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segunda-feira, julho 16, 2018

A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria


Provocar a partir do que está no chão e do que se apanha no ar

Saiu o primeiro Fanzine de AMPAGDP, da autoria de Tiago Pereira, mentor e produtor de um projecto que já foi referido nesta revista e que continua num ritmo de trabalho verdadeira-mente surpreendente.

Trata-se de um projecto que toma as práticas musicais da tradição ou populares ou popularizadas como campo de recolha, pesquisa, conservação e consulta.

Eis uma das faces do Fanzine onde tudo é provocação, inclusive o mapa de Portugal num daqueles formatos antigos em que constam as províncias de Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo e Algarve e as capitais de distrito e de conselho e os rios e mais umas nesgas de território espanhol. 

À volta do mapa, as ideias centrais do projecto de trabalho, tudo naquela linguagem própria de quem se dedica ou pensa que se dedica a uma contra-cultura de substância capaz de motivar para novos tempos de criação: PUNKTRAD à letra quer dizer Tradição Punk e Punk é um movimento cultural que teve a sua origem  nos anos 70 do século passado e que se pode caracterizar sucintamente como movimento de rebeldia cultural, de provocação aos reinos dominantes da cultura instalada num país ou numa região, como alternativa a tradições estabelecidas, como antídoto a consensos gerais ou discursos politicamente certinhos e correctos, bem educados e ordeiros. No PUNK inserem-se todas essas diatribes culturais impulsionadas por tribos urbanas de contestação a valores ditos dominantes ou sistemas de organização social ditos capitalistas ou imperialistas ou globalistas ou mesmo totalitários. O leitor pode ir sempre aprimorar estas ideias e contestá-las, se quiser.


As frases à volta do mapa são de antologia «subversiva»:
1) A tradição hoje é para inglês ver por isso somos punks – que constitui a síntese da crítica a tudo quanto é aparato civilizacional procurando novos sentidos que incomodem;
2) Roubamos para a seguir dar – que constitui a síntese da intervenção social ou incómodo ser no estilo Zé do Telhado ou Robin dos Bosques;
3) Samplamos, entendemos e estudamos, Investigamos, escolhemos e dispomos – que constitui a síntese da seriedade do trabalho de incomodar que se eleva a cabo.
O leitor é livre de ler as frases no sentido que quiser. De todas as palavras destaca-se o verbo samplar, ou samplear, que é um vocábulo inovador na nossa modernidade, para se referir a toda a manipulação que a tecnologia digital hoje permite fazer das imagens e dos sons reais que se captam.
O Fanzine é uma tirada irónica, um discurso feito a brincar muito a sério.

lado do Fanzine tem as curiosidades principais:

1) Os desenhos ou trabalhos artísticos que a tradição popular consagra em objectos de trabalho ou de uso funcional, em roupas, em azulejos, em paredes; a etnografia e a antropologia sempre se dedicaram a recolher as «provas» das habilidades e das habilitações artísticas dos seus entrevistados ou das suas fontes de informação; a história dos desenhos feitos no cabo da navalha ou da vara do pastor são uma espécie de paradigma do deslumbramento do etnógrafo; hoje estes desenhos até já viraram tatuagens e mantêm tanto de primitivismo artístico como de princípio estruturador de representação de costumes;

2) A «velhinha do mês» é uma das dimensões privilegiadas do trabalho de Tiago Pereira, que até adoptou o ápodo de «Velhinha Pereira» na sua identidade de trabalho: ele corre o país atrás da sabedoria musical, discursiva, instrumental, coreográfica, narrativa, de velhos e velhinhas considerando-os uma biblioteca viva, uma fonte de conhecimento. Os filmes, as gravações, que Tiago Pereira faz das pessoas de idade que lhe transmitem a sua sabedoria musical e verbal são um acontecimento ímpar na nossa cultura. Ele já reagiu quanto pôde a ser comparado com outros recolectores de nossas tradições musicais, nomeadamente Michel Giacometi, negando o estatuto que se lhes atribui, porque de facto os seus trabalhos captam mais dimensões que o simples facto de recolher, misturando dimensões que habitualmente não são esperadas numa entrevista e que até eram rejeitadas e desaconselhadas. Os trabalhos de Tiago Pereira são «manipulações» culturais, na sua essência, juntando ao rigor da recolha da imagem e da gravação do som, aspectos que espelham o nosso tempo, as nossas ansiedades e preocupações, as nossas contrariedades.

3) A transcrição musical do tema «Rosinha» - uma referência a todos os trabalhos de registo escrito absolutamente essenciais também e que constituem os cancioneiros, as pautas dos músicos.

4) Um esquema de aprendizagem ou ensino de uma coreografia – que traduz a ideia dominante do projecto de Tiago Pereira com o seu grupo «Os Sampladélicos» que é o de pôs toda a gente a dançar.

5) Obituário – a dimensão mais difícil de manter a relação com as fontes de informação: os informantes que morrem, as bibliotecas que desaparecem, as pessoas que nós conhecemos, as amizades, os casos absolutos que garantiram o nosso rigor de conhecimento, um dia morrem, um dia desaparecem, mas ficaram registados, têm um lugar virtual de imortalidade.
São imprescindíveis aos movimentos de retoma e manutenção de práticas da tradição oral e escrita das sociedades em mudança, estes trabalhos de Tiago Pereira: eles são fontes documentais ao estudo e à criatividade. Eles fundamentam saberes que podem continuar ou não mas que são incontornáveis.

«Sampladélicos é um projeto de Sílvio Rosado e Tiago Pereira, dois aficionados por imagens e música juntam a vontade de tornar a música cada vez mais humana à vontade de distorcer sons, tradições, lugares confortáveis. Masterizando uma nova revolução em cada som, misturam o que se ouve com o que se vê para depois ser o público o recriador da fusão do que se dança!» Consultado em https://www.visitportugal.com/pt-pt/content/samplad%C3%A9licos-1

Hoje a tecnologia digital permite que a composição musical não conheça limites de criação. Os estilos de vida urbana fundam-se cada vez em mecanismos de ansiedade cuja satisfação requer a contínua variação de produtos, de atmosferas, de cenários, de roupagens, de linguagens, até. A cultura PUNK é um fruto da liberdade e afirma-se indisponível para a coercividade de comportamentos, mas todos sabemos como funcionam as tribos e as diatribes sociais e ninguém se pode considerar imune de provocar ou de ser provocado quando entra nas vias do trânsito aberto a punks. Portanto é bom saber que o trabalho de Tiago Pereira respira toda a nossa liberdade e quem o aprecia em todas as dimensões, como é o meu caso, não tem mais senão usá-lo, estudá-lo e dar-lhe troco.
José Machado / Braga /2018

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