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sexta-feira, setembro 21, 2007

Proposições evasivas

(Nesta fotografia estou eu e o Frank Mocklinghoff, uma alemão especialista em registo de som, um produtor musical; estamos a almoçar na barraca do Américo Cachadinha, na romaria de S. Bartolomeu do Mar, no dia 24 de Agosto)

Há pelo menos 25 anos que calcorreio festas e romarias, quase sempre acompanhado de amigos certos, outras vezes com a minha esposa, de vez em quando só. É um divertimento de ofício, o de observar, o de conversar, o de inquirir. Quando comecei, foi atrás dos cantadores ao desafio, persegui-os por quanto era canto e esquina, fotografei-os, gravei-os, entrevistei-os, fiquei amigo de uns tantos, conhecido de alguns, estranho de vários. A par e passo observei outros intérpretes musicais, bandas e grupos folclóricos, coros de igreja, conjuntos e intérpretes. Assisti a desfiles e cortejos, dancei e cantei em raras ocasiões. Por obrigação pessoal fiz-me «romano entre romanos» e comi do que havia e onde o vi. As proposições que a seguir lavro são de risco fácil e em terra brava.

1ª Tudo (festa, cortejo, festival, actuação) se parece fazer segundo a tradição. Neste invocar da tradição tanto se instala um desejo de conservação como de mudança, ao sabor de conveniências da gestão dos eventos e da visibilidade das lideranças. A tradição manda fazer como sempre se fez, o que muitas vezes quer dizer que a tradição manda que se improvise, que se faça como se puder, que se tire partido do que há no lugar e no momento, que se invente como se inventou. A tradição é suficientemente lata para conter a sua própria aparente ultrapassagem, a tradição é um elástico eficaz. Não há nada fora da tradição. Recordo um episódio curioso: um dia, em Santa Marta de Portuzelo, estava eu a visitar uma casa apalaçada com sinais evidentes de muita acumulação de estilos e intervenções artísticas, quando se meteu à conversa o proprietário recente da mesma, um espanhol, que a comprara com a ideia do turismo de habitação e de espaço privilegiado para eventos sociais, casamentos, baptizados, além da intenção de restaurante e bar permanentes ou pelo menos sazonais. A dúvida do homem era saber como é que devia fazer o restauro da casa, que já consultara arquitectos e engenheiros e estava cheio de dúvidas, pois todos achavam que a casa era um produto de fantasias e de rasgos de arte. A conversa fez-se por outras voltas, da música às roupas, da infância à idade actual, das memórias de galegos e de portugueses, de tempos de pobreza e de tempos de ditadura, etc. e tal. A conclusão do homem, naquela atitude óbvia de «eureka» ou «ovo de colombo», ficou registada nestas palavras que reproduzo em galego ou espanhol estropiado se calhar: «Hay que seguir fantasiando!»

2ª O conservadorismo de «tipicidades», muitas vezes «mazelas e deficiências», ou seja, a manutenção de «traços locais» com valor interpretativo de genuinidade, pureza, rigor etnográfico, etc. e tal, é um argumento estafado, mas é ainda um argumento muito manipulado com eficácia. Que a estrada seja má, que as instalações sanitárias não existam, que a luz falhe, que as barracas dos comes e bebes sejam desajeitadas de tudo, que os horários não se cumpram, que os cânticos sejam executados «sabe Deus como», não são argumentos válidos para diminuírem o «casticismo» ou a natureza da festa ou do evento. Este argumento parece-me o mais frágil, ainda que o veja conviver com a argumentação da novidade, da experiência, do «uma vez não são vezes»; é muitas vezes usado por falta de proventos ou verbas, mas prevejo que brevemente seja ultrapassado por um daqueles normativos que mandam renovar, refazer, restituir, restaurar, reequipar, e outros «res» que andam no cerne da tradição.

3ª Em matéria de cortejos ou manifestações etnográficas, pratica-se uma etnografia de exclusão, ou seja, parou-se no tempo, fez-se uma selecção de traços que garantem boas fotografias, cristalizaram-se situações e retratos. O que vale é que há sempre gente a romper por outros lados, a misturar roupas e objectos, há sempre uma «inovação» para experimentar, enfim, o que vale é que anda uma angústia no ar e quando as coisas se fazem com este sentimento cada vez mais forte de serem uma caricatura do que foram, salvam-se pelo cómico, mas denunciam uma carência de abertura de actualização. Por que raio haveremos de ter vergonha de mostrar os nosso últimos 50 ou 60 anos de vida social? Quando as vacas entram na cidade, ressentem-se nos cascos da dureza do empedrado ou do alcatrão, e ainda que deixem a bosteira para os figurantes seguintes pisarem e repisarem, não parecem adaptadas.

4ª Em matéria de danças e cantares, não nos iludamos, a arte é com quem a sabe fazer, não é com quem a arremeda ou cicatriza, qualquer arte. É já tempo de nos convencermos que as danças e os cantares tradicionais não requerem roupas específicas para se exibirem ou praticarem, como é já tempo de esta juventude contemporânea aprender que se quer dançar e cantar tem de aprender como se faz, tem que dar ao canelo. Não falta quem ensine e ensine bem. Os grupos folclóricos devem começar a distinguir muito bem quando precisam de mostrar roupas da tradição e em que contextos ou situações e quando é que precisam de animar uma festa ou organizar um baile popular. Se já nem os padres precisam de estar sempre de cabeção ou de estola e hissope... (a continuar)

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