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domingo, fevereiro 21, 2010

Fotogenia micológica

A propósito da exposição de fotografia temática, presente no Clube de Ténis de Braga, da autoria de Guilherme Sanches, aqui trago o texto prometido, ainda a tempo, creio eu, de poder servir a conversa. A fotografia, fui buscá-la à net.

 
Parecemos cogumelos. Desde logo por sermos muitos e acumulados cada vez mais em numerosos e altivos casarios e estes se concentrarem em metrópoles cada vez mais extensas e ocupadoras de espaço natural. Desde logo por nos vermos olhados de cima e parecermos todos de igual porte e aspecto, mesquinhos à medida que se ergue a tomada de vistas, depois minúsculos, insignificantes, desaparecidos. Desde logo por termos na forma do cogumelo explosivo a nossa paradigmática ideia de bomba atómica. Mas também pela fragilidade de cartas de baralho com que nos abatem as tragédias naturais, os terramotos, os tsunamis, as avalanches, os deslizamentos, as enxurradas. Mas também pelos tratos a que nos damos enquanto espécie entre as espécies. Finalmente, porque os cogumelos são como eles próprios inspiradores de toda a efemeridade.

Parecemos cogumelos. Uns, luminosos e confiantes, outros, tímidos e apagados. Todos perecíveis. Todos também resistentes à ideia de perecibilidade, tudo fazendo para adiar a hora de um desaparecimento ou anulação de vida, tudo fazendo para uma continuidade de aspecto e de memória. Uns fiados no seu habitat, outros fiados em si próprios, parecemos cogumelos: variados na forma e no conteúdo, variados na ocupação dos chãos, isolados ou agrupados, identificados e contextualizados. Quem nos vir dirá de nós o que diz dos cogumelos: bonitos uns e agradáveis, feios outros e abomináveis, tudo com base em argumentos de forma, aspecto, tamanho, cheiro, localização.

Seremos levados em linha de conta pelo préstimo que tivermos, coisa que mais depressa nos levará à extinção do que à permanência: sermos requintadamente saboreados parecer-nos-á um topo de excelência, sermos repudiados como venenosos e asquerosos será o rebaixamento desprezível. Sujeitos ao tempo e às intempéries, somos ainda mais sujeitos á recolecção e completamente sujeitados á biqueirada de qualquer bota imprevidente ou maldosa.

Teremos o nosso tempo de fulgor e honra faremos a quem no-lo aumentar desmedidamente por meio de filme ou película impressionável, pintura ou esquisso, técnica de secagem ou de fixação. Seremos tomados por tudo e por todos, pelo sujeito erecto e viril, pelo sujeito humilde e frágil, pelo sujeito exibicionista e fanfarrão, pelo sujeito dependente e parasitário, pelo par homo, pelo par hetero, pelo grupo protegido, pelo grupo indefeso, pelo grupo organizado, pelo grupo tresmalhado, pela multidão composta, pela turba caótica.

Temos connosco toda a retórica das palavras e das imagens, toda a retórica dos odores, toda a retórica dos contactos. É bem certo que somos inspiradores de muito imaginário: este marialva, aquele efeminado, este nu, aquele vestido, este encolhido, aquele desbundado, este natural, aquele produzido, este rei, aquele escravo, este macho, aquele fêmea. Minúsculos e invisíveis, extensos e apreensíveis, autónomos e dependentes, somos sempre de uma fragilidade absoluta.

Classificáveis, somos estudados e apreciados, vistos pelo prisma da utilidade extrema e imprescindível, mas também denunciados como perturbadores e invasores. Temos a nossa graça e a nossa desgraça por vezes em momentos muito próximos, outras vezes demoramos todo o ciclo de vida à espera de um reparo.

Quando brilhamos na nossa singularidade, logo nos atiram aos ouvidos a utilidade imediata, ou os disparates do veneno ou o incómodo de não estarmos no lugar certo à hora certa. Quando nos juntamos, dois, alguns ou muitos, milhares mesmo, logo nos trocam pelos encantos da vizinhança, ou do hospedeiro, ou do lugar, ou da nesga de território em que nos sustentamos. Vale-nos quem nos ama, quem nos estuda a vida, quem nos guarda a memória. Vale-nos quem nos olha e nos deixa estar, quem nos favorece todo o tempo do mundo.

terça-feira, fevereiro 09, 2010

A Fárria - novo livro de Bento da Cruz

Bento da Cruz – A Fárria, Âncora editora, 2009

Este novo livro do escritor Bento da Cruz assinala a celebração dos 50 anos de sua vida literária. Vou apresentá-lo a Chaves, na Biblioteca, no dia 12 de Fevereiro, às 18.30 horas.

Tem como tema central as minas da Borralha, ainda que o pretexto de contar a história das minas decorra da necessidade de contar a vida de uma personagem redonda e bem informada sobre as minas, Silvério Silvestre, homem muito doente e hospitalizado que chama o escritor para lhe confessar a sua vida.

A história de vida de Silvério Silvestre, o próprio nome nos remete para um sinuosidade de silvas e de agrestes condições de vivência e sobrevivência, resume o trágico mito dos amantes que se unem pela a morte na mesma sepultura, mito que sobrevivia no princípio do século numa versão nortenha, contando os amores de D. Gunezindo pela fidalga Iria. A Silvério sucederá o mesmo, pois a sua paixão por Senhorinha, a filha do Morgado, um nascimento com todos os condimentos do mito da Ponte da Misarela, será eternamente contrariada pelo pai desta, mas será decididamente assumida por ela com a decisão de mandar abrir uma sepultura com dois lugares, união que se consuma pouco antes da morte de Silvério no hospital. Associada a esta lenda, a personagem Silvério Silvestre dará conta ao narrador, que é seu ouvinte atento, da sua proximidade com a personagem mítica de Eneias, o soldado troiano que saiu de Tróia com a família e que depois se perdeu de amores por Dido e que vai estar na memória da fundação da cidade de Roma.

O fio condutor da narrativa de Silvério é a história dramática da sua vida amorosa com Senhorinha, mas só se compreenderá a sua profundidade se a envolvermos na história do minério que era explorado nas minas. Na história amorosa, a personagem Silvério desdenha continuadamente do objecto da sua paixão, que está enraizada numa vivência da infância sob o mito do bom casamento com filha de lavrador rico, narrativa que mergulha nos rituais da ponte da Misarela e daí a sua demoníaca persistência e representação; mas na história das minas ou do mineral volfrâmio e de tudo o que com ele se relaciona, a personagem assume um currículo integral de profissionalização: ele foi tudo e fez de tudo, teve acesso a todos os lugares e relacionou-se com toda a gente, foi sujeito e testemunha dos actos legais e ilegais, dos justos e injustos, foi honesto e foi vigarista, foi ganhador e perdedor.

O que acaba por se entender é uma narrativa da personagem em fim de vida que pretende fazer a catarse do complexo social que as minas da Borralha foram para si próprio, na região, no país e no mundo, complexo esse que é bem traduzido pelo conceito de «fárria» ou estilo de vida decorrente da fartura de ganhos com o volfrâmio, no contexto das duas grandes guerras mundiais que assolaram a Europa. Faz-se um retrato local para ser espelho de outro retrato nacional, o de um país em ditadura, rico em recursos, mas limitado na arte de saber tirar partido deles para o futuro. A personagem faz um currículo que vai desde a aprendizagem das técnicas de apanhista do minério, passa pela aprendizagem das tácticas do contrabando, vive intensamente as práticas de farrista e sossega finalmente na prática de chefe de escritório, demonstrando uma vontade pessoal de superação dos limites circunstanciais, como quando frequenta a educação de adultos para aumentar a sua escolarização.

O livro A Fárria mostra a personagem principal nos limites, caracteriza outras como vítimas da sorte e do azar, o Manulo, o Pacheco, a Rita, a Senhorinha. A oscilação dos farristas entre o cúmulo de ganhos, decorrentes de um estilo perigoso de vida, e o cúmulo de perdas, decorrentes da ambição desmedida, da basófia e da falta de formação, torna esta história das minas da Borralha uma fatalidade de destino, mas também um caso singular da perda crónica de oportunidades do país. Estão na narrativa as linhas da crítica sociológica e antropológica.

As minas da Borralha já fecharam, viveram todas as vicissitudes históricas da implantação da República, depois as do Estado Novo, finalmente as da revolução de Abril. Mortos os actores directos, ficarão as narrativas dos herdeiros, ficarão os documentos, ficarão os estéreis, mas ficaram também casas, caminhos, marcas que o tempo próximo não vai apagar tão cedo e antes se impõe a si próprio que lhes restitua vida e memória, uma explicação para a vontade pública de aquele espaço mineiro ser interpretado, musealizado, preservado como memória.

A escrita de Bento da Cruz gera a sedução da leitura, pelo que o leitor depressa esgotará o fôlego deste livro e depressa se dará conta que o seu autor é bem merecedor de mais vida literária. Que viva cem anos e que escreva sempre!