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sábado, dezembro 02, 2023


Aqui deixo o meu poema de Natal 2023, criado a partir do noticiário intensivo sobre o conflito entre o Hamas e Israel a partir dos ataques coordenados por aquele movimento militar palestiniano, na faixa de Gaza, o qual fez inúmeros mortos nos kibutz e um elevado número de reféns. É sobre essa ideia mil vezes repetida na comunicação social de que um povo visa a extinção do outro que criei o poema. A ilustração decorre da minha actividade de contar histórias em escolas e em lares e a gestualidade pareceu-me sintomática dessa intenção que temos de apontar para cima quando insisitimos na ideia de superação ou de transcendência.


terça-feira, dezembro 06, 2022

Crónicas da Rádio Francisco Sanches (2022-2023)

 As palavras têm asas - 3 – programa de 3 de Dezembro de 2022

Na minha primeira crónica afirmei que vos diria como é que as palavras ganham asas, e direi, mas primeiro terei de vos falar do chão de onde elas hão-de voar, sim, de que sítio fixo ou estável hão-de elas partir para a sua missão ou função de voar. Um dia, no ano lectivo de 1989-90, escrevi uma canção para os meus alunos que tinha esta razão de ser no voo das palavas:

Vamos para a escola, companheiros,

Unidos na alegria de estudar

A língua de um país de marinheiros,

Falada numa terra junto ao mar!

 

É tempo de aventura!

Dá gozo descobrir

Que as palavras têm asas p’ra voar.

E na melhor altura,

Dos ninhos nascem sonhos de encantar.

É tudo uma questão de confiar!

 

A coisa tem piada!

Falar e escrever

São tarefas que se fazem com prazer;

Às vezes dão maçada,

Mas ninguém entra no jogo p’ra perder.

É tudo uma questão de ver e querer!

Ora, então, vamos responder à pergunta donde partem as palavras para seus voos? Do sítio onde as aprendemos e nós começamos por aprender as palavras que nos ligam a um território, a um chão, a um lugar especial, o da família, o da casa, o dos pais, o dos irmãos, o das educadoras, que é preciso dizer que agora muitas crianças já aprendem as palavras no chão dos infantários, no chão das amas. Aprendemos a falar para nos fixarmos a um território, e nesse território estão em primeiro lugar as pessoas, os pais. Todas as palavras nos prendem à terra e progressivamente as vamos treinando para voar e voar quer dizer andarem por outros espaços e por outras pessoas, servirem para outros sentidos. 

Lembremos as palavras que antecedem as palavras, aquele tagarelar, aquelas sequências de sons que os bebés enunciam e que nos servem de jogo encantatório para descobrirmos o que querem dizer. Toda a nossa descoberta da linguagem é para nos apetrecharmos com um instrumento que depois dará para tudo o que precisarmos de dizer ou de enunciar. Nós vamos crescendo e vamos aprendendo cada vez mais palavras. 

Entrando nas escolas, essa nossa capacidade de linguagem está sempre a aumentar e é então que nos damos conta de que elas têm asas: a maior parte das nossas palavras são para nos fixarmos à vida, à realidade, às vivências da casa, dos caminhos para a escola, dos lugares onde comemos e bebemos, onde brincamos, dos nomes das pessoas, dos amigos, dos vizinhos, das roupas e dos calçados, do que é nosso e do que não é. Mas a cada passo damos conta de que usamos as palavras para estar noutras dimensões desse real, para exprimir sentimentos, para recordar, para sonhar, para rezar, para fantasiar a realidade. 

As palavras são o nosso corpo mas saem-nos dele para descobrir outros corpos, outros seres, outras realidades. Vede, por exemplo, a palavra pão e começai a fixá-la no chão a que pertence, na mesa, no forno, na cozinha, depois usai as paredes para a erguer e começai a deixá-la voar, pelos campos, pelos barcos de transporte de cereais, pelos tractores, pelos supermercados… Vou atrás dela, esperai lá, até à próxima.

Crónicas da Rádio Francisco Sanches (2022-2023)

Para o centenário de nascimento de José Saramago - 2

Se houve escritor português que levantou as palavras e as fez voar foi José Saramago, autor de nossa literatura cujo centenário de nascimento celebramos este mês de Novembro, a 16, tendo ele falecido em 2010 na ilha de Lanzarote no arquipélago das Canárias, onde tinha fixado uma de suas residências pelo mundo. 

Nascera em 1922 na Azinhaga, concelho da Golegã, no Ribatejo. Entre outros, foi prémio Camões em 1995 e prémio Nobel da Literatura em 1998, tendo sido condecorado no nosso país com o mais elevado e prestigiante Grande Colar da Ordem de Santiago da Espada e a título póstumo com o Grande Colar da Ordem de Camões. O seu percurso biográfico é balizado pelas origens humildes de sua família, pela sua formação académica a nível secundário, pela sua profissão de serralheiro mecânico, depois pela sua profissão de jornalista e director de jornal, pela sua militância no partido comunista e pela sua dedicação à escrita. Nestas balizas biográficas conheceu a insatisfação e fez levantar surpresas e admirações, causou polémicas, enfim, marcou o seu e nosso tempo, notabilizou-se pelo que escreveu, em quantidade e qualidade, sendo o seu estilo muito peculiar. 

Ao longo do meu percurso escolar, acompanhei os voos de suas palavras e de suas obras que li e conservo na minha biblioteca, não todas, mas bastantes. Li e referi aos meus alunos algumas de suas histórias, falei de seu estilo de escrita entre professores, acompanhei as polémicas de sua vida e de suas narrativas absolutamente marcadoras de nossa literatura, não só pelos temas escolhidos ou descobertos para os seus livros, mas sobretudo pelo foco e perspectiva do desenvolvimento narrativo das histórias ou das ideias. José Saramago marcou o meu tempo de professor de português, não só por uma das suas obras ser de leitura obrigatória no ensino secundário, mas pela influência que as suas obras e as suas posições ou ideias desencadearam na didáctica da língua materna. 

O estilo é o homem, ouvimos dizer há muito em todo o tipo de intervenções sobre autores ou artistas ou artífices ou criadores, e, de facto, a escrita de Saramago depressa desencadeou uma polémica intensa nas escolas: a chamada escrita oralizante, sem marcadores de pontuação ou de formação de texto a que estávamos habituados, polarizando as questões da didáctica de formalismos e de marcas de longa duração na formatação dos textos: que a leitura tudo regula e que a língua materna tudo supera, com as práticas discursivas a funcionarem na inteligência de cada um acabam por ler bem e de forma correcta o que parece estar em linha contínua de texto e de enunciação. Na prática, os professores passaram a dar muita mais atenção às escritas de seus alunos, aos modos de ler e de articular, às distinções de ouvido e de entendimento lógico. As acusações ao autor sobre as irregularidades de sua escrita não acabaram nem acabam, estão sempre a renascer aqui e ali, mas deixaram de ser o foco das questões de didáctica, tendo esta assumido as complexidades de sua aprendizagem e de seu ensino, aproveitando todos os textos e tipos de textos. 

Mas a polémica maior das obras de José Saramago entrou pelas escolas dentro, não por os seus textos serem lidos pelos alunos, nem todos adequados a leituras de sala de aula e nem sempre ou melhor quase nunca selecionados pelos autores de manuais, mas sim pela qualidade imaginária das histórias, pela surpreendente invenção de personagens, pelo desenrolar imprevisto das acções diegéticas. José Saramago encontrou nas histórias já conhecidas e nas que inventou a partir de causas ou realidades provocadoras, peripécias, motivos, ideias, desenvolvimentos de problemas, casos e figuras, diálogos e reflexões, retratos e descrições, que colidiam com as representações habituais da vida ou que contradiziam as expectativas: atribuir as suas polémicas histórias à sua natureza ideológica de compromisso político é reduzir o impacto de suas obras na nossa complexidade civilizacional: José Saramago inquietou-se com o desenvolvimento do mundo, com a qualidade de voda no planeta terra, com a religião, com a história de nossos monumentos, com a nossa capacidade de discernimento de soluções para os problemas que criamos. Continuemos a lê-lo e continuemos a polemizar com as suas obras.  

segunda-feira, novembro 28, 2022

Postal de Natal de 2022


Na expressão da solidariedade com a Ucrânia, dedico o meu poema de Natal 2022 aos que resistem na trincheira da palavra e com ela esperam alcançar a paz. (Uso a imagem de uma escultura de Helder de Carvalho, que foi exposta nas ruas de Braga, concretamente no Largo Carlos Amarante).





Guião para auto de Natal 

 

A mãe já deu à luz! Está tudo bem!

Siga o caso nas redes sociais:

Imagens da criança com seus pais

E gente a visitá-los, saiba quem!

 

[nas ruas há festa * e a publicidade *

 com drones atesta * a felicidade]

 

A história tem contornos que ninguém 

Previa que saíssem nos jornais…

As últimas notícias são virais:

A família fugiu! Livre ou refém?

 

[numa estrela rara * a palavra paz *

o drone dispara * por pouco a desfaz]

 

Suspensa a emissão, mas retomada.

A tal perseguição reivindicada

Faz a guerra chegar à nossa porta.

 

Quereis ver que da criança que nasceu

Já quase toda a Rede se esqueceu

Tornando a sua estrela letra morta?

 

[nos arquivos falta * a notícia dada *

dizem que era falsa * e foi apagada]

 

José Hermínio da Costa Machado

Braga 2022: com este guião,

feliz Natal e boas festas.


quarta-feira, novembro 16, 2022

Crónicas na Rádio Francisco Sanches 2022/2023

 

As palavras têm asas – crónicas do professor José Machado, aposentado da Escola Francisco Sanches e colaborador da Rádio (Passou em 5 de Novembro de 2022 na Rádio Antena Minho)

Assim o creio, têm asas e voam, pousam aqui e ali e logo se vão para outros horizontes. Uma vez ditas e ouvidas, ou uma vez escritas e lidas, adquirem a capacidade de voar, as palavras, sim, as palavras, que é delas que estou a falar. Ouvidas pelas pessoas ou mesmo pelas paredes, toda a gente sabe como estas ouvem, as palavras ganham vida nova nas vozes e nos olhos de outros. Toda a gente já pôs palavras a voar: tu disseste, a mãe falou, o pai mandou dizer, ouvi na Televisão, ouvi na Rádio, li no telemóvel, escrevi no email, disseram-me, contaram-me, lê-se nas paredes e em todo o lado, está escrito nos jornais… e não dou mais exemplos que estes chegam para vos mostrar como vós sois treinadores de voo para as palavras sobreviverem. E mesmo que pareçam paradas nos livros ou nos cadernos, mesmo que fiquem esquecidas nos voice-mails, mesmo que pareçam mortas em papéis ou em paredes, mesmo que vivam nos museus mais intrigantes, as palavras estão prontas a voar. A escola é o maior centro de treino de palavras voadoras. Palavras, leva-as o vento, diz-se, mas no que toca à escola devia dizer-se, palavras leva-as a escola para onde ninguém calcula que possam ir. É verdade, nós havemos de morrer um dia e as palavras que pusemos a voar ainda andarão por aí a viver… Este ano escolar de 2022-2023 que agora vai voar na Rádio Francisco Sanches terá palavras minhas que já vêm com muitas horas de voo e eu espero que lhes acheis graça e as façais voar um pouco mais. Chamei à minha colaboração «As palavras têm asas», que vos hei-de explicar a razão de ser. Por agora vou fazer levantar voo o poema que vos enviei para começo deste novo ano lectivo:

De cara aberta

De cara aberta, sem medos,

Vamos voltar à escola

Que a vida requer vigor

Os saberes são os novelos

Que o ensino desenrola

Com arte, estudo e rigor,

Nos olhos, na voz, nos dedos,

Todo o esforço consola

E acrescenta mais valor.

 

Ora entra lá então

Toma o teu lugar

Pratica atenção

E aprende a gostar

Toda a novidade

Há-de entusiasmar

E em qualquer idade

Te pode ajudar

 

A nossa vida escolar

Na sua diversidade

Tem rotinas valiosas

Que importa considerar

Com essa civilidade

De pessoas generosas

A escola é o lugar

Onde ganham mais verdade

Nossas vidas preciosas

 

José Machado/ Braga / 2022

segunda-feira, outubro 24, 2022

Sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia? Pode ser

O Amílcar enviou-me um poema de Sergei Yesenin:

Não tenho amigos entre as pessoas,

Sou leal a um reino diferente.

Estou pronto para colocar minha melhor gravata

No pescoço de qualquer cão.

(Sergei Yesenin* poema, de há 100 anos, olha que a tradução, muito laboriosa, é minha...). Fui saber de quem se tratava e quanto li me entusiasmou. O leitor poderá seguir as pistas.

* In https://www.britannica.com/biography/Sergey-Aleksandrovich-Yesenin
«Sergey Aleksandrovich Yesenin, Yesenin also spelled Esenin, (born Oct. 3, 1895, Konstantinovo, Russia—died Dec. 27, 1925, Leningrad), the self-styled “last poet of wooden Russia,” whose dual image—that of a devout and simple peasant singer and that of a rowdy and blasphemous exhibitionist—reflects his tragic maladjustment to the changing world of the revolutionary era.»

Bem sei que não será fácil entender, senão como fenómeno genial, a brevidade de vida e a nomeada do poeta: consagrado após 30 anos de vida é porque deixou obra que mexeu com tudo e todos. Dizem os artigos que o poeta era mal querido pelos bolcheviques e isso torna-se claro, que ele deve ter detestado a revolução até ao âmago de sua criatividade, mas estas coisas são sempre muito discutíveis. De qualquer modo, pelo que foi a revolução russa até 1925, pelo que se seguiu e pelo que está a sobrar dela no mundo actual, o poeta revive e ressuscita em cada texto. Porventura foi para assinalar a complexidade deste nó górdio da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, em que o desfavorecimento dos humanos corre os campos da polémica e assume diferentes significados e relevâncias consoante o território em nome do qual se morre, que o Amílcar me enviou este poema que, assim, ganha particular acuidade. Acabei por redigir um comentário que enviei ao Amílcar e agora aguardo a repercussão.

Olha lá, este poema parece conter todo o desprezo pela minha pessoa enquanto ser humano, o poeta devia estar desesperado para retirar toda a confiança aos humanos a ponto de colocar a sua gravata ou símbolo de autoridade ou respeito em qualquer cão. Só que o poeta sabe bem que um cão nunca lhe lerá o poema e nunca quererá saber de gravata alguma. De maneira que o poema narcisista é de uma intencionalidade arbitrariamente absoluta, radical, hoje diríamos terrorista mesmo. O poeta sabe que a sua remissão está no leitor que se sentir acossado e se disponha a salvar todas as gravatas possíveis garantindo-lhes um reino de uso digno e compensador. Mas qual é esse reino? Se não é deste mundo tem de ser de um outro que assuma este como passagem, mas tem de ser um reino que dê razão de ser à gravata mais humilde e ao cão menos necessitado dela. Uma das coisas boas que têm os poetas é o seu desejo de absoluto: quando bem enunciado, não tem real que o assuma; quando bem radicado no real não tem absoluto a que aspire. Tratar da saúde mental a estes poetas não é fácil…

Fui ler mais um pouco e encontrei alguns poemas do homem que se suicidou, mas que deixou descendência. Aquela ideia de o poeta se achar no direito de nos recomendar que não hesitemos em mandar foder os outros, mas evitemos que os outros nos mandem foder a nós, deixa uma inquietação de sobressalto: precisaria a gente de ter razão e esta é o que só os poetas julgam ter... De qualquer maneira, este é um poeta que questionou o sentido último, a tal aparência de reino diferente, que a revolução bolchevique apregoou e que se traduziu em ordens de liquidação de gentes. Daí a evocação dos cães como consolo, merecedores de gravata, invocados naquela máxima de autor desconhecido: quanto mais conheço os homens, mais gosto dos cães...

quinta-feira, outubro 20, 2022

Com que belas adormecem os velhos?

 Yasunari Kawabata - sobre o erotismo na metafísica da finitude

Li agora e ao mais é de há muito e eu desconhecia. O autor foi prémio Nobel em 1968. O livro, em PDF foi-me enviado pelo meu amigo Amílcar Augusto Rodrigues, psiquiatra com quem me alivio espiritualmente em questões de leituras e de comentários e de quem sou visita breve à sua morada transmontana, minha terra de nascimento, Jales. Eu e o Amílcar fomos vizinhos, casa com casa, na minha infância e na sua juventude, uma distância breve de idades que foi maior e agora não se nota. Cheguei a receber explicações dele em matéria de estudos primários, foi na casa de seus pais que vi pela primeira vez televisão. A sua mãe, A D. Leonor, era de Carrazedo do Alvão e o seu pai, Maximiano Rodrigues, era das Pedras Salgadas; foram morar para Jales quando o pai foi trabalhar para as Minas de Jales; antes trabalhara nos hotéis das Pedras Salgadas e eu já li histórias imprescindíveis que o Amílcar escreveu sobre esse tempo de vida de seu pai. Desde então, aguardo que o Amílcar publique para surpresa de quantos o conhecemos. Como médico psiquiatra, o Amílcar influenciou a minha filosofia de abordagem dos alunos. Uma palavra com ele e os horizontse da serra da Presa ou da de Quintã reconfiguram-se como símbolos. Vamos ao livro enviado que li de rajada e com o qual fiquei surpreendido: desconhecia que houvesse no Japão semelhante oferta de serviços aos homens velhos, velhos com mais de 60 anos, não sei se o critério hoje mudaria. Mas que serviço? O de poderem passar a noite dormindo com uma jovem em estado de nudez e de adormecimento controlado, narcotizado, ou seja, sem reacçoes de movimento ou de conversa conscientes com o cliente. Quem procura tal serviço sabe ao que vai e como se avia do mesmo é coisa que ficará com ele, já que o narrador deixa sobre isso a dúvida sistemática de que haja satisfação efectiva de actos sexuais. A história contada deixou-me ressonâncias de outras leituras que eu fizera e que associavam o cumprimento da velhice à ideia de satisfação plena de imaginário erótico, numa ânsia de procura de juventude ou numa ânsia de metafísica erótica como prenúncio de felicidade eterna. Que o cliente, o velho Eguchi aproveitou as vezes e as noites para nos revelar toda a sua vida e para nos inquietar sobre os nossos recalcamentos masculinos, chegando a aproximar o erotismo da violência extrema que é o desejo de ser senhor da morte do outro, isso deu para ler bem, embora sempre naquela expectativa de novidade que excitasse o imaginário, mas isso foi coisa que fica a esperar por outro género de histórias. Em algumas frases, tiro duas citações, a coisa parece andar rente a experiências de fuga à ideia de morte ou de acabamento físico pela perda da juventude, mas também à ideia de regresso às sensações primárias da beleza feminina ou do regresso aos braços da mãe criadora ou da recuperação de energias eróticas para aguentar o quotidiano. 

«Quando se deitavam em contato com a nudez da jovem mulher, os sentimentos que ressurgiam do fundo dos seus âmagos talvez não fossem apenas o medo da morte que se aproximava ou o lamento pela juventude perdida.»

Provavelmente, a religião budista terá alguma responsabilidade na plausibilidade desta narrativa. As ideias que associam o estado de felicidade ou de paraíso eterno à presença de mulheres virgens e belas no reino do além passam pelo religioso dos povos e dos arquétipos mentais que a civilização vai sustentando.

«Numa noite tão fria, se pudesse me aquecer no calor de um corpo jovem e morrer de repente seria a suprema felicidade para este velho.»

No dia a dia não andarei longe da verdade se disser quanto a ideia subjacente à historia contada é princípio restaurador de optimismo e de ânimo. Que os escritores tenham uma capacidade de efabulação acima de nosso quotidiano material, capaz de gerar as histórias ao arrepio de um tempo saturado de poltiticamente correcto ou de primitivismos reflexos de repetição de modismos culturais efémeros, é o que fico sempre a esperar da invenção torrencial de uma escrita assim.