Chamadas de Santa
Cruz – programa de 22 de Fevereiro de 2020
(Na Rádio Francisco Sanches)
Inevitavelmente, nesta semana, as chamadas andaram à volta
da eutanásia ou despenalização legal da morte assistida, em caso de opção
voluntária de pessoa que esteja em situação terminal de vida, ou que para ela
tenda e considere que já não tem qualquer fundamento a sua continuidade física.
Nas redes sociais tomei posição e disse, sumariamente, que não tinha recebido
educação para concordar com a eutanásia enquanto modo de terminar a vida de
outra pessoa, ainda que a pedido dela. Alguém, precipitadamente, me respondeu
que se não tivera educação para tal ainda estaria a tempo de a adquirir. Confesso
que este comentário me deixou aliviado, antes de mais por me ter dado o mote
para esta crónica e depois porque ele se insere naquela margem de conversa que
depende do lugar onde estamos a conversar e de quem é nosso interlocutor.
Reconheço, como perfeitamente lógica, a vontade de uma sociedade civil, marcada
pela ausência ou pouca relevância de valores confessionais de ordem religiosa,
neste caso cristã, despenalizar o acto da eutanásia a pedido da pessoa em
situação terminal de vida: quem despenalizou o aborto precisa também de
despenalizar a eutanásia retirando-a dos actos ilícitos. Mas quem foi educado
numa raiz cristã, e sobretudo quem, depois de a recusar como orientação de vida
por adesão a outro ideário, agora apenas apoiado na utopia de classes, a ela
regressou por a considerar fundamentada e absolutamente abrangente de todas as
categorias do humano, tem dificuldade em aceitar este tipo de legalizações
cívicas, que se reduzem a uma, o direito de pôr fim à vida, quer no seu início,
quer no seu fim. Reconheço os argumentos invocados, sejam apoiados na liberdade
como valor unipessoal absoluto, sejam apoiados em dados socioeconómicos, sejam
apoiados em razões de sofrimento ou incapacitação física total, seja em razões
de perda de todas as faculdades racionais, mas considero que a vida como valor
supremo, apoiada numa metafísica de transcendência e em uma prática da religião
cristã, tem também o dever se manifestar os seus argumentos, apresentando
outras respostas aos problemas, respostas essas baseadas na prática dos
cuidados continuados e nas boas práticas familiares e comunitárias de apoio.
Nós estamos absolutamente arreigados à vida e só este arreigamento nos dá o
vigor para a sustentarmos mesmo em situações adversas: é a surpresa da vida nos
recém-nascidos que mais nos perturba as adesões circunstanciais ao aborto, do
mesmo modo que é a valorização do vivido das pessoas que mais nos aproxima
delas nos caminhos da morte. Os cristãos sintetizam estes dois valores, o da
vida e o da morte, nesses poemas de oração que são a Avé Maria e a Santa Maria,
ou seja, numa interpretação mais humana que religiosa ou teológica, a
referência ao nascimento e a referência à hora da morte, ao princípio e ao fim
do ciclo vital. Nesta discussão pública sobre a eutanásia ocorre uma grande
vontade de criação de sentimentos comunitários, securizantes, consensuais,
procurando um fundo de argumentação comum que balize os comportamentos e os
enquadre nas imprevisíveis circunstâncias em que se possam manifestar. Esta
procura de criação de consenso visa qualquer coisa de religioso, no fundo, visa
unir a comunidade em torno de mínimos e máximos legais que evitem
arbitrariedades de prática e de juízo. Resta saber se é este o caminho ou se
isto não passa de uma característica peculiar deste modus vivendi que se diz globalização, ainda que de muitos países e
nações nem saibamos uma linha sobre esta problemática exacerbada dos direitos
individuais. O facto de estas ideias de liberdade pessoal radical se
alcandorarem em partidos e em tomadas de posição de esquerda versus direita já
diz ainda mais sobre a conflitualidade emergente que estas medidas fomentam e
sustentam. Soltámos os recalcamentos de nosso lastro civilizacional e de
hedonismo em hedonismo prosseguimos até à entrega total nas mãos do outro, o
Outro que pode muito bem ser um Sistema, ser um Estado Totalitário.
Sem comentários:
Enviar um comentário