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terça-feira, fevereiro 09, 2010

A Fárria - novo livro de Bento da Cruz

Bento da Cruz – A Fárria, Âncora editora, 2009

Este novo livro do escritor Bento da Cruz assinala a celebração dos 50 anos de sua vida literária. Vou apresentá-lo a Chaves, na Biblioteca, no dia 12 de Fevereiro, às 18.30 horas.

Tem como tema central as minas da Borralha, ainda que o pretexto de contar a história das minas decorra da necessidade de contar a vida de uma personagem redonda e bem informada sobre as minas, Silvério Silvestre, homem muito doente e hospitalizado que chama o escritor para lhe confessar a sua vida.

A história de vida de Silvério Silvestre, o próprio nome nos remete para um sinuosidade de silvas e de agrestes condições de vivência e sobrevivência, resume o trágico mito dos amantes que se unem pela a morte na mesma sepultura, mito que sobrevivia no princípio do século numa versão nortenha, contando os amores de D. Gunezindo pela fidalga Iria. A Silvério sucederá o mesmo, pois a sua paixão por Senhorinha, a filha do Morgado, um nascimento com todos os condimentos do mito da Ponte da Misarela, será eternamente contrariada pelo pai desta, mas será decididamente assumida por ela com a decisão de mandar abrir uma sepultura com dois lugares, união que se consuma pouco antes da morte de Silvério no hospital. Associada a esta lenda, a personagem Silvério Silvestre dará conta ao narrador, que é seu ouvinte atento, da sua proximidade com a personagem mítica de Eneias, o soldado troiano que saiu de Tróia com a família e que depois se perdeu de amores por Dido e que vai estar na memória da fundação da cidade de Roma.

O fio condutor da narrativa de Silvério é a história dramática da sua vida amorosa com Senhorinha, mas só se compreenderá a sua profundidade se a envolvermos na história do minério que era explorado nas minas. Na história amorosa, a personagem Silvério desdenha continuadamente do objecto da sua paixão, que está enraizada numa vivência da infância sob o mito do bom casamento com filha de lavrador rico, narrativa que mergulha nos rituais da ponte da Misarela e daí a sua demoníaca persistência e representação; mas na história das minas ou do mineral volfrâmio e de tudo o que com ele se relaciona, a personagem assume um currículo integral de profissionalização: ele foi tudo e fez de tudo, teve acesso a todos os lugares e relacionou-se com toda a gente, foi sujeito e testemunha dos actos legais e ilegais, dos justos e injustos, foi honesto e foi vigarista, foi ganhador e perdedor.

O que acaba por se entender é uma narrativa da personagem em fim de vida que pretende fazer a catarse do complexo social que as minas da Borralha foram para si próprio, na região, no país e no mundo, complexo esse que é bem traduzido pelo conceito de «fárria» ou estilo de vida decorrente da fartura de ganhos com o volfrâmio, no contexto das duas grandes guerras mundiais que assolaram a Europa. Faz-se um retrato local para ser espelho de outro retrato nacional, o de um país em ditadura, rico em recursos, mas limitado na arte de saber tirar partido deles para o futuro. A personagem faz um currículo que vai desde a aprendizagem das técnicas de apanhista do minério, passa pela aprendizagem das tácticas do contrabando, vive intensamente as práticas de farrista e sossega finalmente na prática de chefe de escritório, demonstrando uma vontade pessoal de superação dos limites circunstanciais, como quando frequenta a educação de adultos para aumentar a sua escolarização.

O livro A Fárria mostra a personagem principal nos limites, caracteriza outras como vítimas da sorte e do azar, o Manulo, o Pacheco, a Rita, a Senhorinha. A oscilação dos farristas entre o cúmulo de ganhos, decorrentes de um estilo perigoso de vida, e o cúmulo de perdas, decorrentes da ambição desmedida, da basófia e da falta de formação, torna esta história das minas da Borralha uma fatalidade de destino, mas também um caso singular da perda crónica de oportunidades do país. Estão na narrativa as linhas da crítica sociológica e antropológica.

As minas da Borralha já fecharam, viveram todas as vicissitudes históricas da implantação da República, depois as do Estado Novo, finalmente as da revolução de Abril. Mortos os actores directos, ficarão as narrativas dos herdeiros, ficarão os documentos, ficarão os estéreis, mas ficaram também casas, caminhos, marcas que o tempo próximo não vai apagar tão cedo e antes se impõe a si próprio que lhes restitua vida e memória, uma explicação para a vontade pública de aquele espaço mineiro ser interpretado, musealizado, preservado como memória.

A escrita de Bento da Cruz gera a sedução da leitura, pelo que o leitor depressa esgotará o fôlego deste livro e depressa se dará conta que o seu autor é bem merecedor de mais vida literária. Que viva cem anos e que escreva sempre!

3 comentários:

Anónimo disse...

Com o devido respeito e uma vénia à sua apreciação do livro (ou do autor?) permita-me discordar. Bento da Cruz é um escritor de vivências próprias, na primeira pessoa. Em "A Fárria" limita-se a romancear, no seu estilo provocador, que não sublime, histórias ouvidas em segunda e terceira mão (sei do e de quem falo por conhecimento directo). Resultará para o leitor comum, para o seu leitor fiel. Não resulta, antes quase insulta, o eventual leitor que viveu As Minas da Borralha. Não é esta a sua (da Borralha) verdadeira história. Essa é outra, bem mais humana, quiçá diferente para cada leitor que no livro se não revê. Pena que a sua última obra (nas palavras do autor), muito embora mantendo as qualidades literárias intrínsecas, seja tão redutora da realidade e do carácter de algumas pessoas quase ou mesmo explicitamente retratadas.
Um livro menor...
Cumprimento-o respeitosamente.

José Hermínio da Costa Machado disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
José Hermínio da Costa Machado disse...

Caro leitor anónimo,no essencial concordo com a sua apreciação e já em devido tempo a transmiti ao escritor. Acontece que os escritores escrevem o que escrevem e nós os leitores lemos e treslemos, naquele exercício pessoano de «sentir, sinta quem lê». Não concordo consigo quando diz que esta obra «quase insulta» o leitor que tenha vivido as minas da Borralha. Esta obra de Bento da Cruz não é a epopeia da Borralha e está longe de o ser, mas é uma história romanceada que tem a Borralha como pano de fundo e como cenário de plausibilidade e neste aspecto orienta a sua intrínseca narratividade para o objectivo de ilustrar certas dimensões, por certo já muito referidas na historiografia do volfrâmio, que nos aproximam dessa narrativa épica que se espera que um dia seja contada. O estilo do autor, numa assumpção do picaresco, do quixotesco, do vicentino, do burlesco, incitará os leitores a um exercício de interpretação de que podem sair sempre mais enriquecidos. As obras menores não desmerecem as apreciações mais exigentes.