Pesquisar neste blogue

segunda-feira, setembro 29, 2008

Alguns tempêros de mesa e de rua

De seis para sete de Setembro, a Senhora da Peneda foi um lugar de imaginário: aí me convenci mais uma vez quanto é desejável o equilíbrio dos corpos com a ideia de seram portadores de um espírito, fosse por as danças terem estado à altura de uma vivência religiosa, fosse por ter ouvido e gravado alguns toques persistentes da tradição, fosse por ter sido bem acompanhado, fosse por ter ido ao encontro daquela «outra coisa linda» que o meu amigo Borralheiro foi, o certo é que vim de lá convencido de nós: do nosso empenho nas cauas, da nossa tolerância crítica, da nossa vontade de comer e de beber, da nossa amizade, do nosso itinerário, este mesmo, o de andarmos por lugares de tanta irracionalidade e instinto com a mais decidida vontade de tudo perceber.

O «jovem» senhor do meio é o meu colega e amigo Guilherme Pereira de Magalhães, professor aposentado, 82 anos ainda cheios de trabalho na sua quinta em Cabeceiras de Basto, com a esposa ao lado, a Maria Augusta, também colega de profissão. Tinha ele a minha idade e eu menos trinta anos e fomos colegas de estágio em Vila Real, com mais quatro colegas homens e duas orientadoras. Eu acabei por ser padrinho do filho de um deles, o João Alves Dias, e agora esta fotografia fez-se na nossa ida ao baptizado de uma neta de outro, o Manuel Duarte Ribeiro, de Lamego, de cujo o filho, Jorginho, saiu a semente de futuro. O tempo passou e juntou-nos nele, trazendo no seu ritmo o nosso envelhecimento e as nossas cumplicidades. Os filhos dos meus colegas de estágio fizeram parte do mesmo, uns já feitos, outros desejados nesses dias de trabalho obstinado. De todos tenho saudade, como pequeninos que foram e eu os conheci, de todos trago a presença interiorizada. Um anda dentro de mim em sofrimento de esperança. Isto foi dia sete, em Coimbra, ali perto da Sé Velha, entre ruas escalavradas pelo tempo e desleixadas pelos homens.

Do começo do ano escolar, já dei uma ideia de entusiasmo que chegasse, mas agora confesso que me achei de repente um tanto desactualizado de tácticas e de estratégias de combate face aos desafios prementes do meu Ministério: lecciono duas turmas do 5º ano, tenho um aluno autista ou SA, tenho um outro que veio do Perú, tenho um outro ainda que toma ritalina, achei graça ao fármaco por o desconhecer, surpreso que fiquei dos seus efeitos, a ser verdade o quadro pintado sobre a euforia cavalgante de paredes inclinadas. O que sabia e sei há-de-me valer de alguma coisa, confio no instinto e na bagagem adormecida, faço fé na inércia de rotinas. Desatei a ler tudo quanto posso, a perscrutar quanto oiço e a observar quanto vejo - tenho uma turma bonita e espero mantê-la viçosa e cúmplice.

O convívio do dia 20 de Setembro em Rabiçais, Arco de Baúlhe, idílico recanto à beira-Tâmega, na propriedade da Dra Glória Barroso, notária aposentada, minha parceira de viagem à Expo Saragoça e fiel cumpridora da palavra dada a todos quantos íamos na camioneta de que não sairíamos com fome dos seus territórios de adopção e de cultivo, foi uma outra experiência de passamento para o lado de lá, esse mesmo o da erupção do desejo e da projecção. A certa altura deixei de me sentir sóbrio sobre a terra e entreguei-me à levitação, se não voei, pouco faltou ou então não me apercebi de facto, mas aconteceu-me. Os responsáveis foram o lugar e a delicadeza da anfitriã, a fertilidade da mãe natureza ali encarnada. Ó que de vinhos e de carnes, entradas e saídas, condutos e sopas, sobremesas e destilatórios! Ó que de gratas companhias e que de atrevidos amigos ali nos juntámos: se um afoitava, outro repercutia e se um insistia, outro acumulava mais disposição de estar e durar. Correu-nos o tempo que ameaçava chuva e a desgraça de não podermos dormir todos juntos, que mais havia lá camas e sustento para cem.
Se houver bocas a dizer que ali se conspirou contra o poder local de Cabeceiras ou que ali se recalcitrou contra os desaforos do poder central, essas que se calem e se projectem no Tâmega, bom afogadouro de miudezas e de invejidades.

Depois a noite acabou nas Feiras Novas, em Ponte de Lima, no aperto de um casco urbano feito ovo de perua, que são os maiores que conheço. Tudo ali tem o seu lugar e a sua ocasião, desde o especulativo erudito ao mais empírico dos iletrados, sim porque é de especulação que se faz ali a festa, desse sentimento que junta o umbigo e o espelho: uns pela gastronomia, outros pela bizarria de costumes, uns pela música popular desatinada, outros pela escolha selectiva das bandas, uns pelo aperto das ruas outros pela largueza dos desejos, uns por herdamento outros por posse de uso, ali os vi todos e os suspeitei de andarem a perder-se de si, por uma noite. Também foi a primeira vez que ali deixei um sobrinho de 16 anos, entregue aos amigos e à noite, com a chuva na cabeça e a recusa de qualquer abrigo, com dinheiro para uns copos e para o bilhete da camioneta de regresso a Braga, lá pelas sete da manhã. Fiquei a olhar para a Tininha, minha esposa, e partilhámos essa ausência ou dor de ficar sem tudo quanto desejámos sempre. Chovia, fomos comprar dois guarda-chuvas por cinco euros, mas não choveu mais depois de os termos pago.

Agora foram as vindimas, de novo o alargamento de garganta e o dilatamento de barriga. Um homem não se vai daqui sem levar que contar, pena que seja breve ou imprevista a hora do mundo. As uvas fizeram bem ao ego, sejam agora, ao menos, bem usadas por quantos as ouvirem cair no copo. Brindo à saúde de todos os que beberem vinho que vindimei.

domingo, setembro 14, 2008

Colega, escuta (Em homenagem ao professor António Castanheira)

O António Castanheira aposentou-se. Contra a corrente, mas em acto de inteira lucidez, no fulgor das suas capacidades e no tempo maduro da sua experiência de comunicador e pedagogo. Aqui o lembro e aqui lhe presto homenagem. Aprendi com ele desde os tempos da Faculdade, devo-lhe muito do que sei e do que tenho feito na escola e por aí. Tenho-o como referência, quer em termos de ensino da história e do português, quer em termos de animação cultural. Espero continuar merecedor da sua amizade e compreensão. No presente, a escola fica mais pobre com a saída de um profissional assim, mas é neste presente de desgaste público da profissão docente que devo compreender a sua aposentação. Sei que ele irá dedicar ainda muitos anos à animação cultural, à História e às histórias, à literatura e à música portuguesas, à investigação e à divulgação, ou seja, à escola, agora nessa dimensão informal de não ser pertença de uma gestão burocrática, impositiva e impostora, mas sim uma obrigação social de transmissão e partilha.

Aqui deixo, em sua honra, o mais recente trabalho que executámos em conjunto, o qual pode ser visto no Youtube (colega, escuta...). Aqui lhe dedico também um soneto, no qual envolvo a memória de amigos comuns, um deles o Rogério Borralheiro.

Colega, escuta esta cantiga de alegria
Que só pretende fazer-te companhia

O ano vai ser duro, não tenhas ilusões,
Mas, não esqueças, vai ser ano de eleições,
Portanto pensa por ti e do alto desconfia,
Olha que Lurdes não te vale nem te auxilia,
E o rol de tanta mudança anunciada
Ainda pode ficar pelas ruas espalhada.
Colega, escuta esta cantiga de alegria
Mas está atento, para saberes quem te avalia.

Já sabes, já ouviste a propaganda,
De quem prega, de quem sabe e de quem manda:
Há mais livros, há mais computadores,
Há mais obras e há quadros interactivos promissores.
Há mais cursos, mais alunos, mais sucesso,
E tudo isto, já vês, é um bom começo.
Colega, escuta esta cantiga de alegria
E sorri, anima-te, é o primeiro dia.

E tu és a pedra principal do edifício
Prepara-te bem prò sacrifício.
Chega à escola, pega o livro, toma o café e vai prà sala
Sorridente, contente, mas resistente ao «come e cala».
Sobe os degraus do acto educativo,
Com bom senso, com humor e bons olhinhos;
Não gastes as escadas do executivo,
Que eles gostam de trabalhar sossegadinhos.
Colega, olha de frente os alunos que vais acompanhar
Dá-lhes carinho e exigência, ensina-os a pescar.
Colega, escuta esta cantiga de alegria,
Respira fundo e não te deixes arrastar na burocracia.

Não passes as culpas para baixo nem para cima,
Dos pequenos aos maiores faz o que sabes bem, ensina,
Partilha os teus saberes, ajuda quem puderes,
Estás a formar e a educar futuros homens e mulheres.
Colega, escuta esta cantiga de alegria
E aposta forte na crítica sadia,

No pré-escolar, jardim de mil sonhos e flores,
Investe nos meninos e nos seus educadores;
No primeiro ciclo dá gás àquela fome de saber
De querer falar, contar, ler e escrever
Ocupa-lhes a memória por inteiro
Não deixes as ideias no tinteiro.
Colega, escuta esta cantiga de alegria
E sempre e em toda a parte a balbúrdia contraria,

Não deixes passar por ti a má educação,
Impõe respeito, regras, disciplina e muita acção.
No segundo e no terceiro ciclos não te iludas
E não vás no paleio desculpante dos miúdos e miúdas.
O único lugar onde o sucesso vem antes do trabalho
É no dicionário, se for bem consultado.
Colega, escuta esta cantiga de alegria
Não mandes por mandar, ouve e confia.

Se tens poder, usa-o bem e com respeito
Que todos temos coração dentro do peito.
De resto, para acabar, faz sempre o teu melhor
Mesmo que digam que a coisa está a ir de mal para pior.
Colega, escuta esta cantiga de alegria
Que nós até somos capazes de tocar em harmonia.

++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++

O tempo valoriza as discrepâncias,
Colhidas sob a luz da liberdade,
E vai-nos inculcando a realidade,
De sermos nós e as nossas circunstâncias.

Corremos à deriva de fragrâncias
Que excitem os sentidos e a vontade,
E a nossa pouca ou muita densidade
É misto de certezas e de errâncias.

O tempo cicatriza-nos a alma,
Tempera-a com limites e utopias,
Inscreve-a nos hábitos do trauma,

E vai acumulando em ironias
As nossas circunstâncias mais sombrias.
O tempo nos provoca e nos acalma.

segunda-feira, setembro 08, 2008

Deixaste um buraco no jardim

Uma gota de água
Ou de suor
De sangue
Mágoa
E lágrima
De um rumor
Distante
Cai cai e em fio
Se faz
Regato ribeiro ou rio
Delicadamente
Já ela traz
Toda a força da corrente

Estavas ao fundo, para lá da cancela, debruçado sobre o buraco donde retiravas terra para tapar outro, aquele que se mantinha aberto na relva por forças da enxurrada de chuvas.

O chapéu de palha era continuado pela camisola amarela e só os calções vermelhos interrompiam esse tom de barro e colmo até aos pés, naquelas croques esbondegadas que traziam as marcas do lavrador que estavas a ser. Suavas por quanto era rosto e cabeça, braços e pernas. Os cumprimentos foram húmidos de cansaço, de sede, ainda que dissesses que bebias água quanta querias. Estavas ofegante, suadinho, cansado. Foi o tempo de parares e saberes que eu levava no saco umas couves e pão seco para as galinhas, pretexto que se juntaria ao de vermos o borreguinho que nascera uns dias antes, e que tu passearas no telemóvel por todos os amigos que estavam no ensaio. Tomaste-me o braço e disseste «anda daí» e dali não saíste mais, quebraste, a Tininha tomou-te nos braços e a boca derramou-se para a direita. Tiveste a consciência súbita do AVC, mandaste chamar o Miguel, pediste o Hospital, tiveste tempo para veres a nossa incompetência de paralisados, bebeste a água com açúcar. Peguei-te ao colo e senti-te mais pequeno. No carro ainda foste tu quem viu a porta de trás aberta e a mandou fechar. Caíste sobre mim, sem lado esquerdo e apertaste-me a mão direita com toda a força. Gemias e davas murros na tua perna e na porta do carro. Doía-te muito a cabeça e eu falava-te em estarmos a chegar, acelerando cada vez mais. Viste-te ao espelho, repetiste palavras e movimentos, os mesmos, de dor. A força de tua mão direita deu-me toda a esperança. Soube depois que outro buraco se te abrira no cérebro e te jorrara por lá quanta energia e fulgor mostraras diariamente.