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quarta-feira, janeiro 24, 2007

Cascas e aparas: o professor generalista

De cada vez que o Ministério da Educação vai à cartola das reformas políticas, tira de lá um coelho. Desta vez foi a tirada do professor generalista, um professor a formar no futuro próximo para leccionar turmas durante seis anos, do 1º ao sexto ano, pondo fim, por este invento, ao sistema actual de leccionação no 5º e no 6º anos e que consiste, como se sabe, na existência de um professor por área disciplinar, nalguns casos 2 por disciplina e por área não disciplinar. Ou seja, o ME saiu-se com a invenção mais antiga do nosso sistema educativo: fazer o ensino à base de um só professor, sabedor de assuntos suficientes para garantir a formação básica de cada aluno durante pelo menos seis anos, os tais seis anos que se cantaram sempre, a par dos primeiros quatro, como os mais viçosos do desenvolvimento e do crescimento pessoais, os tais seis anos, a par dos primeiros quatro, para os quais se disse sempre que a formação de bons professores era a chave do sucesso, os tais seis anos, a par dos primeiros quatro, em que o professor único foi sendo progressivamente posto em causa e coadjuvado por outros professores mais especializados. A falta de originalidade desta invenção é ainda mais grave se atendermos a que já foi criada e testada com sucesso uma outra solução para embaratecer todo o sistema educativo e o deixar muito perto da gratuitidade plena: o professor único para todo o país, para todos os alunos e para todos os anos, inclusive os do ensino superior, via televisão, agora teletransportado pela internet e por telemóvel, agora acessível a qualquer hora e em qualquer lugar, a sumidade perfeita que poderia garantir todos os saberes, coadjuvado pela própria internet. Tenho que aplaudir estas invenções, eu que sou de uma geração que já vive há largos anos em esperanças de contínuas invenções. Sobretudo quando esta invenção vem desacompanhada de explicações e de argumentos, baseada no simples e já rançoso parecer de que os alunos, em idade tão tenra, têm sempre uma traumática separação do seu único professor. Ora os miúdos que desde o berço já andam habituados à mudança de pais e de fontes de informação, ora os miúdos que já desde o pré-escolar andam habituados à mudança de pais e à variação de estimuladores ou animadores culturais, ora os miúdos que desde os bancos da escola, na tal escola em que era suposto só encontrarem um professor para todos os saberes, já se habituaram a estar com outros pais e com professores e com outros agentes da sua formação, desde mediadores, psicólogos, contadores, médicos, padres, assistentes sociais, músicos, actores, ora os miúdos que hoje já são adultos, e que já mudaram de filhos, mas que foram formados com a mudança drástica do número de disciplinas e de professores a partir do 5º ano e que depois ainda se habituaram mais depressa à mudança de professores e de áreas de especialização pela vida fora, ora os miúdos que hoje são investigadores e que já mudaram de ser pais, e que chegaram à conclusão que sempre a mudar é que se está bem, ora essa gente anda toda enganada: o que faz falta é o estilo de escola «madrassa», de professor único, sábio assumido do clã, de preferência do que esteja no poder, o que faz falta é a redução ao fundamental das competências básicas, como se houvesse fundamental e como se houvesse competências básicas, o que faz falta é que o sistema de educação seja o mais barato possível, como se o barato não fosse, e cada vez mais é, o que sai mais caro a toda a gente. Mas esta crónica está mesmo generalista de todo, logo, está no ponto do futuro próximo.

domingo, janeiro 21, 2007

S. Sebastião


(2 fotos tiradas pelo prof. Rogério Borralheiro, no dia 20 de Janeiro, em Cerdedo, freguesia do concelho de Boticas, na cerimónia festiva de S. Sebastião. Na primeira: o portador do santo, o portador da caldeira da água benta, o presidente da Câmara de Boticas Dr. Fernando Campos, o Dr. Nunes Liberato da CasaCivil da Presidência da República e sua esposa, o sr. Padre Fernando Guerra; a espreitar vê-se a minha pessoa e é ainda visível o sr. presidente da Junta de Freguesia. Na segunda foto: estou eu a entrevistar o sr. Padre Fernando Guerra sobre o conflito que opõe alguns habitantes de Couto Dornelas à Igreja, freguesia vizinha onde também se celebra o S. Sebastião, conflito este que se desenvolveu para o foro judicial e que ainda não teve desfecho).
Que fomos fazer a Cerdedo neste dia 20 de Janeiro, eu, minha esposa, o Rogério Borralheiro e sua esposa, o António Castanheira, o Carlos Couto e o Arnaldo Sanches? Ver a cerimónia festiva do S. Sebastião porque já há muitos anos que lá vamos neste dia. Este ano a cerimónia teve uma «apropriação» exterior muito singular: o Dr. Nunes Liberato descobriu um antepassado natural de Cerdedo nas suas raízes genealógicas, acto singular que desencadeou, por relações de amizade e de política municipal, o convite que lhe fez a presidência do município de Boticas para visitar esta freguesia. O facto de o convite se ter concretizado nesta ocasião festiva de singular significado para a população local ultrapassa o âmbito desta nota, a qual apenas pretende registar isto mesmo: como é que nós, que nos podemos considerar um pequeno grupo de estudo das tradições culturais e do desenvolvimento local, nos sentimos em relação aos factos e aos outros, quando somos apanhados num cruzamento de interesses e de estratégias dos sujeitos que precisam dos ritos e dos mitos para as funções da representação e da visibilidade sociais. Neste cumprimento do rito de S. Sebastião em Cerdedo pontuam os seguintes momentos: celebração da missa, procissão até à casa onde se distribui a mezinha de S. Sebastião, bênção do pão, da carne e do vinho que vão ser distribuídos ou leiloados, refeição comunitária do pão, da carne e do vinho e distribuição dos «carolos de pão» e da carne pelas pessoas presentes, dádiva de esmolas, leilão das broas de pão e das carnes de porco. Desde há dois anos, estes momentos distribuem-se entre a igreja ou capela e a sede da Junta de Freguesia, edificação que recebeu obras para os actos de cozer o pão, guardar os víveres e centralizar a refeição comunitária, porque todos os anos passados desde que nós lá vamos e muitos outros em que se inscrevem as memórias da festa, a organização do rito centralizava-se na casa do lavrador que assumia a festa, rodando esta, anualmente, de casa em casa, por princípio. A missa ocorria pelo cedo, cerca das nove horas e por volta das 11.00 horas tudo estava terminado. Este ano a missa teve marcação às 10.00 horas, aconteceu quando chegaram as «autoridades» e tudo se terá consumado já para lá das 13.00, ainda que nós já lá não estivéssemos, pois saímos às 12.30 e ainda se ia desenrolar o leilão. Vou deixar assim o texto e agora publicarei o que os meus colegas também forem escrevendo.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Nos anos dos amigos

Marcas de viagem

falas da tendência para a fuga
tratas dessa ruga
que te queima a pele
tens a perspectiva de regresso
contra o abcesso
que te acirra o fel

dobras de carícias e brocados
colhes os recados
com um tom fiel
sentes a rodagem dos tecidos
guardas nos ouvidos
lento carrossel

sabes que o excesso
te madruga
contas os cuidados
incontidos
sonhas um progresso
que te iluda
queres novos sentidos

os dias vão ficando minguados
e os olhos festejados
mais humedecidos

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Em memória do Sr. João da Zirinha do Barraco

(Foto de António Manuel Machado, por telemóvel: vista sobre o Douro de S. Leonardo de Galafura)

Quando morrem os velhos, nós ficamos mais velhos também. E digo velho com esta intenção de pedir ao sol uma provável origem etimológica da palavra: vel quererá referir o sol em língua ugarítica, como explica Moisés Espírito Santo, de quem tenho a honra de me considerar discípulo, que fui seu aluno, por ele me entusiasmar a procurar as novidades nas coisas mais antigas que for achando. E assim faço agora, que o ano velho se foi também, rico em experiências, rico em problemas, rico em ilusões, deixando lugar a este ano novo, já prenunciador de tudo quanto o possa tornar imprevisível. É precisamente de previsões que os novos não gostam, dispostos ao improviso contínuo das novidades, nem gostam de cautelas ou de recomendações. Mas o passar dos anos vai-nos dizendo que olhar para trás ajuda a olhar para a frente. Morreu o ano velho e morreu o velho amigo senhor João, o tocador de reque-reque do grupo Etnográfico de Palmeira, a presença completa da humildade enquanto pessoa, o homem de total disponibilidade para os outros naquilo que as suas forças permitissem, porque de vontade própria nunca via entraves às tarefas que obrigassem a vida a seguir um rumo. Morreu o senhor João da Zirinha do Barraco, assim era a nomeada deste homem bom, que eu conheci tarde, mas em hora bendita. Pode lá haver mais humilde nomeada para um homem que toda a vida trabalhou a terra e fez do trabalho a jornal a sua nobreza de vida? A cultura popular deixa-nos as palavras na sua crueza de ironia, mas na sua plenitude de expressão: ser o homem conhecido pela mulher que esposou e serem ambos referidos a um presépio da natureza de um barraco, eis uma origem humílima desta nossa urbanidade contemporânea. E agora ter ouvido dele próprio a narração orgulhosa da sua história de vida, e agora ter recebido dele próprio uma mão cheia das avelãs que ele cultivou e colheu no quintal de seu barraco, e agora tê-lo visto alguns anos aplicado a esse instrumentar rítmico das cantigas e danças que tão orgulhosamente apresentámos como marcas de nossa identidade, é sempre ter presente na razão e no coração uma nascente desse valor humano que é a humildade, não a resignação nem a desistência, mas a capacidade de nos estimarmos como somos e de termos orgulho em nós próprios. O reque-reque é um instrumento percutivo de persistência, de regularidade e de regularização do ritmo, mas é também o instrumento popular mais privilegiado para a invenção de formas e para a ironia e para a sátira de tipos e ofícios, por isso requer quem o estime e quem lhe sinta o orgulho de ser tão preciso na tocata como os instrumentos fazedores da melodia. E o senhor João vivia essa missão cultural do instrumento, com a mesma humildade de vida e de trabalho.
Quando me vejo aqui da escola a reflectir sobre as complexas voltas e reviravoltas que a vida dá, não poderia ter recebido maior motivação, para desejar que o novo ano seja enfrentado por este valor da humildade, por este valor que é o contrário da soberba e da basófia, por este valor que é a raiz da honra e da dignidade. Paz à sua alma e louvor ao seu exemplo. E o futuro seguirá por esta via que é a de ser encarado como problema a resolver pelo trabalho persistente e regular, com uma marcação de ritmo que se adapte às suas voltas, com um desejo experimentado de improviso para os seus contratempos. Hoje, que sentimos no ar esta vontade urgente de tudo simplificar e abreviar, aceitemos a necessidade do treino dos pequenos gestos, aceitemos a necessidade do ritmo regular nas mais breves situações. Simplificar e abreviar não é saltar por cima, não é passar ao largo ou passar à frente. Se compete à escola algum papel de inovação e de mudança, compete-lhe também ser um lugar de estudo das memórias que o tempo vai acumulando. Os anos são afinal como nós próprios: o novo tudo quer para si como sonho e como expectativa, o velho tudo mostra em si como caso e circunstância. A escola pode encantar-se com a improvisação acelerada dos novos, mas deve igualmente encantar-se com a reprodução criadora dos mais velhos. A escola pode tomar para si o horizonte laboratorial de genes transformistas, mas deve aceitar também como sua reserva o encanto rústico das avelãs colhidas no quintal de ao pé da porta.
Quero comunicar à esposa e aos filhos e netos do senhor João, bem como à Associação Recreativa e Cultural de Palmeira, na pessoa colectiva do seu Grupo Folclórico e Etnográfico, as minhas condolências e as de minha esposa, partilhando os valores da humildade e da dedicação às causas em que todos nos envolvemos no dia-a-dia.