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sexta-feira, fevereiro 21, 2020

Sobre a eutanásia


Chamadas de Santa Cruz – programa de 22 de Fevereiro de 2020
(Na Rádio Francisco Sanches)

Inevitavelmente, nesta semana, as chamadas andaram à volta da eutanásia ou despenalização legal da morte assistida, em caso de opção voluntária de pessoa que esteja em situação terminal de vida, ou que para ela tenda e considere que já não tem qualquer fundamento a sua continuidade física. Nas redes sociais tomei posição e disse, sumariamente, que não tinha recebido educação para concordar com a eutanásia enquanto modo de terminar a vida de outra pessoa, ainda que a pedido dela. Alguém, precipitadamente, me respondeu que se não tivera educação para tal ainda estaria a tempo de a adquirir. Confesso que este comentário me deixou aliviado, antes de mais por me ter dado o mote para esta crónica e depois porque ele se insere naquela margem de conversa que depende do lugar onde estamos a conversar e de quem é nosso interlocutor. Reconheço, como perfeitamente lógica, a vontade de uma sociedade civil, marcada pela ausência ou pouca relevância de valores confessionais de ordem religiosa, neste caso cristã, despenalizar o acto da eutanásia a pedido da pessoa em situação terminal de vida: quem despenalizou o aborto precisa também de despenalizar a eutanásia retirando-a dos actos ilícitos. Mas quem foi educado numa raiz cristã, e sobretudo quem, depois de a recusar como orientação de vida por adesão a outro ideário, agora apenas apoiado na utopia de classes, a ela regressou por a considerar fundamentada e absolutamente abrangente de todas as categorias do humano, tem dificuldade em aceitar este tipo de legalizações cívicas, que se reduzem a uma, o direito de pôr fim à vida, quer no seu início, quer no seu fim. Reconheço os argumentos invocados, sejam apoiados na liberdade como valor unipessoal absoluto, sejam apoiados em dados socioeconómicos, sejam apoiados em razões de sofrimento ou incapacitação física total, seja em razões de perda de todas as faculdades racionais, mas considero que a vida como valor supremo, apoiada numa metafísica de transcendência e em uma prática da religião cristã, tem também o dever se manifestar os seus argumentos, apresentando outras respostas aos problemas, respostas essas baseadas na prática dos cuidados continuados e nas boas práticas familiares e comunitárias de apoio. Nós estamos absolutamente arreigados à vida e só este arreigamento nos dá o vigor para a sustentarmos mesmo em situações adversas: é a surpresa da vida nos recém-nascidos que mais nos perturba as adesões circunstanciais ao aborto, do mesmo modo que é a valorização do vivido das pessoas que mais nos aproxima delas nos caminhos da morte. Os cristãos sintetizam estes dois valores, o da vida e o da morte, nesses poemas de oração que são a Avé Maria e a Santa Maria, ou seja, numa interpretação mais humana que religiosa ou teológica, a referência ao nascimento e a referência à hora da morte, ao princípio e ao fim do ciclo vital. Nesta discussão pública sobre a eutanásia ocorre uma grande vontade de criação de sentimentos comunitários, securizantes, consensuais, procurando um fundo de argumentação comum que balize os comportamentos e os enquadre nas imprevisíveis circunstâncias em que se possam manifestar. Esta procura de criação de consenso visa qualquer coisa de religioso, no fundo, visa unir a comunidade em torno de mínimos e máximos legais que evitem arbitrariedades de prática e de juízo. Resta saber se é este o caminho ou se isto não passa de uma característica peculiar deste modus vivendi que se diz globalização, ainda que de muitos países e nações nem saibamos uma linha sobre esta problemática exacerbada dos direitos individuais. O facto de estas ideias de liberdade pessoal radical se alcandorarem em partidos e em tomadas de posição de esquerda versus direita já diz ainda mais sobre a conflitualidade emergente que estas medidas fomentam e sustentam. Soltámos os recalcamentos de nosso lastro civilizacional e de hedonismo em hedonismo prosseguimos até à entrega total nas mãos do outro, o Outro que pode muito bem ser um Sistema, ser um Estado Totalitário.

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