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quinta-feira, março 17, 2016

Cascas e aparas – programa de 19 de Março de 2016

(uma crónica para a Rádio Francisco Sanches) 


Hoje é o dia do pai, a festa de S. José, o pai adoptivo de Jesus, uma história bíblica que ilustra para o povo Cristão o mistério da concepção de Maria e, num plano mais antropológico, funda no indivíduo e no social o cumprimento da missão de educar os filhos e de estabelecer a família numa relação de ordem moral transcendente aos naturais desejos de uma relação amorosa. 

Hoje é o dia do pai e devo recordar aqui quanto fico a dever ao meu, agora já próximo dos 89 anos, homem natural de Nogueira, freguesia de Vila Real, onde existe uma célebre banda de música que goza da fama de se esfarrapar toda para cumprir os seus objectivos - teve sempre para mim o significado de entrega total a uma causa este verbo esfarrapar. Meu pai teve e tem uma narrativa pedagógica sobre si e sobre os seus, familiares e vizinhos ou moradores na terra, um aterra dedicada ao vinho, nas encostas do Douro superior, uma narrativa que hoje é toda politicamente incorrecta pois se baseia no valor do trabalho desde tenra idade, primeiro o trabalho de aprender as letras e de as ensinar a outros, depois o trabalho das vinhas e do ganha-pão. Com a idade de saber ler meu pai, nascido em 1927, leria depois o jornal na botica em voz alta, naqueles anos em que a guerra civil espanhola fazia chegar à sua terra alguns foragidos ; com treze anos foi de caixeiro para o Porto e aí se fez o escriturário ou fiel de armazém ou encarregado de negócios que mais tarde, depois da tropa, nas Minas de Jales, lhe garantiria a criação de 9 filhos, resultado de um casamento feliz com minha mãe, natural de Raiz do Monte, Vila Pouca de Aguiar, costureira de saber e profissão para muitas tarefas de confeccionar, coser e remendar roupas para filhos, para a empresa, para vizinhos. 

Hoje é dia de S. José, o santo pai adoptivo que eu encarnei na primeira vez que entrei na procissão solene da festa de S. João em Raiz do Monte, com minha irmã mais velha a fazer de Nossa Senhora e uma criança pelas mãos de ambos, eu tinha como adereços a vestimenta azul, a cabeleira loura e encaracolada e uma serra de aperto de corda, real, autêntica, dos carpinteiros de então, que levava ao ombro. Acho que há por casa fotografias do aparato processional, tiradas por meu pai que tinha uma flexaret, aquela máquina que se olhava na vertical para mirar e disparar ou que se punha sobre um cavalete. Quando era usada a tiracolo por meu pai ainda as fotos ficavam razoáveis e com enquadramento alinhavado, mas se fosse no tripé com o disparo automático ligado, meu pai aparecia nelas de cabeça cortada pois previra o foco e o enquadramento para a altura dos filhos e quase sempre se esquecia de que ao colocar-se atrás de nós não havia espaço todo para ele. 

Falo destas memórias com a ternura que posso, nesta crónica que também é assinalada com toda a tristeza que minha escola viveu esta semana por ter falecido de forma imprevista um dos nossos alunos, o Emanuel, que frequentava o 8º 8. A gente fica sem palavras perante as fatalidades desta natureza, lamenta a perda e procura minorar o sofrimento à família com todas as manifestações de solidariedade. A vida faz-se destas perdas e elas precisam de ganhar sentido em nossos momentos.

Foi também uma semana marcada por uma inspecção do ME aos nossos currículos de educação especial , acto administrativo e pedagógico que nos reforçou a consciência da dedicação que temos pelos nossos alunos cuja formação e educação inclusivas procuramos garantir e  desenvolver. É nesta invocação de um pai adoptivo que me revejo melhor quando reflicto na minha função docente, assumindo ainda com optimismo e confiança esta missão de cuidar dos filhos de outros, de lembrar os que já por aqui passaram e de lamentar a perda intempestiva e precoce de alguns. Obrigado e até à próxima.