Viver as tradições em liberdade, com vírus,
com riscos, com medos e com decisões
O título que resume o tema desta crónica não vai no sentido
de saber interpretar a virose que originou a pandemia COVID19, mas inspira-se
no seu imaginário para considerar que as nossas práticas culturais ditas
tradicionais requerem a sua vivência em liberdade, posto que nelas e por elas
se transmitem todos os vírus que as podem condicionar e desenvolver, posto que
nelas e por elas se assumem os riscos de prosseguir ou de mudar, posto que
nelas e por elas se expressam os medos e as fantasias, posto que nelas e por
elas se tomam as decisões de realização e de cumprimento dos eventos mais
díspares.
Pressuponho que o leitor interrogue aqui os conceitos de práticas
culturais tradicionais e que peça a explicitação dos vírus, dos riscos, dos
medos e das decisões. Dá sempre jeito tomar um exemplo de alavanca: o comboio
servirá o efeito.
Quando William Thoms cunhou para o léxico dos povos a palavra
folclore, deu como prova eminente o perigo que a representação do comboio então
já possuía, nos caminhos do progresso tecnológico e social: as viagens de
comboio tornar-se-iam tão prementes e consistentes que acabariam por fazer
desaparecer as características singulares da cultura ou maneira de pensar dos
povos que até então apenas se deslocavam a pé ou a cavalo ou de barco, num modo
lento e em concordância com as regras naturais do clima e dos ciclos agrícolas
e comerciais. O comboio, e os demais inventos tecnológicos que começavam a
surgir por todo o lado, vinha acelerar tudo.
Ortigão de Sampaio, aqui no Norte,
no seu jornal «Alvorada» conclamava que o progresso trazia consigo uma outra
dimensão de velocidade que não dependia apenas dos jornais ou dos telégrafos,
ou dos telefones ou dos comboios. Dizia ele que na sua região, ali naquele
círculo limitado de Delães, Riba D’Ave, Famalicão, ainda não tinham chegado os
artifícios do progresso e já no ar andavam todas as transformações de costumes
e de modos de pensar tradicionais. Também Camilo Castelo Branco propusera, uns
anos antes, mas por via do que se esperava que o comboio alcançasse para os
povos, que os pilares da civilização assentavam no romance, na viabilidade e no
fluido transmutativo.
O que sejam as novidades que vêm pelos ares ou o que seja
este fluido transmutativo que é fundamento da civilização é que nos aproxima
das viroses, considerando que os agentes que as provocam não se vêm nem se
calcula que existam até aparecerem e depois tudo condicionam e arrastam.
Pois
bem, se considerarmos aquele tipo de práticas culturais que tomamos por
tradicionais, como sejam, por exemplo, as romarias, as músicas do folclore, as
práticas religiosas, a linguagem coloquial, as nomeadas e as toponímias,
havemos de interrogar-nos sobre os vírus que as desestabilizam, que as corroem
e alteram, que as obrigam a adaptações de todo o tipo. Vírus como o da
curiosidade de saber onde está o grau de pureza ou de autenticidade de uma
cantiga, onde está a identidade nacionalista ou local de um costume, onde
assenta o princípio da normatividade de uma frase. Basta uma interrogação e a
doença alastra. Mas se ficarmos pelo nível dessa instância de criação de
sentido que são as culturas populares, os riscos e os medos associados às suas
criações e à sua estabilidade de alcance fazem-nas andar numa corrida pela sua
adaptabilidade, pela sua actualização: como saber da estabilidade de uma moda
ou de uma tendência? Como saber da coerência do politicamente correcto? Como
saber da verdade de uma opinião? Como saber da actualidade de um repertório?
Andando, se faz caminho e as decisões terão forçosamente de assumir os caminhos
percorridos e a percorrer. Poderemos perguntar sempre: para onde vamos? Onde
queremos chegar? A consistência das decisões radica na firmeza dos propósitos e
nos conhecimentos reunidos.
Esta pandemia traz-nos uma sugestão de caminho a
fazer que é o de testarmos constantemente. Mas como estar, em cultura, se não
cumprirmos, se não actuarmos, se não criarmos?
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