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quarta-feira, outubro 16, 2019

Retomar caminho

Sempre a prometê-lo e a dizê-lo aos amigos, que aqui viram caminhos trilhados com algum interesse, acho que este ano vou cumprir, ou seja, vou retomar esta escrita de têmpera, para treinar a mão e desencadear a sedimentação das emoções.  Este ano escolar vou exercê-lo sem componente lectiva e espero não o terminar porque entretanto virá da Caixa Geral de Aposentações a minha alforria docente, espero bem. Manterei na escola, na Rádio Francisco Sanches uma colaboração com crónicas dispersas, ainda que reunidas sob o título de Chamadas de Santa Cruz, explicação que darei depois. Para já, deixo aqui a 3ª crónica.

Chamadas de Santa Cruz 3 - a escola de meu pai - programa de 19 de Outubro de 2019

Todos os dias, comunico, de Santa Cruz, por telefone, com meu pai que está em Lisboa, integrado num lar, muito perto de seus filhos, que o visitam e assistem. Tem 92 anos, nasceu em Nogueira, Vila Real, terra que tem, entre outras instituições, uma antiga e afamada Banda de Música, onde tocou um irmão seu e mais tarde um sobrinho, hoje maestro da Banda da Ericeira, se não me engano. 
O meu pai tem da escola, que fez só até à quarta classe, uma visão exponencialmente positiva, e digo exponencialmente porque a sua admiração pelo seu professor primário, assim ele diz e se dizia, já falecido, cresce sempre que recorda os tempos da escola e sobretudo os conhecimentos que lhe ficou a dever pela vida fora. Foi o professor Ramos, natural de Celorico de Basto, esteve em Nogueira alguns anos,  hospedado na casa da tia Maria dos Anjos, boa cozinheira.
Meu pai criou 9 filhos, cinco raparigas e quatro rapazes, com a ideia arreigada de que a escola faria por eles, por nós, um complemento de formação e de educação que ele não teria podido obter na sua infância. Meu pai nasceu em 1927, andou na escola dos sete aos dez, portanto de 1934 a 1937, tempos que é preciso ir ler à história como foram e que acontecimentos os marcaram, não só para confirmar e ampliar as memórias que meu pai narra, mas sobretudo para calcular melhor o horizonte das suas vivências escolares. Aprendeu a ler, a escrever e a contar, com conhecimentos de matemática e de história que hoje nos provocam a estupefacção: meu pai aprendeu até ao fim da quarta classe tudo quanto lhe fez falta para ser ajudante de comércio no Porto numa drogaria, depois escriturário e fiel de armazém e director dos escritórios nas Minas de Jales. Na tropa fez um brilharete ao que conta sobre ajudas e esclarecimentos que prestou às mais variadas patentes superiores. 
Na escola primária, a partir da terceira classe, meu pai foi professor de adultos, é verdade, conta ele e eu ainda ouvi pessoas da sua aldeia a confirmarem-no, que o professor lhe entregava uma classe de adultos, uma classe nocturna, para ele os ensinar a ler e lhes aplicar as contas de somar, subtrair, multiplicar e dividir, além dos ditados e da correcção e erros de escrita. 
Mas o que mais me surpreendeu sempre na narrativa escolar de meu pai foi ele dizer, e localizar o púlpito de onde o fazia, que lia o jornal «O Primeiro de Janeiro» em voz alta para toda a aldeia, ali no muro da botica. «João, lê as notícias da guerra, lê alto». E ele era um papagaio, lia tudo, corria então a guerra civil espanhola. Pois foi esse mesmo jornal que meu pai assinou diariamente durante a minha infância, foi nele que aprendi a ler, foi nele que tive contacto com os quadradinhos, com a banda desenhada do Príncipe Valente. Minha mãe não perdia notícias sobre as famílias reais por essa Europa fora e meu pai lia o jornal à mesa, enquanto comia, ao jantar, sempre atento a nós e aos outros, como dizia a minha mãe.
Que a sua escolaridade foi de papaguear conhecimentos, tabuadas, rios e serras, fórmulas de cálculo, classes de palavras e funções sintácticas?, isso verifiquei eu, depois, que ele  tudo integrou na sua memória, e de tudo fez proveito.
Meu pai comprou e instalou na sala de costura de nossa casa em Jales um quadro preto, de dimensões mais reduzidas que o quadro escolar, mas com o mesmo giz e o mesmo pano apagador. Nesse quadro fiz eu centenas de contas e meus irmãos também; meu pai entrava no quarto e punha uma conta no quadro, eu ia e fazia, ele verificava e punha outra; à tarde, antes de jantar, ditava problemas e assistia à resolução. Meu pai tinha uma caligrafia escorreita, muito certinha, inclinada para a frente, escrevia com velocidade e sem gatafunhar, ideias claras, pontuação adequada. Guardo as cartas que me escreveu a partir da minha saída da aldeia, para continuar estudos. 
A preparação escolar de meu pai era assunto falado na empresa e muita gente o apontava como instruído e homem de discurso, prova que deixou feita no clube desportivo, nas festas, nos casamentos, nas cerimónias de ilustração que havia a cada passo na empresa e na nossa terra.

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