Pesquisar neste blogue

segunda-feira, junho 09, 2014

METADE DE NÓS - EXPOSIÇÃO ETNOGRÁFICA


METADE DE NÓS - EXPOSIÇÃO ETNOGRÁFICA
camisas de homem e coletes de mulher


Metade de Nós é uma expressão da identidade que toma a parte pelo todo com o propósito de fazer concentrar a conversação e o olhar em duas peças da indumentária folclórica regional: a camisa de homem e o colete de mulher. Cada peça representa a metade da pessoa que a veste, na sua plenitude de objecto singular e social: as marcas que tem, a função que realiza e o conjunto em que se insere traduzem a imagem cultural que possuem: são peças do trajar popular, camponês, minhoto; são criações de autor (o bordador, a bordadeira) feitas a partir de um inventário há muito estudado e referenciado a esta região de Portugal (Baixo-Minho) em que Braga se toma como lugar, centro e capital; são produções para a função de trajar à moda tradicional, numa expressão festiva predominante; são o resultado de um entusiasmo cultural e estético pelos materiais, as técnicas e os motivos com que são executadas.

A Associação Cultural e festiva «OS SINOS DA SÉ», sucedânea do grupo Folclórico de Professores de Braga, fundado no ano lectivo de 1978/79 na Escola EB 2/3 Dr. Francisco Sanches, dedica-se ao estudo e divulgação da cultura portuguesa, privilegiando as manifestações musicais e coreográficas.

Os trajes usados pelos seus elementos definiram-se a partir de dois paradigmas consolidados, o do Grupo Folclórico Dr. Gonçalo Sampaio e o do Grupo Folclórico das Lavradeiras de Parada de Gatim, mas resultam também de uma investigação própria, quer entre as gentes dos mais variados lugares da região, quer nos mais variados arquivos e documentos. Em termos metodológicos, os princípios que orientam a pesquisa e a produção dos trajes desta associação são a fidelidade a modelos e técnicas, o gosto pela variação padronizada, o enriquecimento estético plausível e a valorização de significados implícitos.

Metade de Nós são os outros, na variação de género, número e pessoa que melhor conjuguem a importância estética deste acumulado cultural com que nos representamos. Os outros, as mulheres, usam coletes de rabos ou sem eles, têm a vistosidade como regra, mas contêm-na recatadamente, demonstrando, na aprendizagem interiorizada das técnicas, a sua criatividade e sensibilidade estética face a variações, a influências e a aproveitamentos de recursos. Os outros, os homens, usam camisas feitas a partir desse ancestral rectângulo têxtil, talhado em linho, bordando-as eles próprios ou entregando-as em mãos de bordadeiras experientes, suas mães, ou companheiras, ou amigas, ou artífices de nomeada. As peças de metade de nós interiorizam o desejo da outra metade e nesse jogo de sedução está o compromisso de trajar bem, dentro de um cânone que serve à contemporaneidade de espelho sobre usos e costumes sociais.

A diversidade de origem dos vários elementos da Associação Cultural e Festiva «OS SINOS DA SÉ» constituiu sempre uma predisposição natural à apropriação das estéticas etnográficas que envolvem os diversos tipos de bordado habitualmente aplicados em camisas e em coletes. Uma viagem no interior do Minho (Braga, Vila Verde, Aboim da Nóbrega, Ponte da Barca, Ponte de Lima, Barcelos, Guimarães) dará conta de uma variedade de modelos e de aplicações do bordado, a cujo efeito dificilmente se resiste quando se reproduzem modelos de trajar que dignificam a memória social de usos e costumes representativos de uma região.

O público receptor desta exposição é desafiado a pensar na conjugação dos factores que tornam estes objectos manipuláveis: a problemática das origens estará sempre presente a procurar os fios que nos trouxeram até aqui: as invasões e migrações de povos, o sistema matriarcal, a corte e a casa senhorial, os movimentos comerciais internos e externos, os tempos livres e ocupados do ciclo agrícola, os grupos domésticos e os grupos mercantis, os ofícios e os oficiais, os lavores femininos e os masculinos, os papéis de homens e de mulheres, os criadores de modelos, as modas, as revoluções, os poderes políticos e os poderes religiosos, os ritos e os rituais, as permissões e as proibições, os gostos, os estilos, o permanente e o efémero, enfim, a época, a região, a moda do lugar e o gosto pessoal. Depois das datas possíveis e dos espaços dominantes, depois da arte numa economia de sobrevivência e da arte nos engenhos da indústria, depois do original e da cópia, o leitor há-de fazer uma ideia mais lúcida do que nos trouxe até onde nos expomos. 


A curiosidade levará o observador atento a querer saber da arte de bordar um tecido decorando-o de motivos por meio de uma agulha enfiada com uma linha branca, preta ou de outra cor, em pontos variados, como pé de flor, ponto de cruz, ponto cheio, ponto de cadeia, ponto de cordão, ponto lançado, veludo, recorte, canutilho, margarida, espinha, formiga, ilhós, bainha aberta, gradinha, crivo, juntando ainda o recurso a outros fios como o “soutache” e a outros materiais como vidrilhos, contas, missangas, lantejoulas. 

Mas a curiosidade maior estará em o observador se deixar conduzir pela natureza e distribuição dos motivos, interpretando-os na sua naturalidade de ser e parecer, procurando-lhes uma leitura simbólica: ligue-os ao corpo e veja-os funcionais, ligue-os ao espírito e descubra-lhes a transcendência. 

Nos coletes, o circular ou redondo impõe-se como fio de leitura, contribuindo para o pleno sentido da mesma a abertura dos braços que satisfaz o desempenho coreográfico. Nas camisas de homem, o bordado estende-se pelo peito com a respectiva ratoeira, pelo colarinho, pelos ombros e pelos punhos, alcançando um simbolismo de pontos cardeais numa extensão que exprime os valores associados ao património, à propriedade, à família e à pessoa.

Foram bordadores de camisas: José Machado (1953), António Castanheira (1949), Fernando Rei (1973) ; foram bordadeiras: Albertina Fernandes (1956), Sílvia Malheiro (1944), Rosa Ferreira (1951), Manuela Meira (1949-2011). Os coletes saíram das mãos de: Cecília de Melo (1934-2009), Conceição Tinoco (1940), Áurea Marques Pereira (1945) e Albertina Fernandes (1956).

Metade de Nós é uma exposição que se completa com uma exibição do trajar da professora Maria Cecília Barros da Costa Melo (Braga: 1934-2009), fundadora desta associação cultural, um caso singular de dedicação ao estudo, à divulgação e à preservação dos trajares e das suas técnicas de confecção e produção, juntando no seu espólio excelente documentação da tradição popular, rural ou burguesa, camponesa ou urbana, participante que foi de tempos e de movimentos sociais muito contrastivos. 

Em torno de Metade de Nós dispõem-se algumas fotografias em três andamentos: o primeiro é o da natureza incontornável em que nos inserimos, com os seus apelos contínuos de uso e usufruto, salvaguarda e sustentação; o segundo é o da nossa vivência cultural dos compromissos vários que vamos assumindo; o terceiro é o da elevação a que nos sentimos levados, seja por ansiedade de influência, seja por merecimento de resultados: há sempre um céu onde nos projectamos e onde se refugiam as memórias.

Sugestão de leituras:
Bordado de Guimarães. Coordenação de Isabel Maria Fernandes. Campo das Letras. S/d
Bordados e Rendas nos Bragais de Entre Douro e Minho. Coordenação de Carlos Laranjo Medeiros, AOT, Grupo BFE, 1994.
O Traje Regional Português e o Folclore. Madalena Braz Teixeira. http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Col_Percursos_Intercultura/1_PI_Cap7.pdf
O Trajo Regional em Portugal. Tomaz Ribas. Inatel. Difel. 2004.

Texto de José Machado / Braga / 2014