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segunda-feira, novembro 09, 2015

Bento da Cruz: Peirezes/Montalegre 1925 - Porto 2015

Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro em Braga
10 de Outubro de 2015: Juntar das Vindimas – Homenagem ao escritor Bento da Cruz
No escaparate bibliográfico da Casa, o senhor Correia, a quem desejamos a melhor evolução no seu estado de saúde, por ter caído de uma laranjeira e se ter estatelado no solo contra ela própria e assim ter fracturado a coluna, coisa de moço numa idade que o desaconselhava, ainda que o atrevimento seja muitas vezes progressivo com a idade, expôs quase todas as obras do escritor Bento da Cruz, a maior parte delas aqui apresentadas e aqui saboreadas com a presença do autor, sempre num ambiente propício aos efeitos da sua palavra, sua dele, escritor, de seus pensamentos e sobretudo de sua presença física. Eu tive a honra e o trabalho de apresentar todos os livros expostos, li-os e comentei-os, andei depois por algumas terras a repetir-me, com a presença do escritor e para seu orgulho e proveito, coisas de que me não arrependerei nunca. 
Bento Gonçalves da Cruz nasceu no lugar de Peirezes, freguesia de S. Vicente da Chã, concelho de Montalegre, a 22 de Fevereiro de 1925 e faleceu no Porto, onde morava, perto do estádio das Antas, a 25 de Agosto deste ano de 2015. Jaz sepultado em Peirezes. Viveu então 90 anos, muita idade vivida, é certo, mas sempre pouca para quem tinha a vida da escrita como modo de cumprir a outra. Estudou para padre nos beneditinos de Singeverga, licenciou-se em medicina, exercendo-a como clínico geral e estomatologista, mas foi também político deputado e foi sobretudo escritor. Como médico começou a exercer em Souselas, depois no Barroso, em Pisões, e finalmente no Porto onde se radica em 1971. Logo após o 25 de Abril, fundou o jornal Correio do Planalto de que foi director até à morte, um órgão de informação com ideário de participação política progressista e de esquerda. Teve o seu nome associado a uma escola secundária, a escola secundária Bento da Cruz de Montalegre onde tem busto que o perpetua. Pertencia à maçonaria, à loja «Vitória» do Grande Oriente Lusitano, obreiro do Rito Escocês Antigo e Aceito, rito ligado ao Antigo testamento e à lenda de Hiran, onde acedeu ao 33º grau, ou seja, ao topo, sendo Soberano Grande Inspector General. Na sua vasta obra constam os títulos: Hemoptise, sob o pseudónimo de Sabiel Truta, de 1959, Planalto em Chamas, 1963, Ao Longo da Fronteira, 1964, Filhas de Loth, 1967, Contos de Gostofrio e Lamalonga, 1973 (Prémio “Fialho de Almeida” da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos), O Lobo Guerrilheiro, 1980 (Prémio Literário “Diário de Notícias” 1991), Planalto do Gostofrio, 1982, Histórias da Vermelhinha, 1991, Planalto de Gostofrio, 1992, Histórias de Lana-Caprina, 1994, O Retábulo das Virgens Loucas, 1996 (Prémio Literário (Ficção) da Câmara Municipal de Montalegre), A Loba, 1999 (Prémio Eixo Atlântico de Narrativa Galega e Portuguesa 1999), A Lenda de Hiran e Belkiss, de 2005, A Fárria, de 2010 (comemoração dos 50 anos de vida Literária), Victor Branco: Escritor Barrosão, Vida e Obra, 1995 (Prémio Literário de Investigação da Câmara Municipal de Montalegre), Guerrilheiros Antifranquistas em Trás-os-Montes, 2005, Camilo Castelo Branco: Por terras de Barroso e outros lugares, 2012, Prolegómenos, 2007, 2009 e 2013.
Das obras aqui apresentadas na Casa poderemos recolher as seguintes linhas de realização da sua escrita, linhas de água ou de génese temática, posto que a grande fonte criadora do seu imaginário verbal tenha sido a oralidade ou conversação polifónica das vozes na casa mãe, no serão da aldeia, no trabalho comunitário, no grupo religioso ou político:
  • Uma linha de intervenção política, num contexto de ideário socialista e de esquerda, concretizada com a biografia de Victor Branco, mas também com os Guerrilheiros Antifranquistas e o Lobo Guerrilheiro.
  • Uma linha de intervenção humorística, de crítica social, de divertimento e recreação, concretizada com as Histórias da Vermelhinha e as histórias de Lana Caprina.
  • Uma linha de ficção narrativa para problematização de usos e costumes, histórias locais e perfis humanos, crítica, invenção e utopia sociais, concretizada nos vários romances: Contos de Gostofrio e Lamalonga, a Loba, Filhas de Loth, o Retábulo das Virgens loucas, Planalto de Gostofrio, A Fárria, Lenda de Hiran e Belkiss.
  • Uma linha de construção autobiográfica para catarse, reflexão e valorização, concretizada nos Prolegómenos e em Camilo Castelo Branco por Terras de Barroso.

Disse acima que a conversação foi a grande inspiradora verbal do seu estilo, da sua escrita viva e dinâmica, cujos traços de coloquialidade são por demais evidentes quer na construção frásica, quer no vocabulário: o falado e o falado por vozes que se engatam umas nas outras, num fluir de casos é que vai originando o sentido. Mas outra grande fonte inspiradora de sua escrita foi a infância tal como a viveu, numa comunidade familiar e de vizinhos em que todo o território lhe esteve acessível e em que toda a liberdade de presença lhe foi permitida: ele calcorreou, experimentou, conheceu, enfim, viveu uma infância de total imersão na natureza, na família, na animalidade, na religião, numa rede de relações humanas estruturadas pelo instinto de sobrevivência, pela rede sub-reptícia de distribuição e exercício do poder entre pares, pela presença do religioso. 

Se tomarmos um escritor como um efabulador do mundo, visando sempre um degrau a mais na progressão da sabedoria e da descoberta do sentido da vida, ao fim e ao cabo, da realização pessoal, ficaremos com a ideia de que Bento da Cruz se consumiu em fazer-nos perceber com mais clareza a nossa rede de instintos e de hábitos, a nossa aprendizagem recalcada das normas sociais, a nossa autoscopia, a nossa adesão às causas, a nossa identidade, a nossa inserção na tradição. Ele trabalhou obsessivamente sobre as nossas obsessões, sejam as mais libidinosamente implicativas de nossas decisões, sejam as mais politicamente manipuladoras de nossas instituições, sejam as mais religiosamente fundadoras de nossos princípios. Mas decidiu em função das suas e de seus princípios e de suas vivências, decidiu em função de sua ideologia, mas deixou a problematização, deixou o riso cáustico, deixou a ironia, deixou a denúncia, deixou o atrevimento, deixou a tolerância, deixou a compreensão, deixou a boa e a má língua que são os instrumentos de que todos fazemos uso para o bem e para o mal. Ao fim e ao cabo expôs-nos para se expor como homem inquieto, ansioso por uma sociedade diferente, mais igualitária e mais justa, menos rígida em seus tabuamentos ou fronteiras de tradição, mais liberta de seus entorses endémicos. Conseguiu-o? Cada um dirá de si, mas não lhe faltaram as palavras nem o estilo.

José Machado 2015