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quarta-feira, abril 11, 2007

Alastra a sombra

Toda a leitura imediata me transtorna: o castanheiro, o pôr-do-sol, a casa. É na propriedade de meus pais, em Raiz do Monte, foi neste inverno de 2007, era um fim-de-semana, foi com uma máquina de bolso e o rolo já tinha mais tempo que o devido. Sinto nesta imagem uma disposição de perda a que preciso de resistir. Esta luz intensa já fez as minhas tardes e já puiu meus ofícios de aprendiz, mas não tenho agora presente que mistérios me possa induzir. O castanheiro deu as melhores castanhas do mundo e meu pai apanhou-as com esforço, disse que eram pequenas, explicou por que não medraram mais. O chão está desorganizado de lenhas e de materiais perdidos ou abandonados que guarda no escuro de si próprio. Há uma casa para além e um coberto aqui perto, à esquerda da árvore, onde se guardam lenhas, alfaias, onde fica o galinheiro e a coelheira. É este um lugar de entrada, é um lugar de paragem e de conversa, é um lugar de sombra no Verão, é o caminho das rotinas de meu pai, já não de minha mãe que nada ali pode fazer. Este lugar, este castanheiro, este chão foram meu berço e minha escola, meu recreio e meu ofício. Lembro-me da merenda de uma festa de S. João, lembro-me de uma malhada de centeio à sua sombra, lembro-me dos montes da palha que ali ficaram, lembro-me das giestas, lembro-me da lenha encastelada, lembro-me dos gatos que nasceram no buraco, em cima, entre os braços, lembro-me de uma escada de ferro encostada, permissiva aos devaneios dos pequenos e aos temores histéricos dos maiores. Poderei tomar a árvore como símbolo e a luz poalhada como áurea, poderei lembrar de tudo, mas não resisto a um temor de perda irreparável, a uma suspeita de frio progressivo, a um peso de terra sobre os ombros.

sábado, abril 07, 2007

A experiência da irracionalidade

Foi dia 1 de Abril, era dia de enganos e foi-o se considerarmos que um fio de navalha pode não cortar coisa nenhuma, como aqueles punhais de faz de conta cuja lâmina se encolhe no acto de o espetarmos. O jogo Benfica-Porto calhou-me por mero acaso, a mim e a um amigo, o Rogério Borralheiro, por o meu irmão João, radicado em Lisboa, nos ter arranjado os bilhetes, conseguindo-os de um amigo. No acto de os recebermos, os três, na fachada do Centro Comercial Colombo, se alguém suspeitou do ar comprometido daquele generoso amigo guardou para si a intuição de ler um rosto: nem ele saberia que nos entregava bilhetes para o lugar das feras, com entrada por aquela entupidíssima porta 23? Com certeza, mas ou não o pôde evitar ou considerou que os três espectadores que acabava de fazer teriam a destreza suficiente para se desenrascarem. E quase que tivemos, mas primeiro passamos por elas. Uma hora antes do jogo começar, atravessámos a Circular e dirigimo-nos à Porta 23, nas calmas, na conversa, até à constatação de que nem passaríamos da Porta 24 tal era a aglomeração de benfiquistas, a julgar pelos sinais exteriores. Nós éramos portistas sem espavento algum. Decidimos ir à volta, naquela decisão ingénua de pensarmos que a terra é redonda e do outro lado está o mesmo lugar, até porque o tempo bastava e a conversa era de actualizar memórias e saudades. Muita gente, muitos adeptos, muita excitação, algum aperto até aos limites da Porta 21, mais até aos da 22, muito mais ainda até ficarmos sem caminho de regresso, ali entalados no meio de benfiquistas que tinham de entrar pela malfadada Porta 23, malfadada porque estava rodeada de capacetes policiais, as únicas calotes que reflectiam o sol a pôr-se. Que estava a entrar a claque do Porto e enquanto isso ninguém mais entrava, era a explicação corrente entre os impropérios e os insultos, as ameaças e os empurrões, os gritos de invasão e os de raiva. Teriam pensado os responsáveis do Clube que a mesma porta faria o milgare da reconciliação desportiva? Se o pensaram foi por ser o dia 1 de Abril e ali estava a ironia da data, se o aperto de ossos desse para riso o que já estava conjugado como angústia, com aquela pontinha de susto e de medo a subir pela espinha acima. Separámo-nos sem querer e deixámos de nos ver: eu fui levado em suspensão até aos torniquetes da Porta e só parei nas barbas do capacete policial, sentindo nas partes baixas aquela joelheira de tartaruga ninja a impedir a passagem. De braços no ar ainda fui desculpando a minha atitude de desafio, se é que as palavras tinham ali algum sentido. Quando passei a barreira, até à bancada foi sempre a correr que o jogo já tinha começado. Desculpa aqui, desculpa ali, subi até onde pude, afastei-me dos limites daquelas bandeirolas gigantescas e fiquei de plantão a ver se via meu irmão e meu colega. Soube depois que meu irmão ficara quase à cabeça da claque portista, que até vira a polícia de choque malhar duro em alguns adeptos; soube que o Rogério conseguira entrar meia hora depois do jogo começar, mas que desistira de o ver dado o sufoco da situação. Ao que a gente se sujeita! Mas por que raio de razões há-de um homem, em pleno século XXI, ser tratado desta forma tão irracional? No intervalo, o sector onde me encontrava encheu: uma correria de adeptos que atingira finalmente o direito a um lugar no estádio, um lugar em qualquer sítio e de qualquer forma que se pudesse estar. O jogo correu como se sabe, os pedardos ouvi-os e julguei que não fossem naquele sector, mas soube depois que eram tão azuis como audíveis, os cantos e palavras de ordem estiveram na medida do desgaste desejado. Saí no fim e saí à vontade, não obstante a ironia de um adepto qualquer que me brindou com a teoria da paciência «olha que ainda vais ter muito que esperar». E tive. Desci as escadas de acesso ao sector e prantei-me diante de um outro capacete de choque na maior das indiferenças: «não pode sair, aguarde». Foram só 45 minutos de indiferença, sem que alguma vez tivesse encontrado um olhar de pena ou de comiseração. Eu estava ali, para todos os efeitos, como «animal» do rebanho, da claque, como bicho insuportável ou incapaz de se ordenar por si. Eu estava ali como jogador de um outro jogo, como suporte daquele aparato policial, como a vítima a salvar pelas forças de segurança. Não tivéssemos ficado ali retidos e teríamos sido vítimas de um ataque benfiquista ou tê-lo-íamos provocado. Ficámos ali a arrefecer a raiva, enquanto a dos outros se esboroava pelas ruas da capital e as deixava desimpedidas à circulação pacata dos inimigos. Foi como inimigo de alguém que cheguei cá fora e foi como inimigo de alguém que fiquei enquadrado por aqueles polícias de choque, até dar com os olhos de um e lhe pedir balbuciando «deixe-me sair» e ele me ter dito «se quer sair, saia» e eu saí, para a esquerda, como se nunca ninguém me tivesse impedido de ser livre. Uma hora depois reencontrámo-nos, já o telemóvel dissera tudo e ainda tudo estava por perceber, como ainda hoje está e ao mais o assunto ainda anda pelos jornais e pelas televisões. Eu estivera no lugar errado, na hora errada e com azar. O fio da navalha às vezes não corta mesmo e ninguém se aleija.