Estamos nas vésperas do Carnaval. Eu gostei sempre de me mascarar no Carnaval. Um dia desfilei na rua com os alunos travestido de professor, levava uns suspensórios nas calças e um dicionário de Português às costas, preso por uma guita de corda de sisal, em cruz, ao jeito dos velhos embrulhos de papel, mas a cair sobre o rabo, dando sempre a ideia de muito peso e de muito custo. Não sei bem o que me ocorreu na altura, talvez a ideia de caricaturar o muito trabalho com a língua, ou a própria dificuldade de pôr ordem na língua dos alunos, aqui neste Minho que é a terra mãe do galaico-português e onde tudo se pode dizer e aparecer como dito por alguém. Nesse desfile ainda me lembro de uma aluna, a Alexandra, inesquecível aluna, hoje professora, mas nem a tenho visto ultimamente, vejo os pais dela, professores também, mas de vez em quando. A Alexandra fizera nas aulas de TM, em pasta de papel, uma máscara com cabeça e barriga ligadas, ambas proeminentes; ela metia-se dentro, os braços saíam pelos ombros da carantonha, o nariz era embiucado, aquilino, a boca escancarada, o cabelo a rarear, seria eu? É curioso, só agora me pergunto se seria eu, mas poderia muito bem ser um outro professor, o Marques se calhar, que era professor de Trabalhos Manuais, então ainda havia esta disciplina, ou o pai, mas não tinha tanta barriga, ou o adulto simplesmente, o mestre afinal, que naquela idade os alunos dos onze anos representam os mais velhos da escola como mestres de qualquer coisa, claro está, na caricatura, no sério serão outros e mais coisas. Do desfile, lembro-me que fomos pela cidade, até à André Soares. Lá fui naquele jeito de andar mascarado com a língua, mas só o baraço me preocupava, que era fino e aleijava-me os ombros; às vezes fazia-o oscilar como pêndulo, outras vezes girava-o pelo ar, a apanhar cabeças distraídas ou braços irrequietos, agora sim, autorizadamente irrequietos, só faltava que o desfile primasse pela ordem, mas tinha-a, ainda não desbundava como agora o parece. A chinfrineira de gaitas e assobios era pouca, era mais o falatório e a correria de uns lugares para outros, até que o resto das máscaras era de pouca solidez para o transporte naquela distância e naquele aparato. Noutros carnavais, já fui de ciclista, já fui de mulher de zona, já fui de neo-primitivo com um pelico branco de carapinha, tipo S. João, mas sem o ser, que o pagode estava em mostrar que pouco mais teria vestido, mas calçado ia; já fui de artista maluco, com umas calças amarelas à boca de sino, enorme, como o grande da Sé e uns sapatos de salto de 15 centímetros, comprados pelo Prata, meu colega, que esse fazia o Carnaval sempre com todos os excesso de caricatura, desde padre a freira, a rufião e a outros que nem digo nem agora sei, mas os sapatos foram comprados naquela sapataria de esquina quase em frente à Sé, na Rua D. Diogo de Sousa, e as calças fora o senhor Machado do Cardoso da Saudade, já falecido, que Deus haja, quem as descobrira como monos, mas sem poder fazer o desconto, vendia-as pelo preço marcado em 74, dada a qualidade da fazenda, fina, mas amarelíssima, a combinar com os sapatos altíssimos cor de laranja, com uma gravata de cornucópias amalucadas que meu sogro me emprestara, e depois deu, e uma camisa de riscas a irritar qualquer tentativa de combinação com a gravata, mas abafada por um casado vermelho vivo, depois uns óculos com uma lente escura só num olho, brilhantina no cabelo a escorrer e chapéu de palha pintado, enfim uma cena para todas as cenas que fiz. E daquela vez em que andei pela escola feito meio árabe, com um daqueles lenços na cabeça, que a Ana Couto me trouxera de um desses países, e esta cena foi naquele ano do conflito entre o Iraque e o Kwait, foi o ano em que organizámos uma charanga musical pela escola, tocava o Ângelo saxofone e o Castanheira braguesa e eu clarinete e o resto dos alunos bombos e pandeiretas, tudo mais ou menos descoordenado para parecermos bem. Hoje a malta anda mais deprimidita, mas ainda há garra para mascaradas, pelo menos os miúdos pelam-se por elas e trazem toda a parafernália de corantes, tintas, fitas, bisnagas, roupas, máscaras e cabeleiras, sempre numa de estarem irreconhecíveis, mas giros, giríssimos, malucos, quase normais de todo, que é o que me apetece dizer, porque a gente afinal mascara-se para ser quem é, não tenho dúvidas, que o recalcado liberta-se e finge que não é quem é, mas topa-se bem, e logo no Carnaval, quando toda a gente repara. Divirtam-se, mascarem-se, libertem-se e sejam felizes.
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