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quinta-feira, maio 07, 2020

Da paragem das paradas culturais em tempo de pandemia


Texto publicado no Correio do Minho em 06-05-2020 - Braga nas Tradições

O poema que nos deixou a imunologista Maria Ângela Brito de Sousa (1939-2020), escrito pouco tempo antes de morrer, percorre as nossas memórias, fixa os nossos pesadelos de presente e projecta-nos para um futuro de trabalhos. Esse poema pode ser lido, na sua criação em Inglês e na sua versão em Português, na página do médico e poeta João Luís Barreto Guimarães. (https://www.facebook.com/joaoluisguimaraes/) Trazemos em nossas memórias as práticas musicais nos grandes momentos, inicias ou finais, da vida, (como as gaitas de foles e as melodias nas vozes de tenores e de sopranos, para configurarmos duas sedimentações que a tradição confirmou como exemplares de momentos públicos em que tanto a vida como a morte são vividas e celebradas). O que valem as melodias se não forem ouvidas no nosso presente? E se não forem ouvidas pelas crianças? O poema de Maria de Sousa interroga toda a tradição e toda a criatividade: que fazer com a música se não for ouvida, se não tiver receptores que a mobilizem? Esta pandemia está a ser vivida nas redes virtuais, numa corrente de posturas e de comentários que espelham toda a dinâmica cultural que estávamos habituados a fazer por outras vias, a da frequência, a da participação, a da assistência ao vivo, a da peregrinação, a da parada. Vivemos momentos na música e com a música, e assim do mesmo modo ficam referidas todas as outras modalidades de práticas culturais. Vivemos momentos que agora nos parecem eternidades e vão ser e foram: a eternidade do acumulado cultural, a longa duração, desafia-nos a prossegui-la, acrescentando valor. Há no poema de Maria de Sousa uma listagem de materiais ou recursos do nosso vivido que valem como figura de concentração de todas as realidades: o riso, o mar, a poesia, o sol-pôr, a gaivota, a mesa, o pequeno-almoço, os botões de punho, a magnólia, o hospital, as meias, os pijamas. Esta disparidade de referenciais da socialização e da cultura testemunha a simbólica cultural das criações e do seu usufruto. Toda a lógica do presente está encerrada no poema nesta listagem de elementos civilizacionais que parece trivial, dispersiva, aleatória, mas que é paradigmaticamente essencial da nossa vida pessoal e em comum. A simples enunciação destes dois lexemas substantivos - momentos, eternidades – sintetiza a resposta à interrogação ontológica do indivíduo e do social, tomado este como sujeito de enunciação colectiva: o que fazemos e o que esperamos? Poderíamos ver-nos a rondar as interrogações kantianas sobre a vida, mas será a resposta a nossa maior necessidade. E a poetisa enunciou-a: «porque posso morrer e vós tereis de viver na vossa vida a esperança da minha duração». Que o futuro seja viver a duração do outro e que o outro seja o ser criativo, o ser cultural que foi produtor e indutor de conhecimento, o ser investigador, o ser consumidor. Esta pandemia evidenciou já suficientemente quanto as práticas musicais, coreográficas, plásticas, religiosas, sociais, requerem a socialização plena, a movimentação livre de pessoas, a discursividade continuada, a partilha, o consumo, a retoma e a renovação. Em termos culturais, não bastam as paredes e as construções arquitectónicas, não bastam as ruas e as estradas, não bastam as redes virtuais, é precisa a presença a física, é requerida a convivência, é requerido o encorpamento das manifestações do espírito. Porventura o leitor achará este meu texto um pouco afastado das preocupações desta rubrica, mas não creio que tenha ficado difícil de antever que as manifestações culturais requerem um futuro que as faça durar enquanto marcas de sujeitos criadores, empenhados na progressão do conhecimento, implicados na construção de soluções resistentes às surpresas naturais da finitude. Que todos saibamos quanto gostámos e gostamos uns dos outros, ainda que outros possam ser os mais contemporâneos como os mais antigos que conhecermos pelo estudo, pela descoberta, pela investigação.

Carta de amor numa pandemia vírica

Gaitas-de-fole tocadas na Escócia
Tenores cantam das varandas em Itália
Os mortos não os ouvirão
E os vivos querem chorar os seus mortos em silêncio
Quem pretendem animar?
As crianças?
Mas as crianças também estão a morrer

Na minha circunstância
Posso morrer
Perguntando-me se vos irei ver de novo
Mas antes de morrer
Quero que saibam
O quanto gosto de vós
O quanto me preocupo convosco
O quanto recordo os momentos partilhados e
queridos
Momentos então
Eternidades agora
Poesia
Riso
O sol-pôr
no mar
A pena que a gaivota levou à nossa mesa
Pequeno-almoço
Botões de punho de oiro
A magnólia
O hospital
Meias pijamas e outras coisas acauteladas
Tudo momentos então
Eternidades agora
Porque posso morrer e vós tereis de viver
Na vossa vida a esperança da minha duração
Maria de Sousa
3 de abril de 2020
A versão original:
Love letter in a viral pandemic
Bagpipes played in Scotland
Tenors sing from balconies in Italy
The dead will not hear them
And the living want to mourn their dead in silence
Who do you want to animate?
The children?
But children are also dying
In my circumstance
I can die
Wondering if I will see you again
But before I die
I want you to know
How much I like you
How much I care about you
How much I remember the moments shared and
dear ones
Moments then
Eternities now
Poetry
Laughter
The sunset
at sea
The pity that the seagull took to our table
Breakfast
Gold cufflinks
The magnolia
The hospital
Pajama socks and other cautionary things
All moments then
Eternities now
Because I can die and you will have to live
In your life the hope of my life
Maria de Sousa
April 3, 2020


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