sábado, dezembro 02, 2023
terça-feira, dezembro 06, 2022
Crónicas da Rádio Francisco Sanches (2022-2023)
As palavras têm asas - 3 – programa de 3 de Dezembro de 2022
Na minha primeira crónica afirmei que vos diria como é que
as palavras ganham asas, e direi, mas primeiro terei de vos falar do chão de
onde elas hão-de voar, sim, de que sítio fixo ou estável hão-de elas partir
para a sua missão ou função de voar. Um dia, no ano lectivo de 1989-90, escrevi
uma canção para os meus alunos que tinha esta razão de ser no voo das palavas:
Vamos para a escola, companheiros,
Unidos na alegria de estudar
A língua de um país de marinheiros,
Falada numa terra junto ao mar!
É tempo de aventura!
Dá gozo descobrir
Que as palavras têm asas p’ra voar.
E na melhor altura,
Dos ninhos nascem sonhos de encantar.
É tudo uma questão de confiar!
A coisa tem piada!
Falar e escrever
São tarefas que se fazem com prazer;
Às vezes dão maçada,
Mas ninguém entra no jogo p’ra perder.
É tudo uma
questão de ver e querer!
Crónicas da Rádio Francisco Sanches (2022-2023)
Para o centenário de nascimento de José Saramago - 2
Se houve escritor português que levantou as palavras e as fez voar foi José Saramago, autor de nossa literatura cujo centenário de nascimento celebramos este mês de Novembro, a 16, tendo ele falecido em 2010 na ilha de Lanzarote no arquipélago das Canárias, onde tinha fixado uma de suas residências pelo mundo.
Nascera em 1922 na Azinhaga, concelho da Golegã, no Ribatejo. Entre outros, foi prémio Camões em 1995 e prémio Nobel da Literatura em 1998, tendo sido condecorado no nosso país com o mais elevado e prestigiante Grande Colar da Ordem de Santiago da Espada e a título póstumo com o Grande Colar da Ordem de Camões. O seu percurso biográfico é balizado pelas origens humildes de sua família, pela sua formação académica a nível secundário, pela sua profissão de serralheiro mecânico, depois pela sua profissão de jornalista e director de jornal, pela sua militância no partido comunista e pela sua dedicação à escrita. Nestas balizas biográficas conheceu a insatisfação e fez levantar surpresas e admirações, causou polémicas, enfim, marcou o seu e nosso tempo, notabilizou-se pelo que escreveu, em quantidade e qualidade, sendo o seu estilo muito peculiar.
Ao longo do meu percurso escolar, acompanhei os voos de suas palavras e de suas obras que li e conservo na minha biblioteca, não todas, mas bastantes. Li e referi aos meus alunos algumas de suas histórias, falei de seu estilo de escrita entre professores, acompanhei as polémicas de sua vida e de suas narrativas absolutamente marcadoras de nossa literatura, não só pelos temas escolhidos ou descobertos para os seus livros, mas sobretudo pelo foco e perspectiva do desenvolvimento narrativo das histórias ou das ideias. José Saramago marcou o meu tempo de professor de português, não só por uma das suas obras ser de leitura obrigatória no ensino secundário, mas pela influência que as suas obras e as suas posições ou ideias desencadearam na didáctica da língua materna.
O estilo é o homem, ouvimos dizer há muito em todo o tipo de intervenções sobre autores ou artistas ou artífices ou criadores, e, de facto, a escrita de Saramago depressa desencadeou uma polémica intensa nas escolas: a chamada escrita oralizante, sem marcadores de pontuação ou de formação de texto a que estávamos habituados, polarizando as questões da didáctica de formalismos e de marcas de longa duração na formatação dos textos: que a leitura tudo regula e que a língua materna tudo supera, com as práticas discursivas a funcionarem na inteligência de cada um acabam por ler bem e de forma correcta o que parece estar em linha contínua de texto e de enunciação. Na prática, os professores passaram a dar muita mais atenção às escritas de seus alunos, aos modos de ler e de articular, às distinções de ouvido e de entendimento lógico. As acusações ao autor sobre as irregularidades de sua escrita não acabaram nem acabam, estão sempre a renascer aqui e ali, mas deixaram de ser o foco das questões de didáctica, tendo esta assumido as complexidades de sua aprendizagem e de seu ensino, aproveitando todos os textos e tipos de textos.
Mas a polémica
maior das obras de José Saramago entrou pelas escolas dentro, não por os seus
textos serem lidos pelos alunos, nem todos adequados a leituras de sala de aula
e nem sempre ou melhor quase nunca selecionados pelos autores de manuais, mas
sim pela qualidade imaginária das histórias, pela surpreendente invenção de
personagens, pelo desenrolar imprevisto das acções diegéticas. José Saramago
encontrou nas histórias já conhecidas e nas que inventou a partir de causas ou
realidades provocadoras, peripécias, motivos, ideias, desenvolvimentos de
problemas, casos e figuras, diálogos e reflexões, retratos e descrições, que
colidiam com as representações habituais da vida ou que contradiziam as
expectativas: atribuir as suas polémicas histórias à sua natureza ideológica de
compromisso político é reduzir o impacto de suas obras na nossa complexidade
civilizacional: José Saramago inquietou-se com o desenvolvimento do mundo, com
a qualidade de voda no planeta terra, com a religião, com a história de nossos
monumentos, com a nossa capacidade de discernimento de soluções para os
problemas que criamos. Continuemos a lê-lo e continuemos a polemizar com as
suas obras.
segunda-feira, novembro 28, 2022
Postal de Natal de 2022
Na expressão da solidariedade com a Ucrânia, dedico o meu poema de Natal 2022 aos que resistem na trincheira da palavra e com ela esperam alcançar a paz. (Uso a imagem de uma escultura de Helder de Carvalho, que foi exposta nas ruas de Braga, concretamente no Largo Carlos Amarante).
Guião para auto de Natal
A mãe já deu à luz! Está tudo bem!
Siga o caso nas redes sociais:
Imagens da criança com seus pais
E gente a visitá-los, saiba quem!
[nas ruas há festa * e
a publicidade *
com drones atesta * a felicidade]
A história tem contornos que ninguém
Previa que saíssem nos jornais…
As últimas notícias são virais:
A família fugiu! Livre ou refém?
[numa estrela rara * a palavra paz *
o drone dispara *
por pouco a desfaz]
Suspensa a emissão, mas retomada.
A tal perseguição reivindicada
Faz a guerra chegar à nossa porta.
Quereis ver que da criança que nasceu
Já quase toda a Rede se esqueceu
Tornando a sua estrela letra morta?
[nos arquivos falta * a notícia dada *
dizem que era falsa
* e foi apagada]
José
Hermínio da Costa Machado
Braga
2022: com este guião,
feliz
Natal e boas festas.
quarta-feira, novembro 16, 2022
Crónicas na Rádio Francisco Sanches 2022/2023
As palavras têm asas – crónicas do professor José Machado, aposentado da Escola Francisco Sanches e colaborador da Rádio (Passou em 5 de Novembro de 2022 na Rádio Antena Minho)
Assim
o creio, têm asas e voam, pousam aqui e ali e logo se vão para outros
horizontes. Uma vez ditas e ouvidas, ou uma vez escritas e lidas, adquirem a
capacidade de voar, as palavras, sim, as palavras, que é delas que estou a
falar. Ouvidas pelas pessoas ou mesmo pelas paredes, toda a gente sabe como
estas ouvem, as palavras ganham vida nova nas vozes e nos olhos de outros. Toda
a gente já pôs palavras a voar: tu disseste, a mãe falou, o pai mandou dizer,
ouvi na Televisão, ouvi na Rádio, li no telemóvel, escrevi no email,
disseram-me, contaram-me, lê-se nas paredes e em todo o lado, está escrito nos
jornais… e não dou mais exemplos que estes chegam para vos mostrar como vós
sois treinadores de voo para as palavras sobreviverem. E mesmo que pareçam
paradas nos livros ou nos cadernos, mesmo que fiquem esquecidas nos
voice-mails, mesmo que pareçam mortas em papéis ou em paredes, mesmo que vivam
nos museus mais intrigantes, as palavras estão prontas a voar. A escola é o
maior centro de treino de palavras voadoras. Palavras, leva-as o vento, diz-se,
mas no que toca à escola devia dizer-se, palavras leva-as a escola para onde
ninguém calcula que possam ir. É verdade, nós havemos de morrer um dia e as
palavras que pusemos a voar ainda andarão por aí a viver… Este ano escolar de
2022-2023 que agora vai voar na Rádio Francisco Sanches terá palavras minhas
que já vêm com muitas horas de voo e eu espero que lhes acheis graça e as
façais voar um pouco mais. Chamei à minha colaboração «As palavras têm asas»,
que vos hei-de explicar a razão de ser. Por agora vou fazer levantar voo o
poema que vos enviei para começo deste novo ano lectivo:
De cara aberta
De cara aberta, sem medos,
Vamos voltar à escola
Que a vida requer vigor
Os saberes são os novelos
Que o ensino desenrola
Com arte, estudo e rigor,
Nos olhos, na voz, nos
dedos,
Todo o esforço consola
E acrescenta mais valor.
Ora entra lá então
Toma o teu lugar
Pratica atenção
E aprende a gostar
Toda a novidade
Há-de entusiasmar
E em qualquer idade
Te pode ajudar
A nossa vida escolar
Na sua diversidade
Tem rotinas valiosas
Que importa considerar
Com essa civilidade
De pessoas generosas
A escola é o lugar
Onde ganham mais verdade
Nossas vidas preciosas
José Machado/ Braga / 2022
segunda-feira, outubro 24, 2022
Sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia? Pode ser
O Amílcar enviou-me um poema de Sergei Yesenin:
Não tenho amigos entre as pessoas,
Sou leal a um reino diferente.
Estou pronto para colocar minha melhor gravata
No pescoço de qualquer cão.
quinta-feira, outubro 20, 2022
Com que belas adormecem os velhos?
Yasunari Kawabata - sobre o erotismo na metafísica da finitude
Li agora e ao mais é de há muito e eu desconhecia. O autor foi prémio Nobel em 1968. O livro, em PDF foi-me enviado pelo meu amigo Amílcar Augusto Rodrigues, psiquiatra com quem me alivio espiritualmente em questões de leituras e de comentários e de quem sou visita breve à sua morada transmontana, minha terra de nascimento, Jales. Eu e o Amílcar fomos vizinhos, casa com casa, na minha infância e na sua juventude, uma distância breve de idades que foi maior e agora não se nota. Cheguei a receber explicações dele em matéria de estudos primários, foi na casa de seus pais que vi pela primeira vez televisão. A sua mãe, A D. Leonor, era de Carrazedo do Alvão e o seu pai, Maximiano Rodrigues, era das Pedras Salgadas; foram morar para Jales quando o pai foi trabalhar para as Minas de Jales; antes trabalhara nos hotéis das Pedras Salgadas e eu já li histórias imprescindíveis que o Amílcar escreveu sobre esse tempo de vida de seu pai. Desde então, aguardo que o Amílcar publique para surpresa de quantos o conhecemos. Como médico psiquiatra, o Amílcar influenciou a minha filosofia de abordagem dos alunos. Uma palavra com ele e os horizontse da serra da Presa ou da de Quintã reconfiguram-se como símbolos. Vamos ao livro enviado que li de rajada e com o qual fiquei surpreendido: desconhecia que houvesse no Japão semelhante oferta de serviços aos homens velhos, velhos com mais de 60 anos, não sei se o critério hoje mudaria. Mas que serviço? O de poderem passar a noite dormindo com uma jovem em estado de nudez e de adormecimento controlado, narcotizado, ou seja, sem reacçoes de movimento ou de conversa conscientes com o cliente. Quem procura tal serviço sabe ao que vai e como se avia do mesmo é coisa que ficará com ele, já que o narrador deixa sobre isso a dúvida sistemática de que haja satisfação efectiva de actos sexuais. A história contada deixou-me ressonâncias de outras leituras que eu fizera e que associavam o cumprimento da velhice à ideia de satisfação plena de imaginário erótico, numa ânsia de procura de juventude ou numa ânsia de metafísica erótica como prenúncio de felicidade eterna. Que o cliente, o velho Eguchi aproveitou as vezes e as noites para nos revelar toda a sua vida e para nos inquietar sobre os nossos recalcamentos masculinos, chegando a aproximar o erotismo da violência extrema que é o desejo de ser senhor da morte do outro, isso deu para ler bem, embora sempre naquela expectativa de novidade que excitasse o imaginário, mas isso foi coisa que fica a esperar por outro género de histórias. Em algumas frases, tiro duas citações, a coisa parece andar rente a experiências de fuga à ideia de morte ou de acabamento físico pela perda da juventude, mas também à ideia de regresso às sensações primárias da beleza feminina ou do regresso aos braços da mãe criadora ou da recuperação de energias eróticas para aguentar o quotidiano.«Quando se deitavam em contato com a nudez da jovem mulher, os sentimentos que ressurgiam do fundo dos seus âmagos talvez não fossem apenas o medo da morte que se aproximava ou o lamento pela juventude perdida.»