Pesquisar neste blogue

terça-feira, outubro 16, 2007

RFS - outra vez no ar

De cabeça erguida é que se anda bem, mas de cabeça baixa acha-se dinheiro ou vê-se a terra que se pisa, e onde se põem os pés é dever de cuidar bem, não vá aparecer um bosteiro de cão urbano e lá se vai a sola do sapato até casa ou até à escola, lugar este mais delicado para sola de sapato entrar suja, pois há mais gente a reparar, gente com pituitária analítica, inclusive para cheiros de ar, que demais para cheiros de terra. Mas é da cabeça erguida que eu quero falar neste começo de ano e não estou a conseguir levantar o cachaço. Como é que se anda de cabeça erguida em tempo que toda a gente olha para as solas dos sapatos? Como é que se cheira o ar quando o chão de baixo está empestado de licenciosidades? Como é que se anda de cabeça erguida em maré de desinvestimento na linha do horizonte? Um homem ergue um pouco a cabeça e logo a baixa, tal é o costume, ou hábito, ou vício de olhar o chão. Mesmo quando a gente começa de levantar os olhos para ver pernas e depois seguir as suas chamadas de atenção e as suas curiosidades de encaixe ou seguimento para a cintura e depois continuar a levantar os olhos até ver o antes e logo depois o rosto e baixar de novo, que não deu para sustentar sorriso ou esperança de olhar o céu. Anda uma tristeza no ar e eu não sei dar conta dela. Anda mais gente na escola, está mais velha a escola, está mais ocupada e suja e cheia e ruidosa e entupida a escola, de gente que olha o chão. Há falta de ar? Há falta de céu? Chega de metaforizar a intencionalidade de falar daquilo que não tenho, nem acho, nem vejo onde o procuro: o entusiasmo. Não há entusiasmo no chão, não o há no ar, não cheira a entusiasmo, cheira a gente, a rebanho enredilado. Dizem-me, quando olho para o chão ouço mais vezes o que não quero, que nada deu em nada, que a montanha pariu rato de pequenez acentuada: e agora sou professor titular de olhos no chão. Mas eu obrigo-me a erguê-los: levanto-os na sala, levanto-os naqueles corredores de vento e de sol e de chuva que são os cobertos de lusalite envelhecida e frágil, levanto-os no quadro que ainda me exige o braço todo, levanto os olhos para pedir aos alunos que os levantem, que os vejo sempre de olhos em baixo, de mãos metidas entre pernas, de cabeça distraída com o tampo das carteiras. Anda aqui qualquer coisa a destemperar o gosto e não é só a minha idade, que agora até me sinto bem na leveza dos assuntos repetidos e dos exemplos renovados. Anda aqui mosca varejeira, anda aqui gravidade a mais. Procura-se leveza, arejo, vontade de voar. Chega-se a professor titular e deixa-se o avião em terra? Pois mais parece. Pode ser que a rádio ajude a ganhar lanço. Mas a nossa rádio fica no rés-do-chão, ali, no piso mais fundo do Pavilhão F, num daqueles cantos onde se passeia uma freira teimosa e resistente. Até as fadas se entrincheiraram. Isto promete. Eu vou ler aos meus alunos aquela história do Italo Calvino que começou precisamente no momento em que alguém viu outro alguém a olhar para o ar, para o cocuruto de um prédio ou de uma igreja ou de um palácio ou de uma árvore ou de uma montanha. Toca a levantar a cabeça, pessoal! Eu vejo qualquer coisa acima da minha cabeça!

5 comentários:

TempoBreve disse...

De cabeça erguida, é que se anda bem. E para que não se duvide, pôes fotografia. Tens toda a razão.
De facto, começa a parecer habilidade rara, ou ousadia grave, andar de cabeça erguida, coisa que deveria ser vista como bem normal. Mas não, que,como dizes, anda a mais da gente de cabeça no chão.
Há razões para isso, que o desconsolo aperta, a agressividade fere, a ignorância mata. E tudo isso aparece com roupagens a que chama progresso, muito acomodadas em burocracias, inúteis e tontas, mas que entusiasmam servidores fiéis, a morder de furto, e cuja inteligência medem por resmas de papéis, e pelas estatísticas, apresentadas em gráficos de todos os tipos (que de um só era pouco), de todas as cores (para serem mais atractivos), com a idade da mãe, a idade do pai, a idade do filho, a idade do tio, a idade do cão, o que faz o cão, o que faz a mãe, o que faz o pai,o que faz o gato, a que horas faz.
Ora, quantas mais razões destas houver a fazerem pender a cabeça para o chão, mais razão e urgência há para a erguer bem alta.
Tens toda a razão. Toca a levantar a cabeça. Toca a andar de novo de cabeça erguida. É que, se não, ainda no-la vergam mais.
Um abraço.

Ibel disse...

De cabeça erguida, grande Zé!È por isso que há quem diga que andas meio louco!O rebanho sem cérebro gostaria que tu fosses pelo chão que eles pisam,perfumado de aroma Cavali,limpo com detegente Guess, desinfectado com lixívia Armani.
Tu gostas do chão das romarias,do chão molhado das chuvas,do chão de pão e rebuçado de terra e obrigam-te a ser professor titular de olhos no chão que é de dentro e não de ventre! Sinto-me como tu ,professora titular de ollhos no chão. Mas também teimo e olho para cimaa ver se um deus qualquer que me valha.
Hoje valeste-me tu e outros que preferem piscos e melros.
MUITO OBRRRRRRRRRIGADA:

Ibel disse...

Parabéns!

José Hermínio da Costa Machado disse...

Agradeço a referência da loucura, embora de nada me sirva nesta aflição escolar: se a tivesse, seria outra loucura gastá-la neste ambiente tão burocraticamente tresloucado. Que os ares dêem a parecer o que sentimos, já vale a pena sair à rua.

José Hermínio da Costa Machado disse...
Este comentário foi removido pelo autor.