Pesquisar neste blogue

segunda-feira, janeiro 25, 2010

Feiras de fumeiro


(Fotografias enviadas por Ricardo Moura, de Montalegre)

Já passou a feira do fumeiro em Montalegre e foi de enchente.

Eu fui durante alguns anos a esta feira por via de amizades e relações amistosas com pessoas da terra e dos arredores, amizades e relações motivadas e sustentadas pelo coração de um amigo já precipitadamente falecido, o professor Rogério Borralheiro, natural de Salto, homem que foi político social-democrata, que foi vereador da Câmara, que foi presidente dos Bombeiros Voluntários de sua terra, que foi da Assembleia Municipal e da Assembleia de Freguesia, que foi animador cultural, que foi investigador da história local e regional e nacional, que foi cidadão dedicado à causa pública, que foi marido e pai extremoso e que foi um companheiro de festas, de músicas e de futebóis.

Toda a saudade dele se faz sentir mais nestas ocasiões de romaria ao seu concelho, ao seu solo pátrio. Íamos e vínhamos com toda a cumplicidade das conversas afiadas, fossem a bendizer ou a maldizer, fossem de auto reflexão ou de juízo final sobre casos e causas. As chouriças, os salpicões, a orelheira, o presunto, a vitela, a broa, as couves e o vinho, por tudo respondiam e com tudo se justificavam. Em Janeiro, o planalto barrosão era um devocionário de emoções: o S. Sebastião e a feira do fumeiro balizavam as caminhadas e os encontros, com igual virtude teologal de fundamento à vida. O amigo Rogério, conhecida que era a sua militância partidária, era homem de travessuras e de cruzamentos: parávamos com todos os partidários de esquerda e de direita, do centro ou das margens, com agnósticos e ortodoxos, com brancos, pretos e cinzentos, com todas as cores do arco-íris, jovens e velhos, elas e eles.

O consolo de andar com e de estar entre amigos é uma experiência compensadora, toda a gente o sabe e toda a gente o pratica, sempre lhe associando a mesa e a lareira, duas condições mais estáveis para toda a franqueza do humano demasiado humano. Após a morte do Borralheiro ainda não voltei à feira de Fumeiro e este ano não foi excepção, chame-se a esta ausência uma forma de luto ou uma inibição de carácter. E ao mais continuam por lá todos os nossos amigos e ao mais continuam por lá todas as condições de acolhimento e de regeneração do corpo e do espírito. Já foi a feira do fumeiro de Boticas, depois desta de Montalegre vai ser a de Chaves e depois a de Vinhais e a de Cabeceiras, todas de chão pisado por nós no passado, todas de boa memória e de feliz aceitação. Quanto se vê e faz nestes lugares é visceral a nós próprios e porventura venha desta raiz profunda no corpo a sua boa condução e sucesso.


O porco foi em toda a minha infância o retrato mais fiel do corpo e da família, o espelho animal das nossas relações de obrigação e entretenimento, o símbolo da nossa prosperidade, a balança salutar do nosso crescimento: desde a compra do bicho na feira, até ao corte de mato e estrumes para a sua corte, desde o cozimento da lavadura ao seu transporte, desde a capadura ao arganel, desde a engorda até à morte de banco com faca de matador, queimadura de palha e raspadura de pedra e água quente. Toda a visceralidade do bicho era aula de anatomia, o pai a perguntar, o matador a descrever, a mãe a transformar e a canalha sempre a estorvar, que era forma de estar em cima de tudo. O guinchar do porco na matança é esta ária de inverno que me enche o ouvido e me satisfaz com as forças telúricas e as fadas do lar. O encher das alheiras, chouriças e salpicões foi toda a simbólica dos afectos e paixões. Quando hoje assisto à condenação anómala desta barbárie doméstica sinto-me desenraizado e excluído do grande altar da natureza, altar que deu sustentação a muitos santos, ainda que abrigo também a muito destempero. E pronto, se foi à feira já o leitor me entenderá melhor.

1 comentário:

Anónimo disse...

Já não sei quantas vezes li este post... obrigada:)
Sílvia