros fazem, os outros eram os mais velhos. Queria-se chegar à idade de poder fazer o que faziam os outros, com dinheiro ou sem ele, com recursos ou sem eles, embora já fosse quase garantido que o crescimento e a idade traziam trabalho e com o trabalho vinha algum dinheiro. E fazer o que os mais velhos faziam era quase em primeiro lugar fumar, comer e beber, largar dos pais, depois namorar e sair com raparigas, a seguir ter essa liberdade de ir aonde nos apetecesse, sair de casa a horas e desoras, gastar o dinheiro no que bem quiséssemos desde que chegasse. Estava-se morto pela idade da autonomia para copiar a autonomia dos outros, para assumir o poder que eles tinham e que se julgava ser esse mesmo, o de fazer o que queriam, que agora sabemos bem que foi o que tinha de ser, que é sempre o que tem de ser, ou melhor, que é sempre o que pode ser, que nós não somos livres de fazer tudo, ainda que hoje assim pensemos ou tenhamos tendência fácil a pensar assim. Durante alguns anos da minha vida andei pois entusiasmado com esta ideia de chegar à idade da minha autonomia. Cheguei e nela ando, mais ou menos iludido dos seus poderes e cada vez mais acostumado aos seus limites.

Ter autonomia era o sonho de gente miúda, esse sonho de crescer e usar o poder que o crescer nos dá, antes de mais esse poder de fazer como os demais, de os imitar no pior da liberdade, que é, em muito tempo da nossa idade, o melhor que ela tem, o poder de exceder, de abusar, de experimentar limites, de fazer pior, de bater com a cabeça na parede, de aprender à nossa custa. Estou que ainda hoje é esta fome de autonomia que nos regula os passos e nos espevita o desejo de a conquistarmos e não abdicamos dela, só porque ela nos dá precisamente este poder.

Estou que ainda hoje é este desejo de fazer o que os outros fazem, de ser poder como os outros são, de mandar como os outros mandam, de tomar a iniciativa que os outros tomam, de ser senhor de si como os outros são, que guia a vontade de crescer e de ser autónomo. Estou que é assim ou não visse eu chegarem as gerações à idade de se manifestarem autónomas e calcorrearem os mesmos trilhos da asneira e do abuso, da experimentação e da cabeçada. Estou que é assim pelo que vejo fazer nas escolas mal se alcança algum sinal de autonomia, alguma delegação de poder, alguma capacidade de iniciativa própria: a tendência primeira e imediata é precisamente essa de se imitar quem manda e como manda: abusar sobre os outros, ganhar ares de poder, exibir capacidade de decisão arbitrária. É claro e dou-o de mão beijada que esta argumentação parece desdenhar da liberdade conquistada, mas não caio nessa ilusão de esquecer as suas vantagens absolutamente necessárias: a autonomia traz a capacidade de aprender e de contornar os vícios, traz o poder de exercer o poder de forma diferente, traz o prazer da experimentação de caminhos alternativos. Pois traz e trará, mas na sua génese o seu obstáculo é ela própria e os excessos que a acometem, como se vê pelos ciclos de história e pelas narrativas de libertação que lhe andam associadas, até como se vê por esse princípio maquiavélico de que a autonomia do poder está na autonomia dos gatilhos.

Dou comigo a pensar nesta febre escolar de autonomia para a nova governação das escolas e deduzo, pelos sinais da pouca e alguma que já temos, que o seu uso será precisamente aquele que já o era no princípio da crónica, o de imitar o poder e quem o tem. Quer-se a autonomia para decidir como outros já decidiram. Mas pode ser para melhor, sugerem os ingénuos, pois pode, dizem os cépticos, pois é sempre para pior, dizem os calejados. Quem quer ser grande só olha para a frente e os exemplos da frente não são, hoje como ontem, mas hoje de modo mais grave, porque já tivemos tempo de corrigir e já tivemos maus exemplos de sobra, os de quem quis ser autónomo para ser mais humilde ou os de quem quis ser autónomo para melhor servir os outros. As euménides, as benevolentes deusas que venceram as fúrias, que as perseguiram e castigaram e quiseram corrigir, vieram precisamente depois das fúrias e nunca as impediram. Ficaram na posição de as vigiar. Pois que actuem.

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