Chamadas de Santa Cruz 3 - a escola de meu pai - programa de 19 de Outubro de 2019
O meu pai tem da escola, que fez só até à quarta classe, uma visão exponencialmente positiva, e digo exponencialmente porque a sua admiração pelo seu professor primário, assim ele diz e se dizia, já falecido, cresce sempre que recorda os tempos da escola e sobretudo os conhecimentos que lhe ficou a dever pela vida fora. Foi o professor Ramos, natural de Celorico de Basto, esteve em Nogueira alguns anos, hospedado na casa da tia Maria dos Anjos, boa cozinheira.
Meu pai criou 9 filhos, cinco raparigas e quatro rapazes, com a ideia arreigada de que a escola faria por eles, por nós, um complemento de formação e de educação que ele não teria podido obter na sua infância. Meu pai nasceu em 1927, andou na escola dos sete aos dez, portanto de 1934 a 1937, tempos que é preciso ir ler à história como foram e que acontecimentos os marcaram, não só para confirmar e ampliar as memórias que meu pai narra, mas sobretudo para calcular melhor o horizonte das suas vivências escolares. Aprendeu a ler, a escrever e a contar, com conhecimentos de matemática e de história que hoje nos provocam a estupefacção: meu pai aprendeu até ao fim da quarta classe tudo quanto lhe fez falta para ser ajudante de comércio no Porto numa drogaria, depois escriturário e fiel de armazém e director dos escritórios nas Minas de Jales. Na tropa fez um brilharete ao que conta sobre ajudas e esclarecimentos que prestou às mais variadas patentes superiores.
Na escola primária, a partir da terceira classe, meu pai foi professor de adultos, é verdade, conta ele e eu ainda ouvi pessoas da sua aldeia a confirmarem-no, que o professor lhe entregava uma classe de adultos, uma classe nocturna, para ele os ensinar a ler e lhes aplicar as contas de somar, subtrair, multiplicar e dividir, além dos ditados e da correcção e erros de escrita.
Mas o que mais me surpreendeu sempre na narrativa escolar de meu pai foi ele dizer, e localizar o púlpito de onde o fazia, que lia o jornal «O Primeiro de Janeiro» em voz alta para toda a aldeia, ali no muro da botica. «João, lê as notícias da guerra, lê alto». E ele era um papagaio, lia tudo, corria então a guerra civil espanhola. Pois foi esse mesmo jornal que meu pai assinou diariamente durante a minha infância, foi nele que aprendi a ler, foi nele que tive contacto com os quadradinhos, com a banda desenhada do Príncipe Valente. Minha mãe não perdia notícias sobre as famílias reais por essa Europa fora e meu pai lia o jornal à mesa, enquanto comia, ao jantar, sempre atento a nós e aos outros, como dizia a minha mãe.
Que a sua escolaridade foi de papaguear conhecimentos, tabuadas, rios e serras, fórmulas de cálculo, classes de palavras e funções sintácticas?, isso verifiquei eu, depois, que ele tudo integrou na sua memória, e de tudo fez proveito.
Meu pai comprou e instalou na sala de costura de nossa casa em Jales um quadro preto, de dimensões mais reduzidas que o quadro escolar, mas com o mesmo giz e o mesmo pano apagador. Nesse quadro fiz eu centenas de contas e meus irmãos também; meu pai entrava no quarto e punha uma conta no quadro, eu ia e fazia, ele verificava e punha outra; à tarde, antes de jantar, ditava problemas e assistia à resolução. Meu pai tinha uma caligrafia escorreita, muito certinha, inclinada para a frente, escrevia com velocidade e sem gatafunhar, ideias claras, pontuação adequada. Guardo as cartas que me escreveu a partir da minha saída da aldeia, para continuar estudos.
A preparação escolar de meu pai era assunto falado na empresa e muita gente o apontava como instruído e homem de discurso, prova que deixou feita no clube desportivo, nas festas, nos casamentos, nas cerimónias de ilustração que havia a cada passo na empresa e na nossa terra.
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