Pesquisar neste blogue

terça-feira, julho 13, 2010

24º aniversário da Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro em Braga

As duas obras seguintes de Flávio Monte, não obstante já terem sido editadas há algum tempo, constituem-se como temática cultural de forte raiz antropológica para conversarmos sobre a nossa realidade regional transmontana e ao mesmo tempo apreciarmos páginas de intenso e renovado valor literário. A surpresa deste novel escritor português, transmontano de duplo nascimento, Luís Costa como homem e Flávio Monte como autor, radica numa invenção narrativa que entretece as histórias das personagens na geografia da paisagem e na narratividade multissecular dos lugares, dos caminhos e dos monumentos e radica também numa criação poética de profundos recortes afectivos, absolutizadora do torrão natal e simbolicamente projectora de um modo de ser e de estar «barrosão» no imaginário social contemporâneo.


Trás-os-Montes e transmontanos vivem de fulgores que a literatura tem projectado, vivem de personagens que o meio tem promovido à categoria de embaixadores e representantes, vivem também de uma paisagem contrastiva com outras e que singulariza os discursos, mas vivem também de uma periferia política que ora os tem protegido, ora os tem desafiado. É neste contexto contemporâneo de maior capacitação do desenvolvimento e de maior sentimento de crise que vale a pena dialogar com um escritor que é, a partir aqui de Braga, uma referência de intervenção cívica.

O romance Flor de Burel é uma primeira obra e logo de fôlego. Trata-se da história de uma família contada por um dos filhos, o mais novo, que um dia, por decisão conjunta com suas irmãs, resolve ir de Braga a Chaves para anunciar a sua mãe, já idosa, a decisão que tomou de a receber em sua casa para tratar dela até ao fim dos seus dias. Na viagem de regresso a Braga, David, assim se chama o filho mais novo de Amélia, engenheiro de profissão, dá boleia a um passageiro que lhe vai contar uma história avassaladora: trata-se da própria história de Amélia, mas contada pela perspectiva do pai, entretanto já falecido devido a um acidente vascular cerebral. O pai de David, um viúvo ligado à construção civil, que já era pai de cinco filhos quando se apaixonou por Amélia, vai meter na sua história todo o peso da terra barrosã e das suas circunstâncias, bem como toda a tralha das manifestações culturais e festivas que estão anexadas ao património paisagístico, monumental, rural e urbano das terras entre Chaves e Montalegre. Chegamos ao fim da leitura conformados e enternecidos com a serenidade e a firmeza de tão grande amor entre Simão Ventura e Amélia e ficamos a pensar que este romance é ao fim e ao cabo uma narrativa épica sobre a família, construída nas condições mais difíceis por gente em desigualdade plena de recursos e de condições, mas que foi fiel a esse impulso inicial que se chama amor e que depois pela vida fora se transforma em dever e em missão. O narrador quer-nos fazer passar uma ideia de simbiose total entre as pessoas, a paisagem, as condições de vida e as circunstâncias da história, simbiose que se pode traduzir nas ideias de resistência e de adaptação às dificuldades e de superação das mesmas. A estrada sinuosa, nesta linha que vai de Braga a Chaves desviando para Montalegre, acaba por ser a figura metafórica em que as personagens se revêem, não só pela importância decisiva que estes centros urbanos cumprem desde o nascimento à educação e formação das pessoas, mas também por serem periféricos em relação a outros centros, Lisboa e o Porto, onde se cumprem os objectivos das tomadas de decisão. A flor de burel é feita de arame e de bocados desse tecido grosseiro que é o símbolo da resistência do corpo e o facto de ter sido oferecida à noiva por um moço de recados remete esta narrativa para esse imaginário literário da pureza da felicidade dos infelizes.

O Livro d’Água é a primeira obra poética do autor e cumpre também o desiderato de ser obra de fôlego. Na verdade, estamos perante um autêntico tratado de ética, um código moral concebido como água de rega e água de beber e outra água que limpa ou destrói consoante os acasos da vida e do mundo. Os valores fundam-se na relação do homem com as suas circunstâncias, em primeiro lugar as físicas, naturais ou de paisagem. O facto de as terras matriciais do poeta serem terras altas fundamenta desde logo a sua percepção de poeta como aquele que sobe ao alto ou céu para tomar a visibilidade do mundo e de si e desce ao baixo ou abismo para denunciar a estragação do mundo e de si.

Por ser gerado numa agricultura de subsistência, onde a pastorícia cumpre um papel determinante, o poeta transfigura-se em pastor e tomas as realidades da pastorícia, as poulas, as serras, as rezes, as vezeiras, os lameiros, as pedras e as fragas, como realidades primitivas balizadoras do sentido da vida: o que é são, o que é puro, o que é necessário, o que é fundamental, o que é honroso, o que é bem, decorre da experiência humana com estas realidades.

Por viver numa região onde o estado natural de espécies da fauna e da flora ainda se verifica e ocorre, desde cavalos selvagens a lugares inóspitos, desde fragas inacessíveis a flores imprevistas, o poeta considera este mesmo estado de ser indomado como a melhor imagem do homem incorrupto, isento da sujeição a donos ou refém de domesticações estratégicas.

As aves de rapina são tão inspiradoras da liberdade como as forças da natureza, os ventos, a chuva, as tempestades, os trovões, a neve. Por ter sido criado com condições de vida rudes, e por terem sido rudes e primitivas, em termos de produção, as suas roupas e o seu calçado, mas também os seu alimentos, o poeta valoriza as experiências difíceis de usufruto, como o andar descalço, o calçar socos que magoam, o viver longe dos grandes centros urbanos, o remendar de roupas, o pedir e emprestar bens de necessidade, o cultivar a horta, o comer o que a terra dá. Por causa da centralidade que o porco e a vaca e a ovelha têm na vida agrícola de cada casa ou família, o poeta confere o papel de objectos mediadores a esses animais, sacraliza-os, como sacraliza os seus produtos transformados, a carne, o fumeiro, sacraliza a relação difícil que o homem tem com os animais e considera o sofrimento natural que essa lida implica um espelho de alma: o sofrimento mudo que a terra impõe só pode ser superado pela ideia de que só o sofrimento resgata o homem e lhe confere estatuto social.

A própria tez que a pele ganha na paisagem é elevada à categoria de objecto estético ou marca de sensualidade e de sensibilidade. Com esta marca exterior vai contrastar a brancura do interior, elevada à condição de ideal de pureza e considerada objectivo de conquista na reprodução social. As coisas, como as árvores, as casas, as capelas, mas também as coisas como o pão, a farinha, são o alicerce fundador do conhecimento: os sabores, os cheiros, os toques, as vistas, constroem-se a partir das sensações iniciais com essas coisas e mantêm-se por força da persistência dessas mesmas coisas ao longo da vida: elas são a inspiração da verdade das relações humanas: a farinha não pode ser impura, o carvalho não pode ser provisório, a capela não pode ser fácil, logo as relações humanas também precisam de ser puras, leais, transparentes, persistentes, seguras, elaboradas.

O ter de ser assim precisa de encontrar a sua aceitação natural no querer ser assim e este precisa de ser sempre renovado por um voltar a ser assim, e a força do ser assim decorre do próprio ciclo natural que é nascer e morrer e renascer e que a sementeira das batatas e do pão inspiram quotidianamente, ou seja esta ideia da repetição, do eterno retorno, este saber singular que a terra é sempre terra da terra, ou esta comparação do trabalho da terra a um tear, vale como fundamento poético e ético. O ter de ser é o calo, o querer ser é o esforço, o voltar a ser é a filosofia de vida, e isto bebe na própria história do pão que chega à mesa.

Pelo meio, o poeta vai tecendo poeticamente umas narrativas de proveito e exemplo, como a das tentações do diabo, para concluir sobre o sentido da fidelidade, como a das andorinhas, como a da génese das águas, ambas para concluir sobre a migração das pessoas, como a da neve, para concluir sobre os limites da vida, como a da chuva para concluir sobre a ternura da casa, como a da Marianinha e a do aerograma, para concluir sobre a cidadania política, como a do pobre pedinte para concluir sobre a hipocrisia social, como a do Zé da Mana, para concluir sobre a tragédia pessoal .

Pelo meio ficam também os sentimentos pessoais, as representações íntimas, o erotismo dos indivíduos e do colectivo, os afectos, as paixões, as memórias, mas estes só são verbalizáveis com as mesmas palavras que verbalizam as experiências com a natureza, com os lugares, com os objectos, com as águas, com os fenómenos atmosféricos, com os animais, com os outros, a mãe, o pai, a mulher amada, essa outra metade com quem se quer partilhar os valores. É na verbalização da relação amorosa, desde a fase do enamoramento à fase da paixão consumada, que se percebe quanto o poeta vai beber à sua natureza os excessos do arrebatamento: é que a natureza, na fauna, na flora, na criação dos animais e na sua transformação, é continuadamente erotizante, desencadeia o cio, o desejo, impele a reprodução, e para tal mobiliza sabiamente todos os pretextos, as manhãs, as flores, as romarias, as noites, o primeiro dia do ano, as estrelas, os invernos, a aurora, o Natal.

As palavras são, de facto, as poldras do conhecimento.

2 comentários:

Anónimo disse...

Apesar de estarem a ficar sem "as suas gentes" devido à desertificação, estas províncias portuguesas conservarão sempre a suas riquezas e os seus ilústres autores.
Tb Eça se inspirou na beleza do Alto Douro para depois escrever, memórias que ainda são recordadas na Casa de Tormes.

Anónimo disse...

A obra do autor acima referido é
"A Cidade e as Serras".