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quarta-feira, fevereiro 05, 2014

Sobre a chuva e toda a irritação do tempo


(Fotografia de trabalho feito com alunos, numa aula de apoio em 2013, mais ou menos por esta altura do ano, num dia em que a chuva ultrapassou as medidas do razoável e eles me pediram ajuda para criarmos qualquer coisa que pudesse ser guardada em telemóvel)

Uma das obras de misericórdia que somos impelidos a cumprir, na escola e pela escola, é a de arranjar lenha para queimarmos o tempo, satisfazendo vontades que a maior parte das vezes se exprimem pelo langor e pela preguiça de nada quererem, embora algumas vezes aceitem um ou outro trabalho de curiosidade atrevida. Foi o caso naquele dia em que os alunos me pediram que lhes ajudasse a criar um trabalho que pudesse ser registado no telemóvel. Fiquei com pele de galinha por imediatamente ter pensado que um filme vídeo pudesse estar no horizonte deles, já que o tempo andava carregado com aquela cena de pancadaria escolar que corria no youtube ou no facebook e que já era falada e verberada em todos os jornais; lembrara-me doutras cenas filmadas por telemóvel e postadas na rua de todos que é agora a internete. Os miúdos hoje lembram-se de tudo e sabem fazer tudo o que seja para gozar o pagode. Falei-lhes então em poemas visuais, coisa que os intrigou, que era isso e em que consistia, quiseram saber. Não foi fácil, a ideia de desenho com palavras ou de palavras em forma de desenhos ou de misturas de imagens e de letras não pegou logo e eu não levava recursos além de uma gramática que me acompanha sempre desde que mudou a linguagem que nos regula as regras. Muita gente se espanta, uns criticam por não ser a última versão, outros acham que não vale a pena, mas eu lá continuo e tudo quanto possa ser mostrar-lhes os livros por onde me guio não perco ocasião de lhes mostrar. Por falar nisto agora me lembro que tenho de lhes levar o volume dos contos de Grimm para saberem onde vêm algumas histórias há duzentos anos. Bom, lembrei-me então do tempo e disse-lhes para se inspirarem na chuva, sobre a qual não há nunca nada para dizer que não tenha sido já dito e redito. Lugares comuns são lugares comuns, banalidades são banalidades, mas é disso que se alimenta a conversa em quase noventa e tal por cento do que tem para se dizer. De banalidade em banalidade lá fui escrevendo no quadro as maiores e as menores até ficarmos com aquela curiosidade que o poema exposto revela. Podem os leitores ficar a pensar que a construção lhes soa a português do Brasil e é bem verdade já que havia na sala três alunos brasileiros que lançam assim as frases de verbo e nome com toda a eficácia da comunicação espontânea que o sotaque potencia. A ideia do atropelo é que foi quase de minha inventiva por necessidade de rima com cabelo, já que a confusão era tudo quanto saía como sugestão das confusões que a chuva gera, mas ali nas nossas escadas de acesso ela via-se bem e gerava isso mesmo, atropelo e atropelamento continuados. Depois com o giz e o apagador tive a intuição de tracejar o texto dando a sugestão de imitar a chuva. Dispararam os telemóveis e a coisa ficou. A seguir houve entusiasmo para fazermos outro e depois outro, mais ou menos conseguidos. Andei sempre com esta ideia da poesia visual desde os meus tempos de estudante, a partir dos anos setenta do século passado, fiquei sensibilizado com os movimentos gráficos da poesia concreta de Ana Haterly e Melo e Castro e também me sensibilizaram aquelas pinturas que misturavam a escrita com a cor e a representação, eu próprio me atrevi a construir algumas obras que ainda guardo e no meu estágio pedagógico, em 77/78 criei dois painéis enormes com esse tipo de poemas. Tudo tem o seu tempo e por agora tudo ainda vale a pena desde que o sentido da criação artística tente compreender o mundo, descobrindo relações de conteúdo e de forma que problematizem e deixem espevitada a ansiedade de mais conhecimento. Eu bem sei que hoje a repetitividade se impõe, que a rotina da banalidade e da facilidade está a erodir-nos a cultura, mas sabe sempre bem reagir, tentar, mesmo que depois se reconheça que não se foi mais longe do que a porta de casa. A chuva cansa, mas nela está um certo encantamento de rega também.