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domingo, março 10, 2013

Todas as cicatrizes se notam


Por conselho de meu irmão António, dei-me à leitura deste livro e fiquei satisfeito: li-o depressa, por imposição da sua escrita e de seu conteúdo, reconheci-me nele por força de suas vivências narradas e das minhas aproximadas, achei-o limitado a seus propósitos, mas expansivo nas suas intertextualidades e paratextualidades, tomei como sadias suas conclusões de viagem.

Fui logo lembrar-me da fotografia que minha esposa tirara ao freixo de Freixo de Espada-à-Cinta, com suas cicatrizes expostas e seu imposto armamento narrativo: a árvore está ali na subida para o cemitério da vila, ou na descida dele, a mesma subida que nos leva à torre e dela nos traz, para que olhemos nele, o cemitério, as acumulações da morte e nela, a torre, os horizontes da vida, estando na árvore todas as marcas, quer as que vamos fazendo em nosso imaginário histórico, quer as que vamos fazendo no mundo, na natureza, umas por vontade própria, outras por aceitação de regras naturais, as do envelhecimento, as da morte prematura, as da fatalidade de raios e acidentes, as da intencionalidade de todos e quaisquer enfrentamentos.

O livro tem o estilo de um blogue: narra e comenta e reflecte. A autora viveu a experiência singular de uma equipa domiciliária de cuidados paliativos nos concelhos do nordeste transmontano, ou seja, andou de perto com a morte e com as histórias que esta vai tecendo. Viu morrer, ouviu, sentiu, leu, conversou, meteu as mãos na «coisa» e escreveu, não certamente tudo, mas um essencial de narrativas, de momentos, de silêncios e de conversas.

O mito grego de Filémon e Báucis, o casal de velhos que pediu aos deuses que os compensassem com a morte simultânea de seus corpos, está presente em todas as páginas, ainda que nunca seja referido, como subjacente ao fio narrativo está a história popular do filho que leva a manta e o pai ao cimo da montanha para que ele viva a sua finitude física. A escritora também desceu a montanha com metade da manta e deixa-a partilhada naquela página «quando regressares da viagem que ninguém saudável quer fazer, vais...».

Esta experiência limite do vivido é contada por camadas, uma técnica que vai construindo o livro, mas em dois momentos, o da narrativa dos trabalhos pessoais de contacto com pessoas, casas e paisagem, e o da narrativa de casos singulares de testemunho. É sintomática a ligação narrativa ao trabalho de dicionário, quer o acumulado cultural que a língua já possui e se transporta de geração para geração, quer o vivido profissionalmente, que cada um vai experimentando por si e concretizando em variantes de significação.

O livro pode ser lido como uma viagem por uma região, ou por um Portugal, ou por um nós, que está morrer de forma absolutamente impensada, ou seja, de forma que não era expectável que acontecesse quando a região cresceu, quando a população aumentou, quando as casas e aldeias se povoaram, quando o crescimento e a demografia se tornaram dimensões de euforia civilizacional. O livro também pode ser lido como a viagem da confrontação inelutável de cada um de nós com o seu próprio fim. Neste caso ou no outro, a morte ou é assunto arrumado, ou é princípio de mais vida e de mais entusiasmo pela que temos...



1 comentário:

Anónimo disse...

as cicatrizes deixam marcas para a vida... umas atenuam com o tempo, outras não, ficam para sempre...
são como a nossa memória, umas lembranças ficam e vão revivendo e nunca se apagam, outras, até ás vezes do dia anterior, voam num abrir e fechar de olhos.