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terça-feira, novembro 12, 2019

Chamadas de Santa Cruz 6

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Em Santa Cruz o confronto é com a vida e com o acumulado dela que se extasia nos olhos das pessoas, seja quando se mostram a si próprios,  seja quando olham na direcção dos outros ou das coisas e coisas são a arte, são as casas, são os carros, são as paredes, é o comércio, é o bulício urbano. 

Entro no lar e os olhos de quem vejo têm uma vida para contar, alguns não contarão mais que não têm voz, ou se a têm já diz deles o que duvidamos que tenham vivido, vá lá a gente entender um cérebro que deu em voar noutras direcções. Mas há palavras ainda suficientes e as há também em excesso até, se as pensarmos como provas de um vivido que se achou limitado pela doença ou pela impossibilidade extemporânea de algum órgão. 

Esta semana foi dia de magusto e as castanhas cozidas celebraram duplamente a tradição, fez-se o magusto e fez-se no Lar que teve forma própria de acontecer, como é natural, numa entreajuda permanente de quem pode, numa presença fulgurante dos miúdos do pré-escolar, nas cantigas populares de quatro amigos, no ensaio de passos de dança. Comemos as castanhas naquela lentidão de estarmos juntos. 

Mas os os lhos também se viram para fora em Santa Cruz e todo o bulício do Largo diz da cidade o suficiente para se reparar com a indiferença de um costume de ver, de um cansaço de saber que foi sempre assim, pessoas a ir e vir, carros a passar, gente parada à espera. Andar na cidade com uma pessoa em cadeira de rodas é um trabalho de tracção completo, um esforço de pernas e de braços, um contorcionismo de atenção. A gente empurra a cadeira e fala para a pessoa transportada e ela para nós de um jeito que não tem razão alguma de ser, contrariado que é pelas circunstâncias, o frente-a-frente da conversa é agora da frente para trás e de trás para a frente, num esforço de audição sempre exigente. Mas pára-se e atende-se. Tudo tem a paciência. 

Andei a semana inteira de livro na mão, com quase nenhum tempo de leitura persistente, toda ela pontual, frase agora, frase logo, uma aqui e outra ali, deixando para casa a consumição inteira dos textos. O livro era de António Cabral, uma reedição dos seus Poemas Durienses, 56 anos depois da primeira edição, com as ilustrações do pintor Nuno Barreto, já falecido, naquele estilo figurado, estampado em linóleo. Os trabalhos em linóleo resultam dessa técnica de escavar numa placa específica, como se fosse madeira, uma imagem invertida daquela que vai sair quando se imprimir numa folha; é uma técnica que se usa nos carimbos, para o ouvinte ficar esclarecido. Pois bem, Nuno Barreto, de quem me lembro bem por ter trabalhado com ele na Casa Museu Nogueira da Silva e por ter escrito algumas páginas sobre a sua pintura,  fez para este trabalho poético de António Cabral cinco linóleos significativos da vida social e laboral no douro: o da capa revela o pintor e a sua esposa, em novos, depois, integrados nos poemas, uma imagem referencia o jogo da malha, outra  o lavrador contemplando a vinha, outra dois cavadores e na última vemos  a oliveira e o pássaro, esta com uma cercadura de grade de igreja ou cemitério ou promontório, geradora de um sentimento de pertença eclesial ou paroquial ou aldeã.

Eu conheci António Cabral, lembro-me dele ainda padre, era eu jovem, e lidei com ele enquanto professor, já casado e com filhas, dava ele aulas em Vila Real no Magistério e eu fora colocado na Escola Diogo Cão, no ciclo preparatório, como então se dizia, onde fiquei dois anos. Nesses dois anos encontrávamo-nos com regularidade no café Pompeia, eu não era íntimo dele, mas ele acabou por ser a pessoa que eu ouvia com atenção e a quem cheguei a mostrar poemas que então escrevi. 

Colaborámos depois no primeiro número da revista Tellus, juntamente com Pires Cabral. Li as suas obras, interessei-me particularmente pelos seus livros dedicados aos jogos tradicionais, apresentei obras suas na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro em Braga. E hoje, que é sábado, vou apresentar os seus Poemas Durienses, uma obra poética que vai ter como ouvintes muitas pessoas da região duriense e que conheceram muito bem o douro enquanto região vinícola que o António Cabral usou como inspiração. O livro de poemas termina assim: «Paraíso! Paraíso! Oh cântico de pedra à esperança!» É desta esperança que vou falar, para saber até que ponto se concretizou e como, e que orgulho poderá ela ter na obra do poeta que a cantou. 

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