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quarta-feira, novembro 27, 2019

Poema de Natal 2019


A história de Natal ocupa a gente,

Gerando invulgares assimetrias,
Reconfigurações e fantasias,
Conforme a partilhamos no presente.

Qualquer pretexto a torna pertinente
Nas redes sociais, com mais-valias
Em lojas, em museus, em galerias,
Até em contentores de expediente.

Natal é nascimento de criança:
Quem conta o caso escolhe a perspectiva
E dá-lhe um fundamento integrador;

Sem vida é que uma história não avança!
Ocupa espaço e tempo a narrativa
Da mais humana dádiva de amor.


José Hermínio da Costa Machado / 2019
Eu e minha esposa desejamos aos nossos amigos

um feliz Natal e um Ano Novo cheio de prosperidade.

quarta-feira, novembro 20, 2019

O Estado Novo e a cultura popular (2)

http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/museus-e-monumentos/rede-portuguesa/m/museu-de-arte-popular/

Este é o segundo artigo e visa responder à questão das relações entre o Estado Novo e a cultura popular. Já sabe o leitor que estes artigos têm ponto de partida na leitura da obra de Maria BARTHEZ, Memória de Francisco Lage, da prática à teoria, Gradiva, Braga, 2019. A questão de saber determinar como e até que ponto o Estado Novo definiu os caminhos da cultura popular, em termos de propostas conceptuais ou protocolos metodológicos de procedimento, tem de se compreender à luz dos pressupostos ideológicos do poder dominante e dos pressupostos ideológicos das forças de oposição ou de resistência ao exercício desse poder. Correndo o risco de simplificar, sabe-se que o Estado Novo tem um projecto para a sociedade portuguesa e que o vai exercer através de mecanismos institucionais de controle, numa criação de burocracia corporativa, com recurso a instâncias policiais e de censura. As forças de oposição dividem-se em dois campos, um de inspiração totalitária também, mas comunista, digamos, outro de inspiração mais social-democrata, sem adesão ideológica ao modelo dos países então ditos socialistas. O que há de comum entre o poder instituído e as forças de oposição é uma espécie de «ódio à américa» ou à liberdade concebida segundo um modelo de sociedade capitalista. É neste quadro de tomadas de posição, com a criação de movimentos culturais ora na defesa de um nacionalismo mais integrista e personalizadamente renovador ou de outro mais internacionalista e socialmente revolucionário que devemos procurar o esclarecimento da questão supra colocada. Todas as forças em presença investem simultaneamente na defesa de valores identitários que resultam do estudo das ciências sociais e que beneficiam, ao tempo, de um caudal imenso de estudos comuns a todos os países da Europa e do mundo, podemos dizer. Neste quadro, saber o que resulta do acumulado cultural, antropológico, literário, artístico, etnográfico, etc., e o que resulta da inspiração ou criação local dos mecanismos implementados pelo Estado Novo, é um desafio investigativo. O livro que tenho estado a analisar não o faz, a meu ver, de modo adequado e esclarecido; cai na tentação fácil de considerar que aquilo que o regime apoia e mobiliza é de sua invenção. Passemos ao caso das paradas, desfiles, museus, grupos de folclore, gabinetes de estudo, feiras, exposições, etc. Por exemplo, a interpretação da parada agrícola como caso sintomático de invenção de tradições por parte do Estado Novo não me parece adequada; o conceito de parada industrial ou agrícola estava estabelecido em muitos países, alguns avançavam já para a criação de reservas étnicas ou preservação de costumes típicos em ambientes permanentes; nem mesmo acho bem que se atribua ao Estado Novo a invenção dos eventos que vão enquadrar as tradições nessas paradas ou exposições ambulantes e efémeras: o palco e as circunstâncias em que se vai fazer a representação do uso ou costume, como, por exemplo, a apresentação e desfile do boi bento, a exibição do modo de namoro, a cavalgada dos feirantes, a lavagem da roupa, a cultura do linho, etc., estavam inventados.  Classificar a «Parada» como  invenção, como vai ser depois o «desfile etnográfico», ou o «cortejo de oferendas», ou a «feira das colheitas», é, em relação aos estudos que então já circulavam (a maior parte dos quais consta da biblioteca pessoal de Francisco lage, como a autora explica), uma interpretação abusiva. O controle político e cultural e ideológico dos conteúdos exibidos, o controle das gentes envolvidas, com o medo de que possam manifestar-se em sentido diferente, aí, sim, concordo que se possa e deva falar, mas não é o que a autora Maria Barthez faz. Sintomático, é por exemplo, que a autora não confronte fontes de informação que se avançavam sobre as manifestações populares, dentro do campo semântico do Estado Novo e dos seus mecanismos, como, por exemplo, as posições do Conde da Aurora que descreve os carros da Parada como «teorias»: a teoria das vessadas, a teoria do pão, as teorias dos frutos das espadeladas de todo mister do linho… (In Revista Ilustrada de Cultura literária scientífica e artística, vol II nº 10, Porto, 1929. Dizer também que estas experiências de apresentação das teorias na Parada são uma antecipação do que vai ser a «etnografia do regime» do Estado Novo depois de 1935 também não me parece correcto, dado que estas representações eram frequentes e comuns nas festas, nos teatros; a espectacularização das tradições e dos momentos rústicos regionais já andava feita na literatura, entrou para a fotografia, era uma prática comum desde o século XIX em toda a Europa; a representação de quadros de costumes estava já institucionalizada em alguns países, em museus… (a continuar)

terça-feira, novembro 12, 2019

Chamadas de Santa Cruz 6

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Em Santa Cruz o confronto é com a vida e com o acumulado dela que se extasia nos olhos das pessoas, seja quando se mostram a si próprios,  seja quando olham na direcção dos outros ou das coisas e coisas são a arte, são as casas, são os carros, são as paredes, é o comércio, é o bulício urbano. 

Entro no lar e os olhos de quem vejo têm uma vida para contar, alguns não contarão mais que não têm voz, ou se a têm já diz deles o que duvidamos que tenham vivido, vá lá a gente entender um cérebro que deu em voar noutras direcções. Mas há palavras ainda suficientes e as há também em excesso até, se as pensarmos como provas de um vivido que se achou limitado pela doença ou pela impossibilidade extemporânea de algum órgão. 

Esta semana foi dia de magusto e as castanhas cozidas celebraram duplamente a tradição, fez-se o magusto e fez-se no Lar que teve forma própria de acontecer, como é natural, numa entreajuda permanente de quem pode, numa presença fulgurante dos miúdos do pré-escolar, nas cantigas populares de quatro amigos, no ensaio de passos de dança. Comemos as castanhas naquela lentidão de estarmos juntos. 

Mas os os lhos também se viram para fora em Santa Cruz e todo o bulício do Largo diz da cidade o suficiente para se reparar com a indiferença de um costume de ver, de um cansaço de saber que foi sempre assim, pessoas a ir e vir, carros a passar, gente parada à espera. Andar na cidade com uma pessoa em cadeira de rodas é um trabalho de tracção completo, um esforço de pernas e de braços, um contorcionismo de atenção. A gente empurra a cadeira e fala para a pessoa transportada e ela para nós de um jeito que não tem razão alguma de ser, contrariado que é pelas circunstâncias, o frente-a-frente da conversa é agora da frente para trás e de trás para a frente, num esforço de audição sempre exigente. Mas pára-se e atende-se. Tudo tem a paciência. 

Andei a semana inteira de livro na mão, com quase nenhum tempo de leitura persistente, toda ela pontual, frase agora, frase logo, uma aqui e outra ali, deixando para casa a consumição inteira dos textos. O livro era de António Cabral, uma reedição dos seus Poemas Durienses, 56 anos depois da primeira edição, com as ilustrações do pintor Nuno Barreto, já falecido, naquele estilo figurado, estampado em linóleo. Os trabalhos em linóleo resultam dessa técnica de escavar numa placa específica, como se fosse madeira, uma imagem invertida daquela que vai sair quando se imprimir numa folha; é uma técnica que se usa nos carimbos, para o ouvinte ficar esclarecido. Pois bem, Nuno Barreto, de quem me lembro bem por ter trabalhado com ele na Casa Museu Nogueira da Silva e por ter escrito algumas páginas sobre a sua pintura,  fez para este trabalho poético de António Cabral cinco linóleos significativos da vida social e laboral no douro: o da capa revela o pintor e a sua esposa, em novos, depois, integrados nos poemas, uma imagem referencia o jogo da malha, outra  o lavrador contemplando a vinha, outra dois cavadores e na última vemos  a oliveira e o pássaro, esta com uma cercadura de grade de igreja ou cemitério ou promontório, geradora de um sentimento de pertença eclesial ou paroquial ou aldeã.

Eu conheci António Cabral, lembro-me dele ainda padre, era eu jovem, e lidei com ele enquanto professor, já casado e com filhas, dava ele aulas em Vila Real no Magistério e eu fora colocado na Escola Diogo Cão, no ciclo preparatório, como então se dizia, onde fiquei dois anos. Nesses dois anos encontrávamo-nos com regularidade no café Pompeia, eu não era íntimo dele, mas ele acabou por ser a pessoa que eu ouvia com atenção e a quem cheguei a mostrar poemas que então escrevi. 

Colaborámos depois no primeiro número da revista Tellus, juntamente com Pires Cabral. Li as suas obras, interessei-me particularmente pelos seus livros dedicados aos jogos tradicionais, apresentei obras suas na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro em Braga. E hoje, que é sábado, vou apresentar os seus Poemas Durienses, uma obra poética que vai ter como ouvintes muitas pessoas da região duriense e que conheceram muito bem o douro enquanto região vinícola que o António Cabral usou como inspiração. O livro de poemas termina assim: «Paraíso! Paraíso! Oh cântico de pedra à esperança!» É desta esperança que vou falar, para saber até que ponto se concretizou e como, e que orgulho poderá ela ter na obra do poeta que a cantou.