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domingo, outubro 26, 2008

Vindimas, lagaradas e objectivos pessoais

(A fotografia foi tirada por meu irmão António, antes das vindimas, captando vinhas de Nogueira, Vila Real, terra natal de meu pai.)

Dizia meu pai, agora diz meu primo Jaime que é viticultor, mas também se lê o mesmo nos jornais, que os planos do agricultor nunca deram certos com o tempo: ganhos e perdas foram sempre difíceis de prever, são sempre difícies de prever. Ironicamente ou não, porque o tempo arrasta mais o desespero para o passado, tanto se fala da pobreza quando os proveitos são poucos, como se fala dela quando as pipas estão cheias e o vinho não se escoa, não se vende. Estas conversas têm o condimento da crise que se instala, são recorrentes, mas são contundentemente reveladoras. Talvez por isso eu as traga agora para outras vinhas e outras paragens, as da escola, as da minha profissão de professor.

Querem que eu cave a minha própria cova, a trace à medida de mim mesmo e a deixe receptiva às quotas funerárias do poder central. Querem que eu saiba de mim mesmo quanto possa prever que faça e quanto seja capaz de medir em termos de promover sucesso e estancar abandonos ou desistências de alunos. Querem que seja eu a preparar os documentos: a copiar e a transcrever objectivos de uns lugares para os outros, sejam eles já velhos e revelhos dos programas, estejam eles já postos e repostos em manuais de seguimento obrigatório e pagos pelo Estado, sejam eles já digeridos e redigeridos em actas, relatórios de inspecção e outros documentos que tais. Querem que eu conceba extensas listagens de parâmetros balizadores da minha acção docente para outros depois irem espiolhar as minhas aulas e verificarem que não cumpro o que previ e que reinvento o que sempre toda a gente faz. Querem-me a suar o tempo todo, querem-me exausto, querem-me a abrir a cova de mim mesmo.

Que os pariu a insensatez, não tenho dúvidas. Eles, os parasitas, os preguiçosos, os incompetentes, os responsáveis pela minha avaliação são incapazes de me avaliar por suas próprias mãos. Querem que eu suje as minhas e lhes prepare os documentos, lhes preencha as grelhas, lhes escreva as sínteses, lhes garanta o espectáculo. E depois? Fico à mercê da sorte das quotas!

O Primeiro Ministro do meu país disse que os professores já não são avaliados há trinta anos. Faço as contas e digo-me a mim mesmo: comecei a abrir a cova no ano de estágio em que fui avaliado, alarguei-a de cinco em cinco anos até ao exame de acessso ao 8º escalão, voltei a alargá-la quando requeri um júri externo para avaliar o meu currículo, afundei-a quando concorri a professor titular no ano passado e agora o que falta?

Volto às vinhas da ira: ontem o palhete que foi servido na festa das vindimas, ali para os lados de Lousada, em «garagem» requintada, fresco, com castanhas assadas, com assadura de porco, temperado com improvisos de cantoria, serviu de catarse. Vou dedicar-me a fechar a cova, que ali não vai ficar quem eu me fiz.

segunda-feira, outubro 13, 2008

Segada em Paredes do Rio, Montalegre. A fotografia foi-me enviada pelo assessor de imprensa da CMM, Ricardo Moura.

Tratou-se de uma reconstituição ou revivência, uma emulação por uma actividade colaborativa, de entre-ajuda, de partilha, que hoje se considera valor a preservar, mesmo que nem seja o trabalho em si, mas a memória dele, com o gosto do centeio no coração e as lembranças na boca.

Partilho a imagem, que em Jales também assim andei de malho a reconstruir o que só vi fazer e cantar, com aquele ritmo da cantiga «sete varas tem, tem a minha saia noba...».

Da imagem passo para a escola: o salto é grande só na realidade, que nos sentimentos é mínimo. Por que raio de cultura somos capazes de protestar na rua a recusar a avaliação e não somos capazes de a recusar nas escolas? Por esta mesma necessidade de malhar em grupo, de juntar vozes? E as escolas não são eiras de pão?

Da escola passo para a crise: o salto é mínimo nos pressupostos, mas grande no aparato monetário. É que eu vejo na cultura do sistema de avaliação imposto ou a impor, os mesmos fundamentos de incompetência com que os analistas começam a explicar a crise financeira: que crescem monstros a partir de teorias de vazio, que se fazem orelhas moucas a críticas de intuição humanista e que depois é a burocracia esmagadora. Já não dá para ver que os incentivos a prometer aos gestores vão dar na especulação de competências, de objectivos, de planos, de projectos e de outras invenções de arremesso? As poupanças monetárias das quotas libertam massa para pagar a génios de gestão? Não vamos pagar a incompetentes?

Volto às malhas: minha mãe e meu pai ainda hoje lamentam e choram o trabalho exaustivo que se tinha em anos de pouco pão, quando os malhos batiam em seco, não saltava o grão e a despesa era a mesma.

Volto à escola: desespero com a carga de trabalho inútil que me é imposta, é trabalho que me afasta de tanta leitura e de tanta imaginação. As horas a ler legislação e a preencher papéis que não fazem avançar o mundo, vão-me fazer falta um dia destes. Sinto-me pobre!

quarta-feira, outubro 01, 2008

Jipes, touros e objectivos individuais

(Foi meu irmão António quem tirou estas duas fotos em Nova Iorque, no centro financeiro, na Bolsa, e se ele as tomou como representações de força e poder, eu aproveitei-as para um destampatório sobre a situação escolar cá no país ou no burgo. Não estou certo das distâncias nem das proximidades, mas o impacto das imagens ajusta-se ao que penso sobre a nossa furiosa paronoia de objectivos individuais)














Nós gostamos de imagens fortes. Touros de cobrição e carros de potente cilindrada ajustam-se a retratos de poder. Os filmes já despistaram as razões todas e as que ainda estiverem sonegadas à interpretação hão-de, certamente, reforçar as velhas: que a potência das imagens seja a potência da liberdade, também aceito e é daí que tudo tem princípio. Seja: um homem ambicioso inspira um povo ambicioso, mas porventura já terá recebido dele a inspiração, a tomar como sensatas as teses de Espinosa. Touros de potência e carros de cobrição, aqueles assegurando a reprodução e estes a segurança de pessoas e bens, são um fait-divers da interpretação. Do animal à máquina, dos cornos ao motor: a mesma fúria de vencer.














Ora é precisamente desta filosofia individualista que sai a arte das representações expostas. Ideário que faltava por cá, país de brandos costumes, ideário que faltou em regimes de musculatura popular colectivista, mas ideário de que não se pode abdicar se queremos ser alguém e se queremos sair da cepa torta. Ideário que, por inspiração chinesa, chegou finalmente aos nossos abnegados ministros e ministras.

A minha esposa já andava com esta teoria no seu Banco há uns tempos, trazia-a para casa, explicava-a minuciosamente nestes termos: um bancário tem que ter objectivos para chegar o mais longe possível, o ideal é que duplique sempre aqueles que lhe marcam como mínimos, se os triplicar então é porque já interiorizou bem a filosofia da ambição. Ter objectivos individuais é abdicar de horários, é abdicar do tempo livre, porque sim, porque sim, só não vê quem não seguir a lógica. O chefe vai surgir de entre os que levarem mais longe a invenção de objectivos. O topo estará reservado a quem conceber objectivos irrealizáveis. A falência do edifícoo só pode dever-se à má sorte. A vigarice e a pulhice passam a ser tácticas conjunturais, sempre episódicas, desculpáveis devido à natureza do sistema.

Que um gajo solto e génio enterre um Banco, já se viu e já se falou. Mas ainda não é conhecida qualquer objecção a que o sistema de objectivos, ligado a um bom sistema de incentivos, possa levar uma escola à ruína. Portanto, há que experimentar.

Esta crise económica, pese embora eu não perceba a linguagem de subprime nem a de alavancagens financeiras, não é filha parida deste ideário insidioso dos objectivos individuais? E$u ia jurar que sim! Mas quem controla as bestas? Os touros capam-se e os motores reduzem-se com sensores. Mas só depois de experimentar a «pica» que a coisa tem!