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sábado, abril 11, 2009

Memórias da Páscoa

Sábado de Aleluia, véspera de Páscoa, este sábado que se inscreve como dia de todos os festejos na minha memória, dia em que o folar já se podia estrear, ou seja, provar e comer, esse folar que tinha sido feito na sexta-feira santa em forno de lenha, ali com minha mãe a amassar e colocar as carnes e a meter ao forno, ali com todas as mulheres do povo a fazê-lo e a benzê-lo para levedar e melhor crescer, ali com aquele cheiro de carnes e de palavras e de gestos. Tenho a memória da Páscoa concentrada na via-sacra e na desobriga, depois na limpeza da casa e no folar, também na estreia de roupa nova e nas Maias e por último no cabrito de almoço e compasso da cruz pelas casas. Parecem pares propositados e se calhar são-no.

A via-sacra era um ritual de igreja, com leituras e orações junto de quinze quadros de parede, as estações, a que assisti e depois também animei, tendo ainda na memória a emoção da canalha da minha idade com as quedas de Jesus e o espetar dos pregos nas mãos e pés. O filme recente de Mel Gibson veio coroar essas memórias e só eu seio quanto ele se aproximou em drama e sangue com que então eu imaginara que tivesse podido acontecer. Com a via-sacra acumulei mais tarde o cantar das almas na quaresma, ainda com um registo ao vivo em Cidadelha, terra próxima da minha. Mas à via-sacra juntei o ritual da desobriga ou confissão ao menos uma vez em cada ano para alívio de pecados acumulados, e bem me recordo de uma vez em Vreia de Jales, de pois do confesso, um meu companheiro de tropelias ter ido comungar todas as vezes que o pároco dava a comunhão, a ponto de o padre Manuel, que tinha uma moto com side-car e punha uns óculos de corredor, ter dado conta e ter alertado para a quantidade de vezes que o Quim já tinha ido à mesa, acto comensal que bastava fazer uma vez. Ficamos todos a olhar para ele, o papa-hóstias de fé e de convencimento, tão surpreendido ficou com a proibição do senhor padre que desatou a chorar por ter cometido o pecado da gula.

A lista dos pecados era sempre enorme, mas uma vez encontrei em Relvas um padre que me facilitou a vida, precisamente em semana-santa que lá fui passar com o amigo Zeca filho do senhor Esteves, homem do escritório das Minas de Jales, o homem que meu pai dizia estar sempre burocraticamente bem, já que perguntava isso mesmo ao meu pai: o senhor Machado como está burocraticamente? Foi a primeira vez que enraizei a palavra no meu vocabulário de circunstância e já lá vão 50 anos. Mas dizia eu que um padre me facilitou a confissão e foi deste modo, perguntou-me a idade e depois de eu lha dizer, mandou-me embora que já sabia os pecados daquela franja etária, fiquei surpreendido, mas convencido de que ele era bem sabedor de quantos eu lhe diria. A propósito desta memória tenho outra depois desse acto de confissão, entre mim e o Zeca que mal chegámos a casa o pai dele perguntou se já estávamos limpos e eu disse que o Zeca já pecara porque tinha dito uma asneira e o pai dele ajuntou logo que eu também já era pecador só por repeti-la.

A limpeza da casa era esfregá-la toda, trabalho de minha mãe e de minhas irmãs, só mais tarde de mim e de meu irmão, que era com um balde uma escova e uma ajoelheira ou esfregadeira ou engenho de protecção dos joelhos e o resto era andar ali a ver as pernas à mãe ou às raparigas de porta aberta para esfregarem os corredores de entrada, coisa que era pouca e ao mais julgávamos muita naquelas idades de ver e pensar em tudo; limpar pó e lavar vidros, lavar cortinas e tapetes, fazer a barrela, deitar briochene, deixar tudo a cheirar, guardando esta imagem de frescura e ouvindo ainda hoje as recomendações de não patanhar nem pôr as mãos onde estivesse tudo limpo, que gritaria e berreiro não faltaria a quem sujasse e até trepa de orelhas e de cachaço se as mãos me apanhassem.

O folar era aquela obrigação de estômago que até hoje me enche o espírito da quadra festiva, agora que minha mãe o não faz procuro-o por outros e até o compro, sempre com essa comparação inscrita nos olhos, no gosto e no cheiro, até no tacto e no aspecto de lhe pegar e o esmigalhar na cevada. Nem eu poderia esquecer aqui duas talhadas de folar que fui obrigado a comer em festa de santa cruz ali em Vilarinho Seco, depois da Páscoa, já com a barriga cheia, mas só pelo cheiro e pelo aspecto ser dos folares de minha mãe.

A roupa nova podia ser de peça só, na roupa ou nos sapatos, mas era de gosto pessoal, antes da missa e até depois para mostrar.

As maias eram um ritual de atropelos à disputa de amêndoas, rebuçados, e outras guloseimas que se deitavam ao ar quando a cruz do compasso pascal passava em cada casa; a gritaria de maias, maias, agarrai-as, agarrai-as mistura-se com o tilintar da campainha e com a abundância da água benta em cima deles e delas. A cruz era beijada em casa e repetida noutras até sem conta de vezes e todas as vezes era a gritaria das maias, maias, no chão de terra, à porta de casa. Meu irmão gostava de se espolinhar por elas, mais tarde de as lançar para longe e ver a canalhada a espoliar-se por guloseimas de ocasião.

O cabrito ou anho ou borrego ou cordeiro era uma conversa continuada pela mesa, com o recheio da mãe e culminado com os brindes ruidoso do pai a presentes e ausentes e até ao ano.

3 comentários:

José Guerra disse...

Boa noite Zé Hermínio,

É meu hábito passar por aqui. Surpreendido por me ver mencionado no texto. Já não me recordava de todo destas peripécias, embora me lembre bem de teres estado em casa dos meus pais, em Relvas, durante as férias. O padre que mencionas chamava-se Monsenhor Sarmento. Obrigado por me avivares a memória.

Boas recordações da Páscoa. O folar que a minha mãe fazia naquele fogão de lenha. A minha mãe e todo o seu cuidado para nesse dia receberem a visita pascal com o Sr. padre Bernardino. A minha mãe, Zé, a minha mãe. Quantas saudades tenho dela.

Um abraço.

Zeca

Ibel disse...

Ó Zé,
A gente põe-se a ler-te e vê um filme do qual fomos actores vivos,
acordados agora pelas tuas palavras que sabem sempre a pouco.
Tenho saudades dessa Páscoa de «lá», em que estrear um vestido era tão de festa e de surpreendente como beijar o Senhor que nos vinha abençoar com o tilintar de campainhas,mesmo pregado na cruz.Éramos nós também ainda estreantes da vida,mil vezes semeadores de sonhos num só gesto.

Anónimo disse...

Ora viva
só para dizer que o meu pai continua burocraticamente bem e que fiquei m.to contente por ver o nome do meu pai,do Zeca e do Mons. Sarmento e até de Relvas no "amostras e foliões". BOA!
Também gostei de ver a sua mãe,lembro-me dela vagamente...
1 abraço
arminda guerra
13.05.09