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quinta-feira, agosto 14, 2008

O último livro de Rogério Borralheiro

(Fotografia do Castelo da Piconha, na Galiza. Foto de JM)

Rogério Borralheiro
Tourém. Vila e Concelho. História de uma Honra de Barroso.
Edição da Junta de Freguesia de Tourém. Braga, 2008.

O autor deste livro não está mais entre nós. Morreu cheio de trabalho, antes do tempo pleno a que aspirava e que se esperava dele. Paz à sua alma e honra aos seus méritos e aos produtos do seu trabalho. Um deles aqui está, esta monografia histórica sobre Tourém, uma terra a que o ligavam não só laços de amizade com as gentes e as instituições, mas também curiosidades obsessivas e desafiadoras, as mesmas que alimentavam a sua sede de explicações sobre o seu torrão natal, o seu planalto Barrosão, o seu país.

Tive a honra e o dever de apresentar esta obra, até porque fui seu interlocutor durante o acto de criação, um interlocutor marginal, procurado mais pelas arritmias de sistematização, ou seja, por esse gosto de pôr em causa, do que pelo conhecimento de fontes ou de interpretação de documentos.

A perplexidade do Rogério polarizou-se nessa realidade a que a história chamou Castelo da Piconha e que os documentos referem como centro da logística militar para a defesa de fronteira e de um território concelhio que englobava um conjunto de lugares que hoje são Tourém e as terras do Couto Misto de Rubiás, Meaus e Santiago. Ora quem por ali passe hoje não tem dados que lhe possibilitem encaixar os fraguedos em tão importante imaginário concelhio. Mas é assim mesmo o desafio da história: procurar o que soubemos que existiu e que hoje não vemos ou que temos dificuldade em compreender.

O Rogério andava pelos arquivos históricos tão sôfrego de fontes e documentos sobre as Memórias Paroquiais ou sobre as Invasões Francesas, como sobre o seu concelho, sobre as terras da sua infância, aquelas terras que ocupavam um espaço cada vez mais denso nesta ideologia contemporânea de procurar paraísos perdidos e valores patrimoniais simultaneamente autónomos e comunitários. Os dados sobre a história local via-os sempre à luz de um princípio hermenêutico muito simples: iam a favor da corrente de opinião estabelecida ou iam em sentido contrário? E entusiasmava-se de tal maneira quando a perspectiva de interpretação podia acrescentar um pormenor que era preciso às vezes refrear-lhe os ânimos, quase sempre em vão. Foi assim com esta obra: a escrita ganhou o ponto alto da ansiedade quando recolheu aquela documentação curiosíssima sobre a liquidação dos direitos de Foral que os lavradores de Tourém tinham em dívida com o senhorio de suas terras há 40 anos, desde 1739 a 1779.

Este caso tomou-o ele como sintoma da própria administração pública de bens e pessoas: a cobrança dos impostos foi sempre desejada por uns como esquecimento ou perdão e por outros como ajuste de contas. O livro tem os documentos históricos possíveis, outros eram desejados, mas o autor ainda os não localizara. Se por um lado lhe ficou frustrada a perspectiva de apresentar os documentos originais do primeiro Foral e de constituição da Honra de Tourém, do tempo do Rei D. Sancho I, se por outro lhe ficou desanimada a procura das pedras do Castelo da Piconha, onde D. João I mandara erguer muralha, isso não lhe impediu a interpretação à luz de outros documentos similares e aproveitou bem para expor toda a sua aprendizagem sobre o funcionamento dos concelhos, numa atitude pedagógica de ensinar a compreender a evolução dos sistemas e processos de eleição e de nomeação dos dirigentes locais.

No livro está também uma explicação da evolução do mapa dos concelhos que existiram em Trás-os-Montes até á Reforma de 1836, data em que Tourém deixou de ser sede de concelho. Está ainda essa história curiosa do Bispo de Ourense se ter refugiado em Tourém, terra então da sua diocese, para fugir e discordar das políticas de Napoleão Bonaparte quando este invadiu Espanha e a quis submeter aos seus desígnios, ou seja, está ali um pormenor curioso mas essencial para se perceber um espírito cívico que se instalou neste canto do território que é Portugal e que é Galiza: esta ideia de as terras serem territórios comuns, mistos, partilhados por ambos os povos dos países com igualdade de interesses, de direitos e de deveres.

A história de Tourém ensina a perceber a história de muitos outros concelhos e o leitor desta obra já terá nesta função toda a compensação: as explicações são dadas com uma preocupação minuciosa e exaustiva dos procedimentos administrativos e da sua evolução ao longo dos séculos, o que é conseguido não só em termos de texto, mas também de imagem, mapas ou fotografias, estas tiradas pelo próprio em jornadas de paciente investigação.

Ao fim e ao cabo, com os documentos possíveis, quer relativos ao estatuto de concelho, quer relativos ao estatuto religioso, Rogério Borralheiro traz à indiscrição pública esta terra de Tourém que de ora em diante só terá a ganhar em saber mais sobre si, pois o desafio à descoberta de mais documentos e de mais fontes ficou bem lançado por ele. Este imaginário de uma terra como Tourém se confirmar na nossa história como Honra ou terra de autonomias merecidas e conquistadas, há-de sempre contrastar com o cumprimento das leis por imposição dos poderes centrais. Porque é neste sentimento de mérito que pode enraizar-se mais a nossa consciência cívica. Durante uns anos até nos poderemos convencer de que nada devemos a ninguém e de que temos tudo em dia, mas um dia chegará que alguém, essas gerações mais novas que nos vão seguir, nos pode cobrar uma dívida que entretanto se acumulou: se for de pão, teremos de trabalhar, mas se for de instrução ou conhecimento podemos já não ter recursos.

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