Provocar a partir do que está no chão e do que se apanha no ar
Saiu o primeiro Fanzine de
AMPAGDP, da autoria de Tiago Pereira, mentor e produtor de um projecto que já
foi referido nesta revista e que continua num ritmo de trabalho verdadeira-mente
surpreendente.
Trata-se de um projecto que toma as práticas musicais da
tradição ou populares ou popularizadas como campo de recolha, pesquisa,
conservação e consulta.
Eis uma das faces do Fanzine onde
tudo é provocação, inclusive o mapa de Portugal num daqueles formatos antigos
em que constam as províncias de Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira,
Estremadura, Alentejo e Algarve e as capitais de distrito e de conselho e os
rios e mais umas nesgas de território espanhol.
À volta do mapa, as ideias centrais
do projecto de trabalho, tudo naquela linguagem própria de quem se dedica ou
pensa que se dedica a uma contra-cultura de substância capaz de motivar para
novos tempos de criação: PUNKTRAD à letra quer dizer Tradição Punk e
Punk é um movimento cultural que teve a sua origem nos anos 70 do século passado e que se pode
caracterizar sucintamente como movimento de rebeldia cultural, de provocação
aos reinos dominantes da cultura instalada num país ou numa região, como
alternativa a tradições estabelecidas, como antídoto a consensos gerais ou
discursos politicamente certinhos e correctos, bem educados e ordeiros. No PUNK
inserem-se todas essas diatribes culturais impulsionadas por tribos urbanas de
contestação a valores ditos dominantes ou sistemas de organização social ditos
capitalistas ou imperialistas ou globalistas ou mesmo totalitários. O leitor
pode ir sempre aprimorar estas ideias e contestá-las, se quiser.
As frases à volta do mapa são de antologia «subversiva»:
1) A tradição hoje é para inglês ver por isso somos punks – que
constitui a síntese da crítica a tudo quanto é aparato civilizacional
procurando novos sentidos que incomodem;
2) Roubamos para a seguir dar – que constitui a síntese da intervenção
social ou incómodo ser no estilo Zé do Telhado ou Robin dos Bosques;
3) Samplamos, entendemos e estudamos, Investigamos, escolhemos e dispomos
– que constitui a síntese da seriedade do trabalho de incomodar que se eleva a
cabo.
O leitor é livre de ler as frases
no sentido que quiser. De todas as palavras destaca-se o verbo samplar, ou
samplear, que é um vocábulo inovador na nossa modernidade, para se referir a
toda a manipulação que a tecnologia digital hoje permite fazer das imagens e
dos sons reais que se captam.
O Fanzine é uma tirada irónica, um discurso feito a brincar
muito a sério.
lado do Fanzine tem as curiosidades principais:
1) Os desenhos ou trabalhos artísticos que a tradição popular consagra em objectos de trabalho
ou de uso funcional, em roupas, em azulejos, em paredes; a etnografia e a
antropologia sempre se dedicaram a recolher as «provas» das habilidades e das
habilitações artísticas dos seus entrevistados ou das suas fontes de
informação; a história dos desenhos feitos no cabo da navalha ou da vara do
pastor são uma espécie de paradigma do deslumbramento do etnógrafo; hoje estes
desenhos até já viraram tatuagens e mantêm tanto de primitivismo artístico como
de princípio estruturador de representação de costumes;
2) A «velhinha do mês» é uma das dimensões privilegiadas do trabalho de
Tiago Pereira, que até adoptou o ápodo de «Velhinha Pereira» na sua identidade
de trabalho: ele corre o país atrás da sabedoria musical, discursiva,
instrumental, coreográfica, narrativa, de velhos e velhinhas considerando-os
uma biblioteca viva, uma fonte de conhecimento. Os filmes, as gravações, que
Tiago Pereira faz das pessoas de idade que lhe transmitem a sua sabedoria
musical e verbal são um acontecimento ímpar na nossa cultura. Ele já reagiu
quanto pôde a ser comparado com outros recolectores de nossas tradições musicais,
nomeadamente Michel Giacometi, negando o estatuto que se lhes atribui, porque
de facto os seus trabalhos captam mais dimensões que o simples facto de
recolher, misturando dimensões que habitualmente não são esperadas numa
entrevista e que até eram rejeitadas e desaconselhadas. Os trabalhos de Tiago
Pereira são «manipulações» culturais, na sua essência, juntando ao rigor da
recolha da imagem e da gravação do som, aspectos que espelham o nosso tempo, as
nossas ansiedades e preocupações, as nossas contrariedades.
3) A transcrição musical do tema «Rosinha» - uma referência a todos os
trabalhos de registo escrito absolutamente essenciais também e que constituem
os cancioneiros, as pautas dos músicos.
4) Um esquema de aprendizagem ou
ensino de uma coreografia – que
traduz a ideia dominante do projecto de Tiago Pereira com o seu grupo «Os
Sampladélicos» que é o de pôs toda a gente a dançar.
5) Obituário – a dimensão mais difícil de manter a relação com as
fontes de informação: os informantes que morrem, as bibliotecas que
desaparecem, as pessoas que nós conhecemos, as amizades, os casos absolutos que
garantiram o nosso rigor de conhecimento, um dia morrem, um dia desaparecem,
mas ficaram registados, têm um lugar virtual de imortalidade.
São imprescindíveis aos
movimentos de retoma e manutenção de práticas da tradição oral e escrita das
sociedades em mudança, estes trabalhos de Tiago Pereira: eles são fontes
documentais ao estudo e à criatividade. Eles fundamentam saberes que podem
continuar ou não mas que são incontornáveis.
«Sampladélicos é um projeto de Sílvio
Rosado e Tiago Pereira, dois aficionados por imagens e música juntam a vontade
de tornar a música cada vez mais humana à vontade de distorcer sons, tradições,
lugares confortáveis. Masterizando uma nova revolução em cada som, misturam o
que se ouve com o que se vê para depois ser o público o recriador da fusão do
que se dança!» Consultado em https://www.visitportugal.com/pt-pt/content/samplad%C3%A9licos-1
Hoje a tecnologia digital permite
que a composição musical não conheça limites de criação. Os estilos de vida
urbana fundam-se cada vez em mecanismos de ansiedade cuja satisfação requer a contínua
variação de produtos, de atmosferas, de cenários, de roupagens, de linguagens,
até. A cultura PUNK é um fruto da liberdade e afirma-se indisponível para a
coercividade de comportamentos, mas todos sabemos como funcionam as tribos e as
diatribes sociais e ninguém se pode considerar imune de provocar ou de ser
provocado quando entra nas vias do trânsito aberto a punks. Portanto é bom
saber que o trabalho de Tiago Pereira respira toda a nossa liberdade e quem o
aprecia em todas as dimensões, como é o meu caso, não tem mais senão usá-lo,
estudá-lo e dar-lhe troco.
José Machado / Braga /2018
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