Chamadas de Santa Cruz – programa de 28 de Novembro de 2020
Comecei a ensinar antes de ser professor, se considerarmos ensinar dar explicações ou colaborar em actividades docentes de preparação de alunos para obtenção de um diploma. Dei explicações e preparei alunos para exame, colaborei com um centro de formação de alunos adultos, ali, precisamente, na Faculdade de Filosofia; não foram muitos, mas os casos que tratei foram suficientemente exigentes para mim e senti-me entusiasmado com as experiências.O 25 de Abril, o dia seguinte ao da revolução, apanhou-me na
função docente de dar aulas nesse curso de adultos. Os carros dos alunos, de
alguns que os tinham, estacionaram nesse horário de aulas, depois das sete da
tarde, até às 23 horas, nos passeios, em frente ao edificado onde decorriam as
aulas; noutras alturas a dificuldade de estacionar levava-os para longe. Os
comentários iniciais da aula foram sobre essa liberdade alcançada e assim
manifestada, esse desafio a posteriori
de ousar cometer uma infracção. Uma das reacções que mais se fez notar, entre o
tempo docente anterior ao 25 de Abril e o tempo que se lhe seguiu, foi essa
mesma de ousar falar, de libertar a palavra, de abusar dela para tagarelar e
mais não dizer que falar de tudo e de nada, com a mínima seriedade possível de
aprofundar assuntos.
O clima de uma aula, antes da revolução, era de silêncio e
de respeito total ao professor e aos colegas; a palavra tomava-se com pedido de
licença e tinha-se o cuidado de não falar para nada. A palavra nas aulas era
meio de trabalho e de aprendizagem. A revolução de Abril alterou esse paradigma
e fê-lo de forma progressivamente definitiva. Nos cursos do primeiro ciclo e do
segundo, este modo de estar em silêncio nas aulas foi de evolução mais lenta:
no meu ano de estágio pedagógico, no ano lectivo de 1976/77 ainda fui encontrar
no primeiro período turmas de alunos muito disciplinadas e silenciosas. Mas uma
curiosidade neste tomar da palavra e neste desregular da disciplina pessoal ou
grupal esteve, curiosamente, em terem sido mais os professores a contribuir
para ele do que os próprios alunos a terem a iniciativa.
Efectivamente, quando
fui colocado, em cinco de Janeiro de 1975 na Escola Industrial e Comercial de
Vila Nova de Famalicão, já era missão docente manter a dinâmica da palavra na
turma, suscitar a palavra aos alunos, motivá-los para uma atitude de
conversação continuada; claro, subentendiam-se as regras da civilidade, do
pedido da palavra, da intervenção organizada, mas aceitava-se que não fosse
sempre assim e desejava-se uma espontaneidade de estar, na relação docente
versus discente. A atmosfera política da revolução de Abril gerava essa
disposição, requeria-a: todos os dias eram dias novos e dias de questionação da
ordem, requeriam-se explicações de tudo e mais alguma coisa.
Os alunos
começaram a descumprir e os professores a desculpar. Foi o meu tempo de
camaradagem com os alunos, numa irreverência tanto minha quanto deles,
procurando salvaguardar a relação de autoridade no que dizia respeito ao
cumprimento dos programas e à avaliação, mas aceitando muitas formas pessoais
de o fazer, com aulas a serem dadas ao ar livre ou em cafés da cidade, com
aulas em exposições e visitas de estudo local, com aulas a começarem e a
interromperem-se fora dos toques oficiais, com testes a serem substituídos por
trabalhos de grupo, com testes a serem feitos por consulta de fontes, com a
oralidade a compensar a escrita pessoal. Ao longo da minha carreira docente as
referências a este estado de coisas, a esta exibição frequente de comportamentos
pouco disciplinados, foi considerada a marca libertária da revolução de Abril,
segundo uns irrecuperável e de efeitos negativos, segundo outros, moldável e
carente de melhoria ao longo da escolaridade.
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