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quarta-feira, outubro 24, 2007

Passageiros do comboio escolar

Volto ao blogue neste acto de me lembrar que três colegas se aposentaram da minha escola e nunca mais os vou ver na mesma carruagem do comboio: a Manuela Carreiro (CN e Mat), o Costa Gomes (Mús) e o António Macedo (Ing e Port). Conheci a Manuela em Vila Real, na Escola Diogo Cão, nas actividades do estágio pedagógico; no ano seguinte, 1979, em Braga, na Francisco Sanches, ela seria uma das fundadoras do Grupo Folclórico de Professores de Braga, do qual fez parte durante uns anos; trabalhei com ela o projecto das campanhas da Dádiva de Sangue, numa equipa de que faziam parte a Maria José Lopes, a Luísa Ivo e o Fernando Cardoso. Atenta, crítica, por vezes seca e dura, tinha o culto da coerência e da responsabilidade. Conheci o António da Costa Gomes sempre como músico, primeiro como pianista, depois como professor; vi-o sempre envolvido em projectos de animação musical e recordarei sempre como iniciativa exemplar o seu projecto d'Os Pequenos Cantores da Francisco Sanches, a formação de um grupo dedicado à interpretação de temas originais, de cuja composição se encarregou com todo o fulgor de criação. Devo-lhe quase toda a minha curiosidade em assuntos musicais, agradeço-lhe a paciência com que me ajuda e espero ainda dele muitas contribuições para o Grupo de que faço parte: já cantamos dele alguns temas originais e outros harmonizados. É um criativo, uma torrente de generosidade, um santo. O António Macedo é um combativo, com tanto de persistente como de resistente, adepto da coloquialidade, questionador, prático da disciplina e da autoridade, mas entusiasta da troca cultural. Comecei a escrever sobre eles e fui ler uns versos ao Pires Cabral, numa obrazinha poética recente que meu irmão António me sugerira como surpresa.

Retirei então desse livro de poesia «Que comboio é este», edição do Teatro de Vila Real, 2ª edição, 2007, p. 23, a seguinte passagem:

Passageiro.

Caramba,
não preciso que mo lembrem.

Não me enterrem mais
a coroa de espinhos:
já me está apertada,
fundida com o crânio quanto baste.

E pus a banda a tocar, saí para a rua, que a vontade era visitar a estação de Vila Pouca se ela ainda pudesse ser meu ponto de partida para a Régua. Pois para o mundo é que foi, com direito a banda de música na memória deste presente, como se fora a inauguração da minha linha e como se fora a recepção da minha chegada a outro lugar. Tenho do comboio uma saudade eufórica e da condição de passageiro uma liberdade resignada, de aceitação, uma condição de outra condição. E desde então vi-me passageiro entre outros, em todos os comboios que o foram e naqueles que o parecem. Desde então não desci mais de comboio algum, não obstante a ilusão de apeadeiros ou de estações demoradas. Ando de comboio nesta naturalidade de viver. De professor me vi como passageiro de comboio, espinhado até ao tutano pelo ofício. A poesia de Pires Cabral é como água.
Entrámos passageiros na idade da flor e deixámo-nos seduzir pela viagem, essa mesma ideia da viagem com destino, nesse encantamento das mudanças de estação, nessa variedade de entradas e saídas de gente, nesse encontro perturbador de lugares e de acasos.
Deixo-me conduzir por esta ideia de ser passageiro com outros e vejo-me neste comboio escolar donde alguns se vão apeando, ontem um, depois uma, agora três, qualquer dia cinco ou seis e depois eu e um dia todos. De mim sai sempre um pouco com os outros que vão à frente. Eles ficam um pouco comigo. Eles saem, melhor, mudam de comboio, se calhar apenas de carruagem, mas deixo de os ver e deixo de me ver neles. Acontece nesta condição de passageiros essa mesma comunhão de traços de família, esse mimetismo de gestos e de tiques: misturamo-nos até nos gestos e nos rostos. Fiquei mais só até me recompor, inevitavelmente seguirei sem eles. Foram passageiros incomodados e gostei deles por isso.
Volto ao livro de Pires Cabral, oportuna metáfora também sobre a escola que nos serve de comboio. E leio:

Companheiros de viagem

Comigo viajam todas as moscas,
bandos de aves, trupes de ciganos,
o papa, a miss mundo, a empregada
do shopping e os seguranças do mesmo,
o cão que ladra no terceiro andar,
o salmão que comi ao almoço.

Minto: o salmão apeou-se
na estação anterior.
Dele viaja apenas, por enquanto,
uma espécie de sombra
e depois nada.

Eu poderia substituir os sintagmas do poeta com outras entradas lexicais: livros, alunos, disciplinas, processos disciplinares, funcionários, pais, problemas, ministros, e cada uma destas poderia ser o salmão que não digeri ou a trupe, ou a miss, ou as aves, ou as moscas, ou o papa, enfim, tudo vai comigo no comboio, tudo viaja connosco neste que é escolar e que parece servir uma linha interior a outras linhas.
Aqueles meus colegas saíram há pouco, um mesmo agora e ainda se vê no cais. Vivemos juntos desde que este comboio da Sanches era só metade e quase descomposta de recursos interiores, que por fora teve sempre grandeza de aspecto. Não começámos a falar por sedução de corpo ou de estilo; aconteceu-nos primeiro o desconforto, depois a discussão, mais tarde a partilha, finalmente o respeito e a amizade. Se algum traço comum retenho deles é este mesmo: foram três paradigmas do passageiro empenhado em chegar a algum lugar, empenhado e convencido das vantagens de chegar. Eles enterraram na cabeça essa coroa de espinhos, fundiram-na com o cérebro e pensaram-se sempre na mesma condição de serem passageiros num comboio especial, de serem os passageiros condutores de outros, de serem os animadores especiais dessa viagem do conhecimento. Entrámos na flor do sonho e sustentámo-la com insucessos, nessa esperança de viajar melhor, nesse desejo de renovar o próprio comboio. Páro um pouco, abro a janela, vejo a paisagem e regresso ao banco: estes passageiros eram da tempera de levar com eles as suas tralhas, toda a bagagem lhes fazia falta no lugar, sempre cheios de bagagem e sempre de bagagens cheias. Que fossem as ciências ou a matemática, que fosse a música, que fosse o inglês ou o português, estes passageiros eram-no de bagagem completa. Com eles ia tudo à frente, debaixo de olho, ainda por cima sempre nesse cuidado permanente de acumular as novidades de estação para estação.
Quando chegou ao comboio essa moda de viajar com distracção continuada, resistiram-lhe, puseram a cera nos ouvidos: viaja-se para aprender, não se viaja para ficar ignorante em qualquer apeadeiro. E ignorar, se foi alguma vez objectivo da viagem, parece ter ficado mesmo a ser destino e nome de estação. Passageiros da resistência, bem os posso considerar assim: ciências e matemática, música, inglês e português, tinham de ser para eles carruagens com vida própria. No comboio, os passageiros determinados acabam por fazer falta aos turistas de ocasião. Páro por aqui. Vejo o revisor ao fundo. Volto a Pires Cabral:

O revisor barafusta.
Ele acha que o meu bilhete
não é válido para este comboio,
mas apenas, quando muito,
para um qualquer tranvia suburbano.

Bem fizeram, colegas, senhores passageiros, gostei de vos ver assim. Obrigado.

2 comentários:

A. Costa Gomes disse...

Zé,
obrigado pelos comentários que me diriges. Continuarei a estar presente enquanto Deus me der vida e saúde. Já me saiu de cima da cabeça aquela pressão da "surpresa e dos imprevistos" que poderiam acontecer ao entrar para a sala de aula. Que tenhais muita paciência para para "aturar" essa miudagem para que não esmoreça o prazer de dar aulas, característica que em mim estava a desfalecer. Felizes os padres que, numa homilia, podem dizer tudo quanto quiserem sem serem interrompidos. Pelo menos até agora. É pena que, muitos, não saibam falar nem explorem as lições do MESTRE.
Por falar em mestre. Sabes muito bem que sempre te tive em enorme consideração por rodas as tuas características de bom "camarada" mas, sobretudo, pelo teu brio profissional. És um de entre aquela "meia dúzia" por quem tive sempre, e continuo a ter, grande admiração. Bem hajas. Sempre ao dispor, A. Costa Gomes

A. Costa Gomes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.