Termino hoje o artigo que escrevi para celebrar os 80 anos do Grupo Folclórico das Lavradeiras de Santa Marta de Portuzelo
III (última parte)
Em ano de celebração dos oitenta anos do GFLSMP, no seguimento dos estudos que fiz sobre a história do mesmo, torna-se pertinente uma reflexão mais extensa sobre o alcance deste tipo de instituições que são os grupos folclóricos e que resultaram precisamente daqueles dois movimentos, o do progresso e o da salvaguarda de tradições, que marcaram a confirmação da modernidade a partir da segunda metade do século XIX, embora muitos deles só se tenham concretizado na segunda metade do século XX.
·
As novidades do movimento
fundador.
Em 09-01-1940, no
âmbito das acções que a Sociedade de Instrução e Recreio Santamartense
desenvolvia, com aquele propósito cultural de levar cada cidadão seu «a deixar
de ser bicho-do-mato», exibiu-se o Rancho Regional de Santa Marta, com 40
elementos em palco, após a representação de duas comédias, «Um casamento
político» e «Um namoro engraçado»; o rancho interpretou canções a 2 e 3 vozes,
dançou o vira e executou a marcha de Santa Marta, com letra do Dr. Sousa Gomes,
sobressaindo a voz da cantadeira Maria das Dores Araújo. A festa terminou com a
intervenção do Jazz Oriental Vianense. O Dr. Sousa Gomes tinha então 32 anos de
idade, mas chegara a Santa Marta no ano anterior para exercer como médico na
Casa do Povo; formara-se na universidade de Coimbra, cujo orfeão universitário
integrara, embora fosse natural do Porto, da freguesia de Paranhos, onde nasceu
em 1908. A 05-04-1940, no mesmo salão de festas da Sociedade de Instrução e
Recreio Santamartense, foi feita a apresentação oficial do Rancho das
Lavradeiras de Santa Marta de Portuzelo, após a representação de duas peças, uma
opereta e uma comédia, «As botas do papá» e «Irene», ambas da autoria de Sousa
Gomes, o qual justificou o espectáculo como propaganda da terra e da região e
enriquecimento do folclore nacional. Estavam presentes representantes dos
grupos de Carreço e da Meadela. Ficou assente a promessa de o grupo estar
presente na celebração dos Centenários a 2 de Junho próximo. Em 28 de Junho de
1940 o grupo está presente em Guimarães na festa dos centenários, data que vai
acabar por constar no informe oficial de fundação do grupo. Em 16 de Agosto de
1940, na celebração do centenário da Independência de Portugal, Eduardo Sousa
Gomes diz que o grupo foi fundado em Março de 1940.[1]
Este conjunto de dados
permite constatar que a fundação do grupo se inscreve numa prática cultural e
recreativa que tem já um lastro de tradição na terra e na região, permite
constatar que a génese do grupo decorre de uma intensidade de trabalho artístico
marcada pela criatividade, pela variedade e pela mistura de elementos
culturais, os da tradição e os da contemporaneidade, permite constatar a
pretensão de um carácter de representação regional para a identidade do Rancho,
que depois passará a Grupo, e permite constatar como a conquista de autonomia
de fundação se inscreve em primeiro lugar no interior da freguesia, embora
sentindo o apelo a uma génese no interior dos objectivos do Estado Novo. [2]
O enraizamento do rancho
ou grupo no género de espectáculo de revista, género que dava liberdade de
composição e de tratamento estético dos temas ao autor e director, ainda para
mais sendo este capacitado em termos literários e musicais, funcionou
plenamente com a iniciativa da Festa das Colheitas a partir de 1943 e com a
revista «À moda de Viana»,[3]
em 1944, revista documentário folclórico e etnográfico em 1 prólogo, 2 actos e
sete quadros; esta revista, ou melhor o conjunto de quadros do viver rural, foi
levada a Lisboa, Évora, Beja e Faro, atingindo os maiores aplausos e o
reconhecimento, no dizer de José Rosa Araújo, de que se tratava plenamente de
uma propaganda animada que visava satisfazer a curiosidade sobre o regional.
Desta criatividade, possuindo então um grupo coral, uma orquestra típica e um
grupo de teatro, ficou essa cantiga cantada de norte a sul, o «Todos me
querem», (cuja autoria atribuo ao dr. Sousa Gomes, mas para a qual ainda não
encontrei as provas cabais),[4]
cantiga que o comandante do navio que transportou o grupo à Finlândia em 1952,
aos Jogos Olímpicos de Helsínquia, mandou policopiar e distribuir por todos os
tripulantes e passageiros do mesmo.
A pretensão de
representação regional, em termos de repertório, consistiu não só na
consideração dos recursos poéticos, coreográficos e musicais, provenientes dos
lugares da freguesia, mas também nos conhecimentos e influências de elementos
componentes do grupo, num tempo em que o que se sabia cantar, tocar e dançar
não se subordinava a critérios de lugar, antes se inseria num mercado de
valores simbólicos que estava ao alcance de todos; de igual modo, esta
representação regional tirava partido de quadros e rituais festivos, como a
festa das rosas, por exemplo; finalmente, esta vontade de representação
regional, encarando bem influências de repertório de outras freguesias,
garantia as contrapartidas do reconhecimento e da notoriedade a toda a região,
começando por favorecer principalmente as festas de Viana do Castelo, com as
quais o dr. Sousa Gomes se comprometeu muito cedo.[5]
Recuperemos então, em síntese,
toda a riqueza do estilo de revistas e de colaborações musicais e de inserção
na freguesia e na região, para justificarmos a ideia de arreigar a génese do
grupo na dinâmica local da freguesia e não nos apelos de uma política cultural
do Estado Novo. Vejamos, há grupos que funcionam quase na perfeição desde o
início, quer pela composição diversificada dos seus elementos, quer pela
qualidade da tocata e das vozes e do corpo coreográfico, perfeição esta que
serve às mil maravilhas a demonstração das potencialidades locais e regionais
que a política cultural do Estado Novo acaba por mobilizar. [6]
A política levada a cabo
por António Ferro, e materializada pelos vários departamentos do SNI/SPN, tinha, à altura, meios de persuasão e de
visibilidade que não deixaram escapar a qualidade estética dos grupos
folclóricos. Isto não quer dizer, de modo algum, que estes tenham estado ao
serviço do Estado Novo, como a cada passo alguns estudos procuram evidenciar.
Quem seguir de perto as justificações, os discursos em cerimónias e os
agradecimentos públicos, depressa se dá conta de que é a causa do local que se
expressa orgulhosamente de acrescentar valor à causa do nacional. Já Abel Viana
evidenciara documentadamente, juntando, por exemplo, provas de que as festas de
Viana na primeira vintena do século XX já tinham a presença de pequenos ranchos
das freguesias na festa do traje, mostrando, também, que havia uma variedade
extensa de instrumentos musicais nas tocatas populares, destacando os de
introdução recente e os estranhos ao uso tradicional, explicando, até, que o
espírito nacionalista e o espírito bairrista andavam juntos desde a instauração
da República e que a partir dos anos 20 as festas com esse carácter misto se
generalizaram. Não poderemos pôr de parte as emergentes condições que tornaram
possível viajar, sair do espaço matricial da aldeia ou freguesia, conhecer
outras terras, ir ao estrangeiro; esta ânsia de viagem tornou-se estratégia de
relação social, de conhecimento de desenvolvimento pessoal e social. Os
problemas concretos que foi necessário resolver para concretizar saídas e
viagens testemunham por si os contextos de vida e de relação: obter a
autorização dos pais, ir acompanhado de familiar, obter o passaporte, enfrentar
as admoestações do senhor abade sobre usos e costumes, «depurar» modos de estar
e de ser em situações de convívio, adquirir métodos e sinais de representação
de uma identidade, ajustar mentalidades e quadros mentais, relacionar, comparar
povos e práticas artísticas.[7]
·
O Estado Novo e a cultura
popular - os ideais da reprodução, recriação e estetização.
Em muitos estudos de
carácter etnográfico, antropológico, feitos no âmbito das ciências sociais e
humanas, dá-se o Estado Novo como fundador de muitos grupos folclóricos,
noutros estudos apenas como incentivador e motivador, noutros ainda apenas como
«legitimador» das iniciativas dos cidadãos ou das instituições que já vinham de
tempos mais recuados, mas em quase todos os estudos se afirma que o Estado Novo
«depurou» este género de prática cultural, do mesmo modo que o fez para museus,
galerias, jornais, livros, cursos universitários, currículos escolares, etc.
etc. Esta política de depuração das práticas culturais, de modo a elas ficarem
mais consentâneas com a afirmação das orientações promovidas pelo SNI/SPN, no
que diz respeito aos grupos folclóricos, consistiu em quê? Até que ponto se
pode falar de instrumentalização ou de manipulação?
Quando um grupo folclórico,
como foi o caso do Grupo de SMP, se desloca ao estrangeiro, a representatividade
nacional sobrepõe-se à local, mas aquela
é vista em função da história do país ou da política do governo? Em termos
locais, a resposta a estas questões é a de que a representatividade é em
primeiro lugar local e depois regional e depois nacional; no caso do
estrangeiro, a representatividade nacional é filtrada em primeiro lugar pela
cultura histórica do país. Sirva de exemplo, o cartaz ou prospecto que
anunciava em Londres a presença do GFSMP como exemplo da cultura fenícia do Sul
da Europa.
O tratamento da agenda
folclórica no nosso país foi, sob o ponto de vista da quantidade de estudos e
da qualidade dos mesmos, largamente promovido pelo Estado Novo e em
compaginação com os estudos de outros países, com apreço positivo por
tendências de apreciação ideologicamente separadas, veja-se o caso das recolhas
realizadas durante o Estado Novo pelos mais diversos folcloristas. O mesmo se
poderá dizer nas áreas científicas e nas áreas artísticas. A linhas de actuação
política de controle do poder e da opinião pública e da conformação dos ideais
de educação foram acompanhadas por vigilância policial, decorrentes da natureza
do regime e em coerência com os ideais de um modelo civilizacional, com as
divergências a serem vigiadas e reguladas por medidas repressivas, mas esta
visão do regime do Estado Novo e da sua natureza não pode esconder ou abafar as
vantagens culturais de quem não divergiu ou não o quis pôr em causa. Além do
mais, as populações e os grupos folclóricos, muitos anos depois do Estado Novo,
continuaram a pautar-se por ideais e por práticas culturais de continuidade e
de compaginação com as de outros povos.
Entre 1939 e 1947, ou seja,
entre o concurso da aldeia mais portuguesa de Portugal e o Concurso dos Ranchos
Folclóricos do Norte, as tensões entre uma concepção do folclore mergulhada nas
vivências da modernidade, servindo de exemplo e de motivação para novas
correntes estéticas e novos desenvolvimentos, no campo da música, da dança e
das artes, e uma concepção virada para a identidade etnográfica pura e dura,
imitativa das condições naturais da génese das práticas culturais musicais,
coreográficas e organológicas, desde o cantar ao tocar, desde o dançar ao
festejar, desde o vestir ao calçar, desde o ourar ao decorar, desde os
instrumentos da tradição aos meios e modos de produção dos bens essenciais,
desde as condições objectivas do mundo rural, entre 1939 e 1947, dizíamos,
estas tensões vão verificar-se num conjunto de «depurações», aqui tomado como
exemplo, as quais ocorreram sempre envoltas em polémicas, em directivas escritas
e formais, em conselhos irrecusáveis, em influências de nomes, de
comportamentos, de atitudes, de valores. Tenhamos presente que o Secretariado
Nacional de Informação e Cultura Popular foi criado por Lei, o Decreto-Lei nº
33.545 de 23 de Fevereiro de 1944. Eis alguns exemplos: a) depurar o folclore
autêntico do folclore revisteiro, área de misturas difíceis de discernir, mas
onde cabia toda a crítica aos espectáculos tipo revista, às composições de
autor; b) substituição da identidade «rancho» pela identidade «grupo», ou
distinção entre o conjunto de trabalhadores rurais e o conjunto de gente
congregada para uma actividade artística específica; c) depuração das práticas
decorrentes de usos e costumes rurais das práticas decorrentes de usos e
costumes urbanos ou de influência urbana; d) fixação rigorosa de trajares em
contraste com a mistura ou recriação dos mesmos por imitação grosseira ou mesmo
por invenção; e) oposição do conceito de autenticidade ao de contaminação ou
influência, através de inquéritos para apuramento dos valores da
«autenticidade»; f) influência na composição dos júris das provas e dos
concursos de modo a obter critérios mais homogéneos ou mais heterogéneos
conforme os equilíbrios necessários em cada contexto; g) introdução de regras precisas
sobre higiene, cortes de cabelo ou de penteado, unhas e pinturas de rosto,
merendas e convívios, atitudes e comportamentos no estrangeiro e nas
deslocações fora da terra, proibição de marchas musicais, crítica à exibição de
estandartes ou insígnias simbólicas, condenação do uso da pandeireta e de
outros instrumentos musicais considerados não tradicionais; h) delimitação dos
territórios de recolha ou de aproveitamento de repertórios...
A naturalidade de aceitação
e a resistência de aceitação das «depurações» andaram a par, perduraram no
tempo e no espaço, continuaram sempre a perseguir-se, umas vezes em oposição
frontal e declarada (recordemos algumas conhecidas afirmações do Conde d’Aurora:
«o folclore coveiro do folclore», a «proibição necessária de os grupos não
andarem de avião, nem de comboio, nem de automóvel», a preferência «por trajar
todo opovo da aldeia em lugar do grupo que o quer representar»). Hoje, estas
polémiocas continuam e há sempre quem se atreve a fazer dos «erros», das
«contaminações», das «influências», etc, caminho de afirmação. Este mergulho
profundo na procura de ideais etnográficos de pureza ou de autenticidade ou de
raiz ou de primitivismo, continua a fazer o seu caminho, está
institucionalizado, tem mecanismos de controle e de vigilância, não obstante
haver sempre grupos que parecem contrariar, resisitir, recrear, inventar,
mudar. Todos os grupos querem fazer o seu melhor e procuram sustentar as suas
práticas em argumentos de seriedade e de dedicação.
·
As pessoas e as relações
do compromisso cultural.
O dr. Sousa Gomes atingiu o
momento de crise em 1969, decorrente de muitos factores, assunto que merecerá
estudo. Em 1972 toda a dinâmica foi retomada devido ao empenho do novo director
Abílio Costa, homem ligado à construção civil e à gestão autárquica, com
enraizamento familiar no grupo. Até então e ao longo de 29 anos, Sousa Gomes
foi o líder consagrado de uma estética folclórica na qual vieram beber todos os
principais estudiosos da cultura popular, atingindo padrões de qualidade que
foram imitados e copiados na íntegra em outras partes do mundo sempre que se
tratasse de sustentar valores de identidade nacional, portuguesa, lusa. Neste
movimento de fundação e de sustentação do grupo foram absolutamente
determinantes as famílias que o assumiram como causa de prática e de discurso
cultural. Famílias como os Sales, os Lorsa, os Lopes, os Sordo, os Araújo,os
Cancela, os Oliveira, os Parente, os Antunes, entre outras. E os indivíduos que
a título pessoal, oriundos da terra ou das proximidades, deram o melhor do seu
contributo artístico ao grupo deveriam ser aqui lembrados.[8]
A curiosidade de Francis
Graça, o coreógrafo da Companhia Portuguesa de Bailado Verde-Gaio, ter
presenciado ensaios em Santa Marta e ter feito o convite a um ou mais elementos
do grupo para integrarem a companhia, o facto de Pedro Homem de Mello ter referenciado
a estética e a poética do repertório do grupo em livros, em poemas e em
comentários televisivos, após a visita e a familiaridade com o grupo, a
surpresa de a Academia de Coimbra ter vindo actuar a Santa Marta, o pormenor de
Amália Rodrigues, com casaco de peles e chinelas, ter estado presente em Santa
Marta, são dados significativos de um memorial que orgulhou os componentes do
grupo, a freguesia e a cidade de Viana. [9]
Uns dirão que a liderança
de Sousa Gomes responde a todas as dúvidas e confirma as qualidades
conseguidas: os seus méritos estarão na escolha dos elementos do grupo,
tocadores, dançadores e cantores, na sua preferência por juventude, no corpo de baile, na sua atenção às vozes
singulares e à coralidade, no rigor de trajares, conseguido com a dedicação
total de sua esposa D. Júlia, no cumprimento rigoroso de contratos intensivos,
na iniciativa de eventos paralelos à simples exibição de danças, nas suas
divergências permanentes com o pároco em defesa de um modelo de convívio e
integração geracional que levantava problemas de toda a ordem, na sua dedicação
pessoal exaustiva à causa da saúde e à causa do folclore, uma ajudando a outra,
aquela evitando a esta recusas de colaboração e esta dando àquela apoios
incondicionais e graciosos, na sua boa comunicação com o público e com as
autoridades e com os parceiros, na sua capacidade discursiva de compreensão de
si mesmo e do seu grupo nos momentos de esclarecimento do espectáculo, presença
em cerimoniais, representação externa em momentos formais, na sua concepção do
folclore como movimento mais estético que imitativo, mais recreativo que
reprodutivo, mais rigoroso que mecânico, mais ilustrativo que estereotipado,
mais alegre e efusivo que monótono e limitado. [10]
Oitenta anos passados,
metade em regime de Ditadura, metade em regime de Democracia, o GFSMP continua
a sua dinâmica de agente ou sujeito de animação cultural, com uma direcção
apostada em manter critérios de intervenção e de afirmação consolidados na sua
história e no desenvolvimento de estudos, pesquisas e actualizações de imagem.
Quem andar atento às publicações em rede facilmente se dá conta de um movimento
«revisionista» de algumas das modalidades de vivência folclórica, movimento
este, a meu ver, essencialmente decorrente de factores como o aumento
esponencial de recursos de imagem e de som, fotografias, gravações audio,
filmes, e do aumento dos estudos históricos e ideológicos de interpretação e
compreensão do nosso desenvolvimento.
Um dia, em conversa com
Helena Quesado, referi-lhe a recomendação de «não deitar nada fora» no
acumulado cultural do GFSMP, acrescentando os valores considerados relevantes
para novas abordagens e para actualização de propósitos. Curiosamente, este
movimento de revisão de algumas posições, sobretudo nas matérias do trajar e da
concepção de espectáculos públicos, está a coincidir, no tempo e nos espaços
festivos, com emergências notáveis de movimentos culturais, entre os quais
refiro:
a) a emergência das
práticas folclóricas de dançar e ocupar o tempo recreativo das populações, nas
cidades e nas festas ou romarias;
b) a emergência de novos
focos de estudo e de investigação, como é o caso do projecto A Música
Portuguesa a Gostar Dela Prórpia, de Tiago Pereira;
c) a emergência e
concretização de candidaturas de práticas musicais e poéticas a património
mundial ou a património da Unesco ;
d) as iniciativas
televisivas ou mediáticas, segundo um modelo de concursos ou de votações ou de
escolhas, de promoção de valores patrimoniais diversificados (paisagísticos,
coreográficos, gastronómicos);
e) a edição e reedição de
obras, tipo antologias, dicionários, biografias, de assuntos, autores, grupos,
agentes artísticos ligados à cultura, erudita ou popular, cruzando e misturando
perspectivas de abordagem.
Entretanto, os anos
acumulam-se, as biografias alimentam-se de histórias, a ideia de fundar um
grupo folclórico mantém-se como programa de acção e de desenvolvimento e a palavra
«folclore» fixou-se como uma das metáforas cognitivas mais em uso nos discursos.
Longa vida ao grupo Folclórico das Lavradeiras de Santa Marta de Portuzelo.[11]
Bibliografia
Jornal A Aurora do Lima. (Números referidos)
Mensário das Casas do Povo. (Números referidos)
Barros, Ana Catarina Braga (2018). Autoria, tradição e inovação no folclore do Baixo Minho: um estudo de caso da Rusga de São Vicente de Braga, Dissertação de Mestrado em Ciências Musicais Área de Especialização em Etnomusicologia, PDF, in https://run.unl.pt/bitstream/10362/70203/1/Tese_Ana%20Barros_Nr52122.pdf
Castelo-Branco, Salwa El-Shawan e Branco, Jorge Freitas (dir.) (2003). Vozes do Povo, A folclorização em Portugal. Etnográfica Press. Lisboa.
Machado, José (1991). Os Grupos Folclóricos: da iniciativa familiar à responsabilidade institucional, Água Mole Revista de Cultura Popular. nº 4, Braga, pp 36-51.
Pereira, Benjamim Enes (1965). Bibliografia Analítica de Etnografia Portuguesa. Instituto de Alta Cultura. Lisboa.
[1] Para documentar as afirmações salientadas a negrito, remeto o leitor para a consulta de:
- A Aurora do Lima, de 9 de Janeiro de 1940: «Pelas nossas aldeias – Um espectáculo em que o Rancho Regional da linda e populosa freguesia de Santa Marta faz a sua apresentação». Da autoria de Manuel A. Rodrigues, o relato deste espectáculo de apresentação do grupo constitui um texto exemplar da compreensão que então se fazia destas iniciativas: o autor começa por noticiar o acontecimento, ocorrido no sábado às 20:30 no «amplo salão de festas desta importante e próspera colectividade», mas antes de o relatar com mais pormenores reflecte sobre o alcance educativo e civilizacional destas associações locais de instrução e recreio que desenvolviam várias actividades: leitura de jornais e revistas, projecção de filmes, conversas, palestras, contacto com avisos e regulamentos, ensaio de grupos cénicos e regionais, preparação de grupos desportivos: «é nestas sociedades recreativas que o aldeão vai desenvolvendo a sua mentalidade, se vai habituando a emitir opiniões, a achar bom e decente o que na realidade o deve ser, e, sobretudo, porque se educa na fala e no gesto, tornando-se mais homem, mais sociável – ao passo que deixa de ser bicho do mato…» Esta dicotomia entre bicho do mato e homem sociável é recorrente na análise antropológica, próxima de outras dicotomias como natureza e cultura, primitivo e civilizado; num contexto de democracia tem um valor, num contexto de ditadura terá outro, é dependente de factores como a liderança, a autoridade, o exemplo, os desafios sociais e políticos, os salários, as condições de vida, mas remete sempre para a dicotomia da dependência versus autonomia, da servidão versus emancipação.
- Sobre a apresentação oficial do Rancho das Lavradeiras de Santa Marta, ver A Aurora do Lima, edição de 5 de Abril de 1940.
- A Aurora do Lima de 16 de Agosto de 1940 «Rancho das Lavradeiras de Santa Marta comemorou com brilhantismo o oitavo centenário da Fundação da Nacionalidade».
- A Aurora do Lima de 24 de Setembro de 1943: Começam amanhã em Santa Marta as Festas das Colheitas».
- Ibidem, edição de 1 de
Outubro de 1943: «As Festas das Colheitas»
- Ibidem, edição de 18 de
Julho de 1944, sobre a revista «À Moda de Viana»
- Para um balanço das
Casas do Povo entre 1933 e 1966, ver Mensário
das Casas do Povo, Ano XX, nº 239 de Maio de 1966, o qual contém um Índice,
por ordem alfabética de autores, dos artigos publicados até então.
- Sobre o alcance das
ideias que se debatiam então a propósito de preservação, do transformismo, da
actualização, dos conteúdos culturais, Abel Viana, no nº 105 do Mensário das Casas do Povo, de Março de
1955, «Alguns cantos e danças
populares», mostra plena consciência da inevitabilidade do alastramento dos
«dancings, dos retiros, das boîtes», do «cinema neo-realista, da bola…
considera o seu alastramento inevitável, pelo que defende a necessidade de
continuar a preservar a dança tradicional, cuja exclusividade não advoga nem
defende, mas cuja beleza realça e a favor da qual milita. Inclusive nos
«dancings», defende, os proprietários deveriam incluir no repertório músicas e
danças populares da região.
- Vide Mensário das Casas do Povo nº 110, Agosto de 1955, p. 18 onde se regista que «o grupo folclórico de Santa Marta, por determinação ministerial passou a fazer parte da Casa do Povo de Santa Marta de Portuzelo».
- A Junta Central das Casas do Povo foi instituída pelo Decreto-Lei nº 34.373 de 10 de Janeiro de 1945; tinha como órgão de difusão o «Mensário das Casas do Povo», cujo primeiro número saiu no mês de Julho de 1946. As Casas do Povo foram criadas por Decreto-Lei nº 23.051 de 23 de Setembro de 1933, nº 217, Iª série.
- Sobre a negação de um
pedido de subsídio ao Fundo Comum das Casas do Povo (criado em 18 de Julho de
1938) formulado por uma casa do Povo para instrumentos musicais destinados ao
seu «jazz-Band»: «Não se afigura que através dos barulhos exóticos, extraídos
de instrumentos também exóticos, se possa aperfeiçoar a mentalidade do povo nas
nossas aldeias». Ver Mensário das Casas
do Povo, nº 7, Janeiro de 1947.
[3] Os sete quadros da revista: Numa eira da aldeia, Cruzeiro de Santa Marta, Festa das Colheitas, Festa das Rosas, No coração da cidade, Fogos de Viana, Monte de Santa Luzia.
[4] Testemunho de Graça Sousa Gomes, neta: « Em relação à letra do “todos me querem”, não tenho qualquer informação sobre o autor da letra.»
[5] Sobre a organização de festas como oportunidade de relevância do local, recordemos a festa da mimosa, um caso singular de boas ideias com base em pretextos considerados «politicamente ou ecologicamente incorrectos ou não recomendáveis. «Viana do Castelo, onde o sobranceiro Monte de Stª Luzia se cobre de amarelo no final do Inverno devido à extensão da área coberta por esta planta, dedicou-lhe durante muito tempo uma festa: a festa da Mimosa.» In https://www.publico.pt/2004/02/22/jornal/a-outra-face-da-bela-acacia-184586, texto de Pedro Gomes, 22 de Fevereiro de 2004.
[6] Vide Jornal A Aurora do Lima, bi-semanário independente cujo 1º número saiu a 15 de Dezembro de 1855: este jornal dá conta, ao longo dos anos, de todas as iniciativas relevantes no campo do folclore, por exemplo: edição de 20 de Janeiro de 1938: tentativa de criação do teatro regional no Casino de Afife; edição de 11 de Agosto de 1939: o rancho regional das lavradeiras da Meadela deve a sua fundação e muito do seu prestígio à família Reguengo; edição de 5 de Janeiro de 1940: anuncia para o dia seguinte a apresentação do Rancho das Lavradeiras de Santa Marta na sede da Sociedade de Instrução e Recreio Santamartense; edição de 5 de Abril de 1940: refere a apresentação oficial do Rancho; edição de 16 de Agosto de 1940: refere a actuação do Rancho na Serenata das Festas da Agonia e refere que o Rancho comemorou o 8º centenário da Nacionalidade; edição de 31 de Dezembro de 1940: refere que o bailarino Francis Graça do grupo Verde Gaio esteve em Carreço a recolher danças regionais.
[7] Para compreensão das perspectivas que orientam as dinâmicas folclóricas:
- Sobre um caso concreto
de estudo dos processos de tradição e inovação: Barros, Ana Catarina Braga
(2018). Autoria, tradição e inovação no
folclore do Baixo Minho: um estudo de caso da Rusga de São Vicente de Braga,
Dissertação de Mestrado em Ciências Musicais Área de Especialização em
Etnomusicologia, PDF, in https://run.unl.pt/bitstream/10362/70203/1/Tese_Ana%20Barros_Nr52122.pdf. A autora traz para a compreensão a perspectiva ideológica que está
sedimentada na Universidade Nova de Lisboa e que se pode verificar nesse livro Vozes do Povo, Folclorização em Portugal, Salwa El-Shawan Castelo-Branco e Jorge
de Freitas Branco (eds.), Celta Editora, Oeiras, 2003. Parte-se neste
trabalho de Ana catarina Braga da ideia de que as orientações dos grupos
folclóricos podem ser determinadas em função de duas perspectivas: «entre um
paradigma da reconstituição, que torna o folclore uma representação tão fiel
quanto possível dos costumes de outrora, e um paradigma da estilização, que,
por sua vez, torna o folclore num objecto em si, que circula num mercado
próprio, cujas propriedades devem ser condicionadas por essa respectiva
inserção. (Vasconcelos, 2001).»
[8] Desde
1980 até ao presente, o grupo integrou elementos das seguinte famílias:
Azevedo, Andorinha, Araújo,
Alves, Antunes, Afonso,
Amorim, Barbosa, Borlido,
Barreiras, Barros, Costa, Capela, Cunha, Coutinho,
Carriço, Cardoso, Carvalho,
Correia, Cantamba, Castro,
Carvalhido, Canão, Dantas,
Dias, Fernandes, Fagundes,
Freitas, Ferreira, Gonçalves,
Isac, Moreira, Martins,
Morgado, Maia, Mota,
Matos, Magalhães, Jaco,
Lima, Nogueira, Oliveira,
Quesado, Queiróz, Sá,
Sousa, Sampaio, Serra,
Santos, Silva, Soares,
Salgado, Pinheiro, Pereira,
Parente, Pita, Pais,
Pontes, Pinto, Teixeira,
Viana, Vieira, Veloso,
Valdrêz. (Informação prestada pela actual Direcção do Grupo)
[9] A narrativa das memórias acentua estas dimensões referidas:
- Testemunho de Graça Sousa Gomes, neta: «O meu avô privava muito com o Dr.
Pedro Homem de Melo. Eram muito amigos e compartilhavam o amor que tinham pelo
folclore e por Viana.
- Testemunho de Manuel Gaspar (Lorsa), nascido a 1926, natural de Santa Marta de Portuzelo: os organizadores da fundação do grupo foram o seu pai e o senhor Manuel Silva, agricultor proprietário, a quem se juntou o médico que apareceu na terra em 1938/39, o doutor Sousa Gomes; a Sociedade de Instrução e Recreio era propriedade dos Lorsa e outros sócios; quem ensaiava as danças eram os irmãos Oliveira (o João e o Manuel, lavradores fortes), de Samonde, que dançavam muito bem; fez-se uma réplica do grupo em Moçambique. Teve uma zanga com o doutor a propósito de o grupo ir ou não ir à Finlândia. Quando iam ao estrangeiro, iam buscar pares a S. Lourenço da Montaria, a Dem; os trajes eram tecidos em Cardielos. O traje do homem: calça preta e faixa encarnada; fez-se uma casaca com botões em madrepérola, estilizada, mas primeiro havia umas casacas com alamares. Organizado, organizado, o grupo é de 1940, mas já existia antes dessa data, recorda-se de em 1939 o grupo ter ido a Orense, e foi mais que uma vez, e em 1939, ainda havia a guerra em Espanha, o grupo foi actuar a uma quinta dos Azevedos, das batatas, a Cardielos. Recorda-se das filmagens para a Tobis e das gravações de Armando Leça. Referiu nas suas memórias a presença de Amália Rodrigues em Santa Marta, então ainda uma menina, de casaco de peles e de chinelas nos pés. Referiu-nos ainda que ele foi um dos convidados a integrar o bailado Verde Gaio.
- O testemunho de Álvaro Sales, artesão de velas votivas, irmão de Passos Sales, também artesão de cangas, rodas de carros, velas, dá uma importância ao desenvolvimento local dos conteúdos folclóricos, como as cangas nos cortejos etnográficos, as velas votivas e os palmitos. Segundo Passos sales, as rosas são o desenho que se aplica nas cangas, são o motivo regional de Santa Marta; ele foi muitos anos o responsável pelos carros das cangas nos cortejos etnográficos. O cortejo etnográfico era composto por muitos carros e cada carro levava sempre vários figurantes. A ordem do cortejo: o grupo de Zés Pereiras, o carro do brasão, a mordomia, o cartaz das festas, o carro da matança do porco, o tear, o carro dos bordados e dos chinelos, o carro das cangas, o carro dos palmitos e velas votivas, o carro da broa e da cozinha regional, o carro do vinho, o carro do milho, o carro da fonte, o par de namorados com a velha a fiar no portal para tomar conta neles, o noivo e a noiva, a malhada do milho, a malhada do centeio, o engenho do linho, o coração do folclore de filigrana, os trajes regionais, a casa do povo, o grupo do centro paroquial, monumentos da terra – o palácio dos Cunhas.
- «Ir aos ensaios era uma festa» - testemunho de D. Honorata (Lorsa) que conta assim a história do grupo: o Engº Silva Dias (director da Emissora Nacional) falou a seu pai, tinha ela 10/11 anos, para se formar um grupo folclórico; o pai de Honorata era Manuel José Afonso Gaspar (Lorsa), comerciante de Santa Marta, o primeiro fundador do grupo e o ensaiador de tudo, faleceu em 1941; este homem casou com Maria Anes da Silva Gaspar, doméstica, natural de Carreço, teve vários filhos e filhas, uma das quais a Honorata (1927) que entrou para o grupo aos 12 anos; uma outra filha, de nome Graça, será nora do Dr. Sousa Gomes por casamento com o filho deste, presidente do Desportivo Clube de Viana. Recordou que o aguarelista Alberto de Sousa fora autor de umas aguarelas de lavradeiras de Santa Marta e arredores em 1935. Sobre a crise do Grupo em 1968, Honorata associa-a a uma crise do casal Sousa Gomes, considerando que a venda dos trajes ao museu de Viana foi a solução que D. Júlia encontrou para a resolver.
- Testemunho de Avelino de Passos Sales Gomes (1918), irmão da Cecília, da Rosa, da Assunção, do Álvaro, família abastada, proprietária e ligada à agricultura, aos serviços de funerária. Sobre o tempo passado no grupo: «Para mim, foi as melhores férias que eu pude passar, a cantar e a dançar e namorar com boas raparigas estrangeiras, que tenho boas recordações delas.»
[10] O reconhecimento público concretizou-se em cerimónias, títulos e medalhas:
-
Testemunho de Graça Sousa Gomes: «Mais tarde recebeu a Chave de Ouro da cidade
e bem mais tarde, a título póstumo, fui eu que recebi em mãos a medalha de
Cidadão de Mérito da cidade.»
- Em Julho de 1965 o Governo Francês agracia António Eduardo de Sousa Gomes como o Diploma de Cavaleiro das Palmas Académicas, em reconhecimento dos serviços prestados à cultura francesa.
- Deliberação da Câmara Municipal de Viana do Castelo, em 1 de Junho de 1981, de atribuição da medalha de ouro do Município ao senhor Doutor António Eduardo de Sousa Gomes, pelos «relevantes serviços que ao longo de dezenas de anos prestou à causa da divulgação do folclore e do nome de Viana do Castelo».
[11] Conta-se a história do brasão de Santa Marta: um congresso médico em Lisboa solicitou a presença de um conjunto de raparigas vestidas de lavradeiras, o homem encarregado de satisfazer este pedido foi o senhor Barros, um brasileiro que então vivia em Santa Marta, republicano. Conseguiu organizar 52 pares, as raparigas acabaram por ir acompanhadas de um familiar; estiveram 15 dias em Lisboa. O Rei concedeu então brasão a Santa Marta, desenhado pelo arqueólogo Renelas e trazido mais tarde para a terra pelo senhor Carlos Oliveira, desembargador do tribunal, que o legalizou como brasão da terra em 1933. O brasão é um escudo encimado por três torres de um castelo, as torres têm a imagem de Santa Marta, na Casa ou palácio dos Cunhas; o escudo tem uma silva de rosas e no centro um coração de filigrana e radica nos cestos de flores que é uma tradição das festas à Sra. do Livramento em Santa Marta.
Sem comentários:
Enviar um comentário