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Em Santa Cruz o confronto é com a vida e com o
acumulado dela que se extasia nos olhos das pessoas, seja quando se mostram a
si próprios, seja quando olham na
direcção dos outros ou das coisas e coisas são a arte, são as casas, são os
carros, são as paredes, é o comércio, é o bulício urbano.
Entro no lar e os
olhos de quem vejo têm uma vida para contar, alguns não contarão mais que não
têm voz, ou se a têm já diz deles o que duvidamos que tenham vivido, vá lá a
gente entender um cérebro que deu em voar noutras direcções. Mas há palavras
ainda suficientes e as há também em excesso até, se as pensarmos como provas de
um vivido que se achou limitado pela doença ou pela impossibilidade
extemporânea de algum órgão.
Esta semana foi dia de magusto e as castanhas
cozidas celebraram duplamente a tradição, fez-se o magusto e fez-se no Lar que
teve forma própria de acontecer, como é natural, numa entreajuda permanente de
quem pode, numa presença fulgurante dos miúdos do pré-escolar, nas cantigas
populares de quatro amigos, no ensaio de passos de dança. Comemos as castanhas naquela
lentidão de estarmos juntos.
Mas os os lhos também se viram para fora em Santa Cruz
e todo o bulício do Largo diz da cidade o suficiente para se reparar com a
indiferença de um costume de ver, de um cansaço de saber que foi sempre assim,
pessoas a ir e vir, carros a passar, gente parada à espera. Andar na cidade com
uma pessoa em cadeira de rodas é um trabalho de tracção completo, um esforço de
pernas e de braços, um contorcionismo de atenção. A gente empurra a cadeira e
fala para a pessoa transportada e ela para nós de um jeito que não tem razão
alguma de ser, contrariado que é pelas circunstâncias, o frente-a-frente da
conversa é agora da frente para trás e de trás para a frente, num esforço de
audição sempre exigente. Mas pára-se e atende-se. Tudo tem a paciência.
Andei a
semana inteira de livro na mão, com quase nenhum tempo de leitura persistente,
toda ela pontual, frase agora, frase logo, uma aqui e outra ali, deixando para
casa a consumição inteira dos textos. O livro era de António Cabral, uma
reedição dos seus Poemas Durienses, 56 anos depois da primeira edição, com as
ilustrações do pintor Nuno Barreto, já falecido, naquele estilo figurado,
estampado em linóleo. Os trabalhos em linóleo resultam dessa técnica de escavar
numa placa específica, como se fosse madeira, uma imagem invertida daquela que
vai sair quando se imprimir numa folha; é uma técnica que se usa nos carimbos,
para o ouvinte ficar esclarecido. Pois bem, Nuno Barreto, de quem me lembro bem
por ter trabalhado com ele na Casa Museu Nogueira da Silva e por ter escrito
algumas páginas sobre a sua pintura, fez
para este trabalho poético de António Cabral cinco linóleos significativos da
vida social e laboral no douro: o da capa revela o pintor e a sua esposa, em novos, depois, integrados nos poemas, uma imagem referencia o jogo da malha, outra o lavrador contemplando a vinha, outra dois cavadores
e na última vemos a oliveira e o pássaro, esta
com uma cercadura de grade de igreja ou cemitério ou promontório, geradora de
um sentimento de pertença eclesial ou paroquial ou aldeã.
Eu conheci António
Cabral, lembro-me dele ainda padre, era eu jovem, e lidei com ele enquanto
professor, já casado e com filhas, dava ele aulas em Vila Real no Magistério e eu fora colocado na
Escola Diogo Cão, no ciclo preparatório, como então se dizia, onde fiquei dois
anos. Nesses dois anos encontrávamo-nos com regularidade no café Pompeia, eu
não era íntimo dele, mas ele acabou por ser a pessoa que eu ouvia com atenção e
a quem cheguei a mostrar poemas que então escrevi.
Colaborámos depois no
primeiro número da revista Tellus, juntamente com Pires Cabral. Li as suas
obras, interessei-me particularmente pelos seus livros dedicados aos jogos
tradicionais, apresentei obras suas na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro em
Braga. E hoje, que é sábado, vou apresentar os seus Poemas Durienses, uma obra
poética que vai ter como ouvintes muitas pessoas da região duriense e que
conheceram muito bem o douro enquanto região vinícola que o António Cabral usou
como inspiração. O livro de poemas termina assim: «Paraíso! Paraíso! Oh cântico
de pedra à esperança!» É desta esperança que vou falar, para saber até que ponto
se concretizou e como, e que orgulho poderá ela ter na obra do poeta que a
cantou.
terça-feira, novembro 12, 2019
Chamadas de Santa Cruz 6
Etiquetas:
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