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terça-feira, maio 12, 2020

Em tempo de COVID19 - a invenção dos dias III

1.  A roda continua a andar nos eixos. Serve de motivação e de consolo, apesar de as coisas não serem como gostaríamos que fossem. Os dias de confinamento foram sucessivamente acrescidos de noticiário ameaçador, de início sobre os modos de transmissão, logo mais sobre os longos e cada vez mais longos períodos de latência, depois sobre outras ligações e ramificações: se o objectivo foi fazer crescer o medo, a coisa correu como a pintaram. Fiquei muito cedo refém da dúvida, cresci em cepticismo, alimentei-me de leituras que desancam este medo instalado. Fiquei do lado dos desconfiados. Afinal, tantos países com experiências diferentes e nós sempre bombardeados da mesma maneira: aceitar bem os nossos medos, apoucar os de outros, criticar os fortes e mais ricos, desconhecer as soluções dos mais pobres e diferenciados, omitir dados que não confirmem o medo imposto, destrambelhar empresas e ofícios. Hoje não tenho dúvidas: a leitura do vírus como catalisador das combustões à esquerda quer-se impor, sem mérito outro que não seja o de impedir o «regresso a normalidades» variadas e diferenciadoras. 

2. Em tempo de pandemia, as relações imprevistas no mundo virtual trouxeram alguma diferença. Aconteceu que um dia expus esta fotografia de um cruzeiro que está no cemitério da Vreia de Jales, o cemitério de minha freguesia de nascimento e onde estão sepultados os meus, pelo lado de minha mãe. Sempre gostei deste cruzeiro por o achar muito nosso, nosso do norte, todo ele talhado na pedra. Nunca soube dele mais que o vê-lo ali. Pois alguém me trouxe a novidade de este cruzeiro ter sido ali mandado erguer pelo senhor padre Bernardino, corria o ano de 1948, era ele pároco da freguesia. Quem o disse foi um senhor por quem tenho amizade e admiração e que conheci no Facebook, o senhor Agostinho Gomes Ribeiro, natural de Parada de Aguiar, mas naturalizado brasileiro, pois já lá vive há setenta anos. Este homem tem uma experiência de vida que eu acho incrível e, no Verão passado, fez-me ir visitá-lo a Parada, pois viera do Brasil para matar saudades. Ele conheceu Jales no tempo em que as minas estavam a crescer muito, estavam «a todo o vapor»; segundo ele, a aldeia de Campo parecia uma cidade comparada com as outras em redor. O padre Bernardino tinha cavalo ou mula para se deslocar e quando se cruzavam, o padre descia e conversava com o rapaz que andava por aqueles lados com um macho arrieiro a transportar farinha. Contou ele aquilo mesmo que minha mãe contava do padre Bernardino e que traduzia qualquer história ou caso de exemplo: ele tinha uma família a sustentar e ao mais era um santo homem, um santo pároco. Ainda me lembro da festa de homenagem ao padre Bernardino, era eu criança e meu pai fora um dos organizadores da mesma e até discursara no palanque, por volta de 1958/59.

3. No Lar de Santa Cruz estão concentradas as nossas reservas de vida, aqueles que mais quisemos preservar com a qualidade de vida possível e melhorada até. A solidão que se abateu sobre nós todos, e que cortou uma relação que estava a ser excelente, não só com eles mas com todos os utentes do lar, está a ser de difícil gestão emocional e mesmo racional, mas não vamos desesperar. O telefone e as ligações virtuais preparadas mitigaram o sofrimento, o tempo acamou as dores. Vamos esperar a reabertura de visitas. Entretanto abrimos uma página no Face, «Amigos do Lar de Santa Cruz», para estreitar relações e contactos.

4. O tempo passado na rede virtual é contado por ela própria e disso sou informado semanalmente. A coisa anda em médias alargadas que me surpreendem e de que me não apercebi que crescessem tanto. Seja. Andar em rede é como andar em viagem, embora com alguns circuitos confinados ou repetidos. Um desses territórios persistentes é o da cultura, naquela dimensão dita tradicional popular, também enunciada pelo campo do folclore. Sem que me desse conta, o envolvimento em discussões ou intervenções pontuais acabou por demonstrar que não há estudos muito estabilizados, nem nas instituições próprias que são os grupos, nem nas escolas das ciências sociais, nem em indivíduos franco-atiradores. Ou melhor, estabilidade até há, mas é de uma de duas interpretações que se fixaram já na qualidade de muros patinados: a leitura marxista e o intuicionismo poético, literário, aqui e acolá ancorado em saberes de etno-antropologia e de folclore. No primeiro muro estão sentados os teóricos e analistas da folclorização em Portugal, sustentados na metalinguagem do marxismo cultural que tudo conduz à luta de classes e à tomada de poderes dentro do poder do Estado. No segundo muro anda o acumulado de leituras dos nossos estudiosos do século XIX e primeira metade do século XX, e anda o acumulado de produções pragmáticas que durante o Estado Novo beneficiaram do motor nacionalista. O assunto merece desenvolvimento...

5. Entretanto, vou-me ocupando do crescimento de um sobrinho neto que me faz cantar e improvisar cantilenas de embalar...

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