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sábado, setembro 29, 2007

Proposições evasivas II

(Fotografia feita em S. Bartolomeu do Mar, no dia 24 de Agosto, no ritual do «banho ao mar»)

5ª As multidões são de sempre e os consensos também, mas alguém começou, alguém teve a iniciativa, alguma causa desencadeou a reacção e o processo deu-se e sustentou-se. As causas, as origens, os começos, a partir de certa altura da reflexão, deixam de interessar. Em qualquer data de um processo, quando me interrogo: porque continuo a fazer o que se fez até aqui? - a origem está encontrada, os argumentos podem começar a elaborar-se. O argumento da tradição não evita esta interrogação, nem a desculpa, nem a substitui. Antes a requer com mais segura argumentação, ou seja, com actualização de razões.
Na imprensa, no sermão, no roteiro turístico, minguam as actualizações de argumentos. Mantêm-se as lendas, mantêm-se os mistérios, prevalecem os sentimentos e os instintos. Acredita-se e justifica-se: «mal não faz!» No fundo, é este mesmo argumento que nos deveria levar mais longe a própria criatividade, a própria ousadia.

6ª Continuamos tribais, a sobreviver. Mas a acumulação de experiências - o acumulado sonoro, verbal, icónico - teve momentos de criação, de variação, de repetição, de alteração. Baseamos a noção de identidade numa permanência de traços e de registos ou numa similitude dos processos operativos, isto é, reconhecemos a identidade por fazermos as mesmas coisas ou por pensarmos do mesmo modo, por utilizarmos os mesmos instrumentos cognitivos?

7ª Muito recentemente descobrimos a música antiga, a música medieval, reinventámo-la. Até a gravámos e agora reproduzimo-la. Na música, como noutras áreas, procurámos a «emergência» e conseguimos a ressurreição. Não há razão para descrermos. Quando minguam as fontes documentais, crescem os processos da imaginação, os da procura, os da comparação, os da construção etnográfica do próprio conhecimento.

sexta-feira, setembro 21, 2007

Proposições evasivas

(Nesta fotografia estou eu e o Frank Mocklinghoff, uma alemão especialista em registo de som, um produtor musical; estamos a almoçar na barraca do Américo Cachadinha, na romaria de S. Bartolomeu do Mar, no dia 24 de Agosto)

Há pelo menos 25 anos que calcorreio festas e romarias, quase sempre acompanhado de amigos certos, outras vezes com a minha esposa, de vez em quando só. É um divertimento de ofício, o de observar, o de conversar, o de inquirir. Quando comecei, foi atrás dos cantadores ao desafio, persegui-os por quanto era canto e esquina, fotografei-os, gravei-os, entrevistei-os, fiquei amigo de uns tantos, conhecido de alguns, estranho de vários. A par e passo observei outros intérpretes musicais, bandas e grupos folclóricos, coros de igreja, conjuntos e intérpretes. Assisti a desfiles e cortejos, dancei e cantei em raras ocasiões. Por obrigação pessoal fiz-me «romano entre romanos» e comi do que havia e onde o vi. As proposições que a seguir lavro são de risco fácil e em terra brava.

1ª Tudo (festa, cortejo, festival, actuação) se parece fazer segundo a tradição. Neste invocar da tradição tanto se instala um desejo de conservação como de mudança, ao sabor de conveniências da gestão dos eventos e da visibilidade das lideranças. A tradição manda fazer como sempre se fez, o que muitas vezes quer dizer que a tradição manda que se improvise, que se faça como se puder, que se tire partido do que há no lugar e no momento, que se invente como se inventou. A tradição é suficientemente lata para conter a sua própria aparente ultrapassagem, a tradição é um elástico eficaz. Não há nada fora da tradição. Recordo um episódio curioso: um dia, em Santa Marta de Portuzelo, estava eu a visitar uma casa apalaçada com sinais evidentes de muita acumulação de estilos e intervenções artísticas, quando se meteu à conversa o proprietário recente da mesma, um espanhol, que a comprara com a ideia do turismo de habitação e de espaço privilegiado para eventos sociais, casamentos, baptizados, além da intenção de restaurante e bar permanentes ou pelo menos sazonais. A dúvida do homem era saber como é que devia fazer o restauro da casa, que já consultara arquitectos e engenheiros e estava cheio de dúvidas, pois todos achavam que a casa era um produto de fantasias e de rasgos de arte. A conversa fez-se por outras voltas, da música às roupas, da infância à idade actual, das memórias de galegos e de portugueses, de tempos de pobreza e de tempos de ditadura, etc. e tal. A conclusão do homem, naquela atitude óbvia de «eureka» ou «ovo de colombo», ficou registada nestas palavras que reproduzo em galego ou espanhol estropiado se calhar: «Hay que seguir fantasiando!»

2ª O conservadorismo de «tipicidades», muitas vezes «mazelas e deficiências», ou seja, a manutenção de «traços locais» com valor interpretativo de genuinidade, pureza, rigor etnográfico, etc. e tal, é um argumento estafado, mas é ainda um argumento muito manipulado com eficácia. Que a estrada seja má, que as instalações sanitárias não existam, que a luz falhe, que as barracas dos comes e bebes sejam desajeitadas de tudo, que os horários não se cumpram, que os cânticos sejam executados «sabe Deus como», não são argumentos válidos para diminuírem o «casticismo» ou a natureza da festa ou do evento. Este argumento parece-me o mais frágil, ainda que o veja conviver com a argumentação da novidade, da experiência, do «uma vez não são vezes»; é muitas vezes usado por falta de proventos ou verbas, mas prevejo que brevemente seja ultrapassado por um daqueles normativos que mandam renovar, refazer, restituir, restaurar, reequipar, e outros «res» que andam no cerne da tradição.

3ª Em matéria de cortejos ou manifestações etnográficas, pratica-se uma etnografia de exclusão, ou seja, parou-se no tempo, fez-se uma selecção de traços que garantem boas fotografias, cristalizaram-se situações e retratos. O que vale é que há sempre gente a romper por outros lados, a misturar roupas e objectos, há sempre uma «inovação» para experimentar, enfim, o que vale é que anda uma angústia no ar e quando as coisas se fazem com este sentimento cada vez mais forte de serem uma caricatura do que foram, salvam-se pelo cómico, mas denunciam uma carência de abertura de actualização. Por que raio haveremos de ter vergonha de mostrar os nosso últimos 50 ou 60 anos de vida social? Quando as vacas entram na cidade, ressentem-se nos cascos da dureza do empedrado ou do alcatrão, e ainda que deixem a bosteira para os figurantes seguintes pisarem e repisarem, não parecem adaptadas.

4ª Em matéria de danças e cantares, não nos iludamos, a arte é com quem a sabe fazer, não é com quem a arremeda ou cicatriza, qualquer arte. É já tempo de nos convencermos que as danças e os cantares tradicionais não requerem roupas específicas para se exibirem ou praticarem, como é já tempo de esta juventude contemporânea aprender que se quer dançar e cantar tem de aprender como se faz, tem que dar ao canelo. Não falta quem ensine e ensine bem. Os grupos folclóricos devem começar a distinguir muito bem quando precisam de mostrar roupas da tradição e em que contextos ou situações e quando é que precisam de animar uma festa ou organizar um baile popular. Se já nem os padres precisam de estar sempre de cabeção ou de estola e hissope... (a continuar)

sexta-feira, setembro 07, 2007

De então para cá

De então pode ser o mês de Agosto e para cá é o dia de hoje: espero por uma reunião inútil, mas tem de ser assim, reunião porque nos vamos juntar uns quantos com esta função de sermos directores de turma, inútil porque se trata de uma preparação a partir de tudo quanto já se sabe e se fez em anos anteriores, mas tem de ser assim porque quem a marca não tem outra forma de ser e o lugar onde acontece tem de estar marcado por rituais de ocupação. Entretanto escrevo, porque é descompressor da atmosfera.
Escrevo na lembrança de gente que perdi nestes últimos tempos: a D. Mia, a mãe de dois irmãos meus amigos, os Farias, uma senhora que me encheu sempre a alma com aquela franqueza de acolhimento e de comunicação: ela tivera um negócio de taberna e venda e muito bem se especializara em saber encarar os fregueses e em saber adivinhar-lhes as tendências, ela acumulara experiências de trato com todos e eu bem pude saber quanto isso lhe dava vantagem para nos perceber, aos mais novos, para nos atiçar e para nos confrontar com este nosso tempo de abastança e de conforto; dela recebi alguns testemunhos que definiram o meu interesse pelas práticas musicais e coreográficas desta região, dela guardo uma lembrança de ternura e uma preocupação constante pelos meus: estar com ela era estar com todos os que temos e com todos os que somos, era ter a curiosidade de sabermos mais de nós.
Outra perda foi o Teles, meu colega de profissão, homem avantajado em todas as dimensões, no corpo, na amizade, no riso, no trabalho e na saudade; tive com ele alguns momentos decisivos neste ofício de animação cultural e neste ofício do convívio; nunca a palavra lhe foi de cerimónia e nunca o abraço lhe foi de episódio, o seu optimismo era uma força da natureza, era uma água benta de entusiasmo.
E ainda outra perda, a do «meu reitor», o professor Lúcio Craveiro da Silva, com 92 anos cheios de lucidez e de compreensão. Nos idos anos da revolução de Abril, chefiei um «comité revolucionário» de ocupação do seu gabinete de direcção da Faculdade de Filosofia em Braga, para satisfação de longo historial de reivindicação da equiparação e habilitação do curso para a docência, depois sentei-me a seu lado como representanate dos alunos no primeiro conselho directivo alargado daquela faculdade e ainda hoje me lembro com nitidez das suas palavras de recepção àquela fúria invasora do «vimos ocupar-lhe o gabinete»: «sentem-se e vamos conversar» e desarmou-nos com graça, que ele era mais reivindicativo do que nós. Falámos deste e doutros episódios do Verão quente, falámos de quanto me faltou para ser hoje mais orgulhoso de mim próprio, a última vez ali na esquina da Faculdade, depois de um encontro com música na Casa de Monção. O tempo deu-me bem a oportunidade de o ter como mestre.
Entretanto correram as festas e as marés e entre as praias de Maiorca e as de Esposende o vento e o sol proporcionaram-nos bons momentos, a mim, à minha esposa e aos amigos e familiares. Fui a S. Lourenço da Armada, com o Borralheiro e a Helena, festa que me decepcionou, não fui à Senhora do Pranto a Salto, fui a Viana do Castelo às da Sra da Agonia, outra vez com o Borralheiro e a Helena, fui às de S. Bartolomeu do Mar, com o Frank, um amigo alemão que se encontra agora entre nós e que é especialista de som, fui a S. João de Arga, com uma enchente como nunca vi, não fui à Peneda porque não pude. As festas são uma ocasião de curtimento das conversas, valem pelo descanso e pelo reparo naquilo que cuido ser a minha terra e o meu tempo.
O regresso à escola foi uma decepção, pela banalidade dos gestos e das palavras, pela curiosidade de desgaste e pela impressão de suspensão em relação às decisões que podem vir de cima, claro, do Ministério. Salvou-se e salva-se o projecto em que nos metemos para a «rentrée»: a tocata dedicada a S. Martinho de Dume, já com os alunos nos ensaios do canto, com a Ondina Cunha ao piano e a Teresa Couto como intérprete «diva» e eu a teimar no clarinete em dó, e a Céu Lucas a dar volta aos gestos e à encenação. É para o Festival de Mimos de Braga.
Em casa, nos intervalos de tudo, nos momentos de desconforto, corro com os trabalhos do vinho e da vinha, de parceria com o Aurélio de Oliveira, para apresentar no I Congresso Internacional do Vinho Verde. Só falta ensaiar. Por falar em ensaios, retomaram-se os da Associação «Os Sinos da Sé», às quintas, às 21.00 horas.
No dia 25 de Agosto foi o aniversário de minha mãe, 83 anos em situação de imobilidade progressiva, com lucidez de palavra e de memória, mas com muito tempo de silêncio e de olhar. Meu pai está com 80, estivemos lá, em Raiz do Monte, os filhos todos e quase todos os netos. Estamos ainda todos com o barulho da infância.