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domingo, dezembro 30, 2007

Próximos do ano novo

A fotografia foi tirada em Moscoso, Cabeceiras de Basto, já no limite deste concelho e a tocar nos limites de outros, Boticas e Montalegre. Fomos lá para almoçar no «Nariz do Mundo», o cozido e o cabrito, com mesa posta em hora marcada, para celebrarmos o 49º aniversário do casamento da Maria Augusta com o Guilherme, a segunda e o terceiro a contar da esquerda, ambos professores aposentados, com filhos criados e netos em crescimento fulgurante. O primeiro à esquerda é o Manuel Duarte, de Lamego, professor também aposentado, depois, o quarto, sou eu e à minha frente a Ana Sofia, filha do Manuel, farmacêutica estagiária em Lamego, aniversariante de 24 primaveras neste mesmo dia; logo ao meu lado está a Tininha minha mulher, ao seu lado esquerdo a Henriqueta, também professora aposentada, mulher do Manuel e mãe da Ana Sofia; à frente da Henriqueta estão a Ana e o Zé Carlos, mãe e filho, ele nosso afilhado de baptismo; atrás está o casalinho «suiço» de gestores profissionais de uma multinacional, o João e a Eliana, a bem dizer ainda casadinhos de fresco, e o João Dias, marido da Ana, pai do João e do Zé, sogro da Eliana, professor também aposentado, embora ao serviço no ensino particular. O que temos em comum é muito, em termos de trabalho, de conversa e de relações sociais, e quase somos uma família: eu, o João, o Manuel e o Guilherme, fomos colegas de estágio pedagógico na Escola Diogo Cão, em Vila Real, no ano lectivo de 1976/77; nesse mesmo ano lectivo a Ana deu à luz o João Miguel. Quando nasceu o José Carlos eu e minha mulher fomos convidados para seus padrinhos de baptismo. O acto que nos juntou neste lugar foi o de metermos o nariz na vida uns dos outros, ali bem perto de um promontório que está entre ribeiros e que tem a forma de nariz, que depois disseram ser o do mundo, dada a centralidade deste lugar. O Guilherme e a Maria Augusta estão casados há 49 anos, motivo mais que justo para nos sentirmos orgulhosos de uma amizade e de um convívio que se estabeleceram entre nós quando eles já estavam a entrar na maioridade nupcial, ou seja, quando já contavam 18 anos de casados e já tinham os filhos que hoje têm: o Joaquim, o Duarte e o João, agora todos casados e com filhos. O filho João, que não está na fotografia porque estava atrás da máquina, foi o organizador do encontro, o Duarte compareceu ao almoço e o Joaquim não pôde estar presente, mas foi como se estivesse. De lá para cá, depois de um estágio no 1º grupo de docência do então ensino preparatório, cimentou-se uma regularidade de presença e de cohabitação reflexiva, sobretudo entre nós os quatro, mas também com mais duas professoras que foram nossas orientadoras, a Fátima Picão e a Helena Torres de Deus, ambas residentes em Vila Real, a primeira já aposentada e a segunda ainda em actividade. Escusado será dizer que os assuntos da escola e da educação continuam a preencher a nossa agenda, mas agora com toda a acumulação de práticas culturais, agrícolas, económicas, políticas e recreativas que vamos vivendo. O Guilherme tem quinta na Faia, Arco de Baúlhe, com produção de vinho, de cerejas, enfim, de tudo quanto é horta e sustento de casa. Não foi pela abundância do serviço de restaurante que ali nos juntámos, foi pelo ar livre, pelas alturas, pela provocação da paisagem, pelo devaneio das memórias, pelo prazer da partilha humana num rincão de natureza que é tanto um apelo ao enraizamento como um hino aos desafios de andarilhos. E que bem se espalhou no monte, porventura devido à força das eólicas, aquele cheirinho de globalização intensiva que os dois gestores da multinacional revelaram nas carícias!

sábado, dezembro 22, 2007

O novo modelo de gestão das escolas

Vamos finalmente ficar em minoria, vamos finalmente ficar livres para fazermos o que mais nos interessa: ensinar os alunos, viver com eles a construção dos saberes. Só é pena que ainda se conserve na cabeça dos governantes essa ideia peregrina de que tem de ser um professor a gerir a escola! Que pena. Depois de descobrirem que os professores devem ficar em minoria no conselho geral, esqueceram-se de aplicar a dedução aos conselhos executivos. Foi pena! Só espero que ninguém lhes estrague a festa. É agora a nossa vez de perguntarmos como é que querem as coisas, é agora a nossa vez de pormos os membros da comunidade a esclarecer-nos as dúvidas. E quanto à avaliação? Ó colegas, nós devemos entregar todos os nossos dados aos pais ou aos membros da comunidade que não sejam docentes e deixá-los decidir a nota para cada aluno. Finalmente nós vamos poder fazer o que melhor sabemos. Os de fora que digam como querem. Mas por que carga de água se levou tanto tempo a descobrir este ovo?

quarta-feira, dezembro 19, 2007

Coisas que não mudam como a gente quer

Dizer que há hoje formas de comunicação mais rápidas, instantâneas, pois sim, mas que mais? São como as lentas do tempo de antes destas, só as usa quem quer e quando quer. Se antes se escrevia, havia quem não respondesse, se ontem se telefonava, havia quem não respondesse , se hoje se manda um email, há quem não responda. E mesmo indo pessoalmente aos lugares, há quem mande dizer que não está. E até passando ao lado, há quem não veja e nem sinta.

Por que mandamentos da lei dos homens se fizeram os mais novitos, estes que estão entre os 10 e os 15, tão barulhentos e indisciplinados? Quem lhes ensinou a entrar para uma sala todos ao magote e a espremerem-se no arco da porta? Quem lhes ensinou a pedir ao professor que saia da frente do quadro quando o professor está a realizar o acto de escrita no mesmo? Quem lhes pediu para deitarem ao chão tudo o que não querem? Quem os habituou ao tumulto da palavra inc? Quem os mergulhou no rio do esquecimento?

Fui eu? ....................................................................................................................... Às tantas!

segunda-feira, dezembro 17, 2007

Considerações sobre os dias menos felizes

Ceia de Natal na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro em Braga

A imagem é de antes, mas ilustra a ideia geral do que pretendo dizer: somos menos e cada vez mais numa perspectiva de curiosidade sobre quem pode estar a chegar. Porque, apesar de tudo, achamos que alguém vai chegar, pensamos que é quase certo, mais tarde ou mais cedo, chegar alguém. Estaremos todos mais velhos e os novos não aparecem ou estão-se a demorar. A Casa também não pode mudar para a gaiteirice das novidades, ainda que o quisesse fazer, porque os recursos são muito limitados. Mas resiste-se e este movimento de resistência precisa de persistências. A Ceia de Natal foi um desses momentos. Éramos 33, crescemos até aos 38 e fizemos a ceia. E lá mostrámos os nossos modos de ser e de estar: curiosos, observadores do que se come e bebe, conversadores, pegulhentos e impliquentos nos apartes, corrosivos em relação aos ausentes, perdoadores dos esquecidos, enfim, de bem com todos. Por muitos anos que tenhamos de cidade, o melhor e o pior de nós é como água nos campos, corre para lá e rega. Este ano encomendámos as batatas com o bacalhau ao restaurante vizinho, não tivemos quem cozinhasse, desculpámo-nos com a idade e com as dores de costas e com o sermos poucos, mas sentimos a falta dos cuidados que só temos quando as panelas nos queimam os dedos. Nos outros dias, a sueca ocupa as mesas e nem sempre enche as disponíveis. Os panos verdes estão a precisar de arejo.

Actuações do Grupo Folclórico - Fomos no dia 8 de Dezembro a Barrada, Reguengos de Monsaraz, Évora. Pelo terceiro ano, com intervenção na missa, na procissão e no baile. Este ano levámos um canto «alentejano» e resolvemos adaptá-lo, mas saiu-nos apressado e nós que o cantámos lento, lento, O padre, a seguir, entoou-o à moda da terra e deu-se mal com a nossa pressa. A lentidão até como andamento musical precisa de passar pelo corpo para sair na voz, precisa de muita vida, fora os ensaios. Valeu pela experiência da adaptação, coisa de somenos, mas significativa sob o ponto de vista cultural e religioso. Um Grupo precisa de cantares ou então repete os que sabe. É suposto que os repita, porque é suposto que o repertório de um Grupo Folclórico seja limitado. Mas é suposto, quando a memória de três anos se parece com a de três dias, que alguma coisa se desloque e é aqui que pode estar a graça. A tempo a encontrarei. Em Barrada vive-se a festa com um prazer de comunidade. A aldeia é pequena e parece não ter a gente que faz a missa ou a procissão, mas dá-se o caso que cresce para lá dos seus limites e o povo vê-se. Depois sume-se outra vez e volta à noite para o baile. Os novos são poucos, mas os mais velhos são entusiasmados. É mais um espelho do que somos e de como estamos, mas a Banda dos Bombeiros do Alvito tem muitos jovens, ensaia-se com arranjos de novidade e empenha-se. A comida foi de encher e o chá de limão esteve a queimar.

Outras intervenções: leituras e histórias - Voltar a Torga implica mergulhar no nosso presente. Andei por escolas a recontar os contos, alguns, e convenci-me do que já estava certo: requer-se uma aproximação de Torga ao imaginário contemporâneo, que tem os mesmos sarilhos e problemas do tempo dele, agora com outras exigências de luz: ler é interpretar e interpretar é recriar e recriar é ouvir a linguagem: as palavras de Torga requerem a semântica dos dias que passam. Aproximo Torga de Tarantino e acho que resulta: há em Torga a mesma urgência de compreneder a violência social, há em Torga um apelo cinéfilo ao fluir dos problemas humanos, há em Torga uma tipificação metafórica de casos humanos. Aproximo os problemas de hoje aos que Torga encheu de narratividade: leiam o repouso e o caçador e o Natal e digam-me onde é que se pode meter a violência urbana, a gestão dos afectos e os caminhos dos sem-abrigo, se as palavras de Torga não forem alavanca de serviço? Problematizar Torga sem problematizar o que vemos, ouvimos e lemos e não podemos ignorar, é entediar a literatura!

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Um assunto de consoada














(Fotografia de Miguel Louro, da série Sente-se. É um banco nos Jardins de Belém, ali na Praça do Império, em frente aos Jerónimos. Um banco propício)

Esta primeira quinzena de Dezembro trouxe-nos mais que falar, foi prenda de Natal que nos chegou antecipadamente, oferecida de mão beijada pelo senhor Primeiro-Ministro, em sede de Parlamento, mas levitada pelos meios da comunicação social para todo país, país que ficou a saber que as escolas vão passar a ter lideranças fortes, personalizadas, sujeitas ao escrutínio de um corpo eleitoral formado pelas forças vivas da comunidade escolar, professores e pais, certamente também alunos e funcionários, mais que certo também os representantes das forças económicas e culturais e autárquicas e espirituais, que todos são bem precisos para dar ao acto da candidatura e ao acto da escolha um ritual de participação inusitada, de esperança no futuro. Vamos passar a ter nas escolas uma liderança com programa, com currículo, com perfil, com definição de objectivos, alguém que se candidata para poder escolher livremente uma equipa de trabalho, alguém que se candidata a um poder e a um salário que o farão ser exigente de compromissos e de resultados. Ah, Jorge, anda agora ver o meu país de marinheiros que finalmente vai sair para o mar com capitão a bordo! É desta surpresa que se faz espectáculo, é deste prometer que se faz colheita, é deste falar que se faz conversa. Já dizem uns que vai ser uma política de regresso à autoridade, de regresso a compadrios subliminares, de regresso a jogadas de bastidores, de regresso a tempos de autoritarismo policial e policidado. Há sempre quem veja o velho onde aparece o novo e há sempre quem veja o medo antes de ver a vinha. Já dizem outros que agora é que vai ser a mudança que não foi, mas que esteve quase para ser. Já dizem outros que vai ficar tudo na mesma e eu sou desses. Tem a democracia parido bons líderes como os tem dado à luz com destravo de senso e de jeito, tem a democracia de uns feito o desconsolo de outros, tem havido lideranças para todos os gostos e feitios. A conclusão que se tem tirado é que o sistema educativo custa a mobilizar para melhores resultados, mas que mesmo assim tem havido progressos em algumas áreas. Aliás quando é para discutir resultados esquecem-se as lideranças e quando é para falar destas esquecem-se aqueles. Todavia, governar é reformar e a reformar é que se ganha vida e se faz ganhar a quem precisa de viver. Recordo-me da minha vida escolar no ensino primário: eu via chegar a professora e depois o professor e sempre pensava que eles eram senhores do seu próprio nariz, que estavam ali para ensinar e que eram eles que mandavam neles e que toda a vida da escola começava ali e terminava ali, certamente com um salário que alguém lhes pagaria, mas que eu nunca vira entregar em mão. Mais tarde soube que havia um inspector na sede do concelho e que a professora e depois o professor tinham que falar com ele de vez em quando. Esta organicidade de gestão, com director primeiro, depois com conselho directivo, depois com comissão de gestão, depois com comissão instaladora, depois com direcção executiva, qualquer dia com líder, tem sido uma aprendizagem de regime, uma prática da democracia. Assim vai continuar, não tenho dúvidas, que o povo não se cala e a falar é que a gente se entende e depois há sempre quem precise de governar a vida, sem precisar de se governar com a dos outros, assim o espero. Mas se eu continuasse a fazer do sistema educativo a mesma ideia que tive dele no ensino primário, que os professores estão na escola para dar aulas e que o salário se lhes põe na conta, porque também nunca o recebi em mão, estou que não seria um professor diferente do que sou, provavelmente até viveria mais concentrado em mim próprio e na tarefa de ensinar. Ou seja, fruto que também colhi na minha vivência democrática, cada vez separo mais as tarefas de quem ensina das tarefas de quem manda ou de quem gere a escola. Fico então mais contente com esta temática que o Primeiro-Ministro José Sócrates me ofereceu em vésperas de Natal para ter conversa na noite de consoada? Nem me aquenta nem arrefenta, para usar um coloquialismo infantil, ou deturpado propositadamente para o parecer, quando a ingenuidade se quer sobrepor à crítica mais consistente. Experimentem lá, se não der volta-se a reformar a ideia e volta-se a propor outra para debate, em sede parlamentar e de preferência em véspera de Natal, para arreigar nas escolas esta ideia tão linda de prenda no sapatinho.

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Boas Festas e Bom Ano Novo








Outra Infância

Quer seja na abundância descarada,

Quer seja na carência atribulada,

O Natal expõe-se,

Tem sempre um rosto, uma expressão, um som.

Quer passe intensa a febre construtiva,

Quer fique a pele em causa restritiva,

O Natal impõe-se,

Tem sempre um ventre, um coração, um dom.

Sobrem lixos ou luxos dos ofícios,

Variem os prazeres ou os sacrifícios,

O Natal provoca,

Implica a história, o caso, a circunstância.

Por entre guerras loucas de razão,

Por sobre reis e réus de opinião,

O Natal convoca

A nossa humanidade a Outra Infância.

Com os votos de Boas Festas e Próspero Ano Novo.

José Machado e Albertina Fernandes

Braga, 2007

quinta-feira, novembro 29, 2007

Indisciplina e aprendizagem

Volto à ideia da desconexão da aprendizagem com a disciplina, o que significa dizer que volto a uma questão que a Sra Ministra deixou pendurada na sua grande entrevista na TV há uns dias atrás. O problema que ela formulou foi o de se separarem as questões do comportamento e da assiduidade das questões da aprendizagem, dito por outras palavras, numa frase disjuntiva, trata-se de saber e de verificar se o aluno sabe ou não sabe, independentemente do modo como se comporta na escola.

Como se sabe o comportamento do aluno tem várias dimensões de observação, as mais importantes das quais são: a assiduidade de frequência, a pontualidade, a participação em aula, o cumprimento dos trabalhos de casa ou de outras tarefas escolares pós-aula, o cumprimento das regras escolares nos espaços e no horário escolares. Destas dimensões, vistas sob o ponto de vista comportamental, aquela que mais de perto se relaciona com as situações de aprendizagem, é a participação nas aulas, entendendo-se por participação a prática de comportamentos de civismo e de colaboração: ser educado, respeitar os colegas, obedecer aos professores, falar na sua vez, ser disciplinado em termos verbais, gestuais e corporais. Estou a falar de comportamentos em si, não estou a falar de comportamentos mobilizados para a aprendizagem.

Uma pergunta que se pode colocar com legitimidade é esta: mas haverá alunos que sejam indisciplinados, mal comportados e que saibam? Ou seja, haverá alunos que faltam às aulas, que não justificam a impontualidade, que brincam e falam a despropósito, que desobedecem aos professores, e que sabem? Nunca os vi, mas aceito que os haja por aí. De um modo geral tenho constatado que aluno indisciplinado é aluno que não sabe, ou que sabe o mínimo, sempre em gestão calculista da sua posição escolar. Também tenho constatado que o aluno que não quer aprender quanto mais se faz por ele, mais ele nos manda à fava e mais indisciplinado se torna.

Os alunos são descontínuos, isto é, têm momentos melhores e momentos piores, nem todos são uns santinhos, nem importa que o sejam, nem todos são sempre cidadãos exemplares, logo, aprendem depressa a tirar partido dos estilos e das gramáticas docentes e vão conjugando o comportamento e a aprendizagem com um interesse manifesto de afirmação, para o bem e para o mal. Ou seja, por outras palavras, eu tenho a prática da impossibilidade de separarmos as águas da disciplina e da aprendizagem, mas se o tiver de fazer julgo que sei por onde se deve ir:

a) De imediato, separando o comportamento disciplinar da aprendizagem, importa que a sala de aula volte a ser, e só, o espaço daqueles que querem aprender, logo, a prática de expulsão da sala dos insurrectos ou incumpridores deve implementar-se automaticamente;

b) Depois, separando o comportamento disciplinar da aprendizagem, importa que a escala de avaliação possa reflectir a diferença: não é esta escala colectivista de 1 a 5, ou de 2 a 5, que dá conta das distinções efectivas entre quem sabe e quem não quer saber;

c) Depois há que introduzir práticas pedagógicas de intensidade sobre a aprendizagem, e voltamos aos exames como chave da questão, porque é ainda aos testes e aos exames que todos nos referimos quando falamos num meio prático de saber se se sabe ou não se sabe alguma coisa;

d) A seguir, bom a seguir, tem de se mudar a Lei de Bases (e a Constituição) e onde se diz ensino básico universal, obrigatório e gratuito, tem de se dizer ensino livre, pessoal e com custos para o consumidor.

Mas perguntarão: a escola deve ou não deve recuperar os alunos indisciplinados? Deve e pode fazê-lo e fá-lo, é este o sistema que praticamos, mas sem separar o comportamento disciplinar da aprendizagem, porque um é a muleta do outro. Essa ideia de recuperar alunos indisciplinados com programas específicos, ou seja, dentro de programas que prevêem apenas aspectos comportamentais, não funciona, é como querer recuperar um trabalhador sem o pôr a trabalhar.

sexta-feira, novembro 23, 2007

A graça dos frutos e as palavras do amigo

Por me achar com uma infecção de nariz e garganta, o que muito me deita abaixo, recebi do amigo Rogério Borralheiro palavras de consolação, para além de bem escritas, susceptíveis de revelar preocupações comuns, por isso aqui as fixo, ao lado das primícias da sua «leira» de Crespos, onde agora construiu casa e faz trabalho agrícola de monta, duas pêras e uma maçã que, devendo ser para os da casa, foram partilhadas connosco por fotografia de email.

"Aos doentes fazia-se a vi(gi)ta que, para além da presença reconfortante, desejava-se, do próprio, constava de acúcar, uma bola de queijo, café (cevada) , uma galinha e o mais que a bolsa do visitante permitisse. Agora, resolve-se com uma mensagem e muita imaginação para construir o "ar" do doente. Está mesmo doente?, muito ou pouco ou nada?
Caro amigo espero que melhores e te recomponhas pois fazes falta, mas devo
dizer-te que até ausente serves para mobilizar as tuas hostes. O ensaio, ontem, converteu-se num genuino esforço de superar a tua falha, só que, tal como é tradição, o trono sem rei por muitos, quase todos, é disputado. Até se pensou em instituir a República, pugnou o Patrício. O Luís Silva quase que conseguia substituir-te; o Henrique fez, também quase na perfeição, o 1.2.3 ... 1.2.3... "Ó ilusão, fantasia" ... saiu quase perfeito; a Manuela levantou os dedos e pontuou os quatro andamentos do Senhor Freitas meticulosamente; o Aurélio modelou os devaneios do Prata, mantendo-o por perto da melodia que se desejava; o Gomes, esse exigiu a repetição da dança "O Nosso Vira" porque é preciso que saia na perfeição.
Notas importantes: Em Janeiro, a 12, Sábado, é a Feira do Fumeiro de
Montalegre para a qual estás convidado tu e eu e o Castanheira se o desejar, mais as mulheres, óbvio, para estarmos com o Cascais. Este ano não há jantar de Banco. No dia 19, uma semana depois, estás de novo convidadao para estarmos em Montalegre com o Cascais. Nota que isto inclui, claro e sempre, a Tininha. No dia seguinte é o S. Sebastião. Uma semana depois temos a Feira de Boticas. Organiza-te e organiza para que possas cumprir estas obrigações sociais.
Hoje vou a Bragança apresentar as Memórias, estou de saída.
Já agora, será que haverá músicas, há certamente, sobre as Invasões? Tu que gostas de adequar ao tempo e ao momento a música talvez fosse oportuno aprender músicas que evoquem a Guerra Peninsular. Um abraço."

domingo, novembro 18, 2007

Trabalho em curso: escrever sobre o TC

Volto àquela cena da levitação: num dia em que lá entrei estava um caterpiller no fundo, a luz do poente substituíra os holofotes, os camiões largavam bafaradas e toda a profundidade do buraco era um sumidoiro de esperanças. Pareceu-me a caverna de Platão. Atirei o caso à procura de esqueletos, uma espécie de remoque de consciência por quantos brácaros já se teriam maltratado em outros lugares. Ali apareceria de facto uma pedra romana. Escavava-se fundo onde antes se terão disposto as campas ou taburnos das freiras e foi em taburnos que se concebeu a arena do teatro, ou do circo. Manteve-se ali uma organização de cemitério, em estrados ou patamares suaves. Voltava-se agora ao gesto dos coveiros, abrir mais fundo, procurar para além de. Se eu alguma vez pensara que se desceria ali ao reino dos mortos! Depois aprendi a linguagem do recalçamento, maravilhei-me com as micro-estacas e as ancoragens, dei-me ao trabalho do espanto: afinal andavam por ali de mãos dadas várias tecnologias de ponta que só agora tinham convergido numa obra só. Aquela congregação de saberes ficou-me nos ouvidos. Houvera ali uma violência excessiva que se apaziguava paulatinamente à medida que cresciam em movimento contrário, de cima para baixo, aqueles painéis de cimento armado que haviam de pegar ao colo em todo o edificado esventrado. Aquelas duas mulheres tiveram a paciência nos limites. Se uma vira e outra ouvira, a pouco e pouco se restabeleceram, sem nunca perderem aquele conforto de nudez propiciadora. Bem estiveram nessa função de carregar a força do desejo até ao limite da ruptura. E bem lho terão agradecido quantos ali passaram a trabalhar ou a mandar, a fazer e a desfazer, a pensar e a penar: arquitectos, engenheiros, empreiteiros, fiscais e inspectores, medidores, orçamentistas, desenhadores, armadores de ferro, cofradores, carpinteiros, manobradores de máquinas, trolhas, serventes, estocadores, serralheiros, electricistas, picheleiros, pintores, estofadores, douradores, fingidores, restauradores, limpadores e outros mais.

sábado, novembro 03, 2007

Em Carvalho de Rei: as idades da música

Carvalho de Rei, concelho de Amarante, na serra da Aboboreira, dia 30 de Outubro de 2007, Terça-feira, a partir das 14.00 horas. Fui lá para entrevistar uns informadores da Chula de Carvalho de Rei. O Sr. Eduardo Vasconcelos, de Baião, produtor de vinho que encontrara no Congresso sobre o Vinho Verde realizado em 19, 20 e 21 de Outubro na Maia, no Porto, em Penafiel e em Baião, foi o preparador e o cicerone deste encontro. A minha curiosidade exprimiu-se em pouco: saber de tocadores de chula nas terras do Vinho Verde em paisagem já duriense, para um possível trabalho sobre os sons e as gentes, no âmbito da minha ligação ao GEHVID como investigador. Aproveitei uma ida ao Hospital de Sto António com minha esposa e da parte da tarde marquei encontro na aldeia, depois de almoçar no Varanda da Serra, na estrada de Amarante para a Régua, já muito perto do território da freguesia de Carvalho de Rei. Virei logo à frente, onde havia uma placa a indicar «aldeias preservadas» e subi. Cheguei ao largo e fotografei o espigueiro e as medas de milho. Um senhor aproximou-se e meteu conversa: fiquei a saber que ele acabava de convocar para as 15.00 da tarde os músicos da tocata, da chulada de Carvalho de Rei, porque «vinha um senhor de Braga para os ouvir»: era eu, e eu só pensara que ia falar com alguém que conhecera os músicos, que os ouvira, que saberia deles um pouco mais que o meu informador. Chegou logo a seguir o Sr. Eduardo Vasconcelos. Fomos dar uma volta pela aldeia: o rural na plenitude das suas marcas: campos a rodear as casas, casas de pedra ligadas aos campos, às hortas, um couval imponente, uma rapariga a trabalhar, uma cara a espreitar da porta, uma senhora de idade sentada na berma, casas e ruas e quelhas antigas, muito escarificadas pelo tempo, fechadas quase todas, a casa da venda também fechada (abria só de manhã), ruas estreitas e tortuosas, uma sensação de solidão e de isolamento. Metemos à conversa com um senhor, Bernardo de seu nome, Bernardo Ribeiro, 80 anos feitos em Março, tocador de rabeca chuleira, que a tirara do estojo preto onde a guardava embrulhada em jornais, com arames a prender a caixa, arco ainda em boas condições. Logo a seguir chegou o senhor Barbosa, 90 anos e 4 meses, com o violão a tiracolo, sem uma corda, mas municiado dela, a prima, que ajudei a colocar: violão rachado, cavalete aparafusado, corda ou guita a segurar a palheta percutiva, feita de osso, travessão a requerer cuidados no aperto, afinação a precisar de ajuste, funcional. Conversámos, gravei os sons possíveis, fiz umas fotografias com o telemóvel, falhei um pequeno video, consegui outro mais pequenino. A Tininha sentiu arrepios quando ouviu o som da rabeca, saiu com um sentimento de angústia e de tristeza, não esperava aquela sensação de perda, que nos vem quando sentimos que estamos a ouvir um som que já foi pleno de vigor e de ritmo e agora o sentimos aproximado, desculpado pela idade. Os músicos, dois, que os outros já se foram, viveram intensamente os seus instrumentos e a sua música, desde a juventude dos 18 ou 19 anos, com todo o tipo de actuações e em todos os tipos de lugar ou de palco, em Espanha e até na França, sons que devem ainda andar por aí em cassetes e em discos, sempre assumidos como próprios, como identitários da terra e deles mesmos. E ali estavam os dois a executar as melodias de chulas e modas, numa entrega ao momento, desculpando-se, mas assumindo o som com a capacidade possível, fiel à memória, próximos e convictos da demonstração. Senti-me recompensado. Deus lhes dê vida e saúde e me permita um agradecimento tão nobre quanto a lição que pude receber.

sexta-feira, novembro 02, 2007

Ouvi-a e penso que

Ouvi ontem, dia 1 de Novembro, na TV em «grande entrevista», a Senhora Ministra da Educação. Penso que ela continua a revelar pouco à vontade com a comunicação social e que continua a dificultar-nos o entendimento das suas políticas, quer em termos de simpatia exterior, quer em termos de assertividade discursiva, quer em termos de relação com os parceiros sociais. De qualquer maneira, de quanto disse e de como o disse, face ao estilo do questionário e da questionadora, saliento:
a) A questão de querer passar para as escolas públicas a regulamentação da assiduidade e da disciplina. O país é pequeno e a escola pública fala muitas línguas, pelo que a autonomia aparece como solução de quem não sabe o que se deve fazer ou o que se pode fazer! Vamos então ver até onde irá a panóplia das soluções locais, se é que vai poder haver soluções locais, do género, esta escola faz assim e aquela faz assado, esta expulsa os faltosos, aquela obriga-os a exames, esta impõe-lhes multas, aquela desculpa-os.
b) A questão de querer desconectar a disciplina comportamental da avaliação, questão que se prende com a anterior, mas que pode ter uma visão global. Será possível? E se for possível é desejável? Seja, admito, mas a ser possível e desejável só com exames e então tudo bem: o aluno falta, que se prepare em casa para exames; o aluno porta-se mal e não modifica os seus comportamentos, que se prepare para exames. De outra forma, a burocracia ocupará o território com silvas e matos e ratos e outros parasitas de lixeira.
c) A questão dos rankings. Se é a Ministra quem neles não se inspira para tomar quaisquer decisões de política educativa, quem sou eu para lhes dar importância. Mas que não os aproveite para falar como falou do ensino particular: o despeito e o jacobinismo quando se associam fazem má figura.
d) A questão do ensino profissional em escolas públicas ditas «normais», ou seja, a inclusão do específico em regime de frequência gratuita, universal e obrigatória: persiste numa ideia que é de reduzida ou nula eficácia: quanto mais e melhor for qualificada uma escola, para a especificidade da sua oferta educativa, melhor funcionará; com esta inclusão de cefs e outros cursos congéneres na escola básica, não se vai a lado nenhum, mas se ela acredita, a fé a leve.
e) A questão das relações de trabalho preferenciais com os conselhos executivos: as comunidades escolares que se previnam, mas onde faltar a presença dos parceiros sociais, a democracia sai fragilizada e o autoritarismo tende a crescer.

quarta-feira, outubro 31, 2007

Quem escolhe, sabe de si.

Sobre o escalonamento nacional das escolas em termos de resultados, se ouvi dizer à nossa Senhora Ministra que as causas da superioridade do ensino particular estariam no facto de os alunos que o frequentam serem escolhidos pelo própio, então não ando surdo e fiz bem em reagir com a mão na testa à procura de não sei quê. Com que então as escolas particulares escolhem os seus alunos e não são estes que as escolhem, com que então as escolas públicas não selecionam os alunos, mas são estes que as preferem. Os alunos que eu ensino não me escolheram, é um facto, e eu também os não escolhi, mas quando lhes pergunto porque estão nesta escola e não noutra, muito menos numa particular, respondem com tal objectividade de argumentos que fico esclarecido: estão nesta escola porque não quiseram ir para outra, estão nesta escola porque aqui se sentem bem, estão nesta escola porque a escolheram, ponto final. E não me venham com argumentos de dinheiro ou de custos: vejo aqui todas as bolsas. Vejo aqui os alunos que têm bons resultados escolares e vejo aqui os que não querem ter quaisquer resultados escolares, vejo aqui os filhos dos pais que acham a escola pública o melhor desafio educativo para os seus educandos e vejo aqui os filhos dos pais que vêem nesta escola o melhor centro ocupacional de tempos livres. Por força de lei e de grei, Senhora Ministra, terão de existir outras razões para as escolas particulares estarem à frente das escolas públicas: os currículos não podem ser os mesmos, os tempos de estudo não podem ser iguais, os métodos e as técnicas hão-de ser bem diferentes, a disciplina será outra, o empenho docente será de outro quilate, o regime de frequência e de assiduidade pesar-se-á com outras balanças, a preocupação dos pais andará por outros parâmetros. Positivamente, esta minha escola tem um rigor de construção indesmentível e não me tenho cansado de o referir: é permissiva com tudo e com todos, o currículo tem áreas não disciplinares inúteis, os tempos lectivos de 90 minutos cansam e aborrecem, o apoio educativo é consumido ao desbarato, as instalações são carenciadas, os métodos e as técnicas de avaliação não estão certificados, as tarefas de burocracia escolar ultrapassam de longe as tarefas de preparação didáctica das lições, os casos de excepção ditam as regras para o geral. Dito isto, a minha escola é como é, e assim é preferida por quem a frequenta. Podia ser melhor? Não ponho isso em causa, podia sim, mas duvido que o fosse com todos os alunos que tem, com as instalações que tem, com a organização que tem. Se não é mentira que ouvi a Senhora Ministra dizer que o insucesso escolar baixou, então também a minha escola contribuiu com alguma coisa, mas sem ser motivo para que festeje. Antes, me arreigo mais à ideia de que a minha escola cumpre o plano nacional de nunca poder estar em primeiro lugar, nem nos lugares da frente. A minha escola está bem organizada demais para ficar muitos pontos atrás das escolas particulares, simplesmente porque está concebida assim. Aceito o debate com quem quiser debater, mas não aceito debater para comparar escolas públicas e particulares, aceito debater para esclarecer porque é que uma escola pública, organizada assim como a minha, nunca chegará a lado nenhum, por mais que seja escolhida e por mais que escolha. Se não é mentira que ouvi dizer que foi aprovada legislação para desconsiderar o regime de frequência e para desconsiderar o regime de prestação de provas ou exames, então é porque se confirma ainda mais esta vontade de me transformarem em burocrata, de me anularem como professor de alguma coisa. A evidência é excessiva: queremos uma escola que não reprova os alunos, que não os obriga a qualquer regime de frequência e que os dispensa de exames. Seja. Então agora, tratemos de organizar a sociedade em função destes parâmetros e exigências: o aluno sai da escola pública e diz que a frequentou, quem quiser pede-lhe a documentação comprovativa do que lá andou a fazer e tira daí as consequências. O mesmo para as particulares. Quem escolhe quem, é que sabe mesmo o que quer! E o escalonamento nacional das escolas em função dos resultados há-de ser sempre rigoroso, como até aqui: cada um escolhe o lugar que quer no ranking. Ou agora o Estado vai fechar as escolas a partir do vigésimo primeiro lugar?

domingo, outubro 28, 2007

No País dos Verdes - os sons ajudam a beber

Trata-se de um livro produzido expressamente para o Primeiro Congresso Sobre Vinho Verde – História. Economia, Sociedade. Património (Maia, Porto, Penafiel, Baião:19-21 Outubro 2007), com criações de Aurélio de Oliveira,professor catedrático de História da Universidade do Porto, e eu próprio, mestre em Literatura e Cultura Portuguesa pela UNL, que também fiz a selecção musical.

Este livro contém a comunicação apresentada ao Congresso pelos seus autores na qualidade de membros da «Associação Cultural e Festiva “Os Sinos da Sé”», grupo dedicado à divulgação das criações musicais e coreográficas de foro tradicional e popular do País dos Verdes.


A comunicação consiste na abordagem diacrónica de algumas produções musicais populares consideradas significativas no contexto temático dos Vinhos Verdes, apresentando simultaneamente uma contextualização histórica dos movimentos culturais que fundaram a demarcação desta região vinícola, que a tomaram como fonte de inspiração na literatura e na farmacopeia e que a marcaram como território ou espaço ou paisagem singulares no conjunto das tradições populares e dos documentos ligados à história nacional e local, ao canto, à dança e à língua.


O livro é ilustrado a cores com imagens e fotografias que documentam a presença do Vinho, com relevo para imagens raras da arte sacra e da estatuária religiosa.


O corpo do texto lança novas hipóteses e interpretações (a partir da «provocação» da capa) e algumas anotações históricas sobre o temário dos vinhos. O texto poético, na sua quase totalidade inédito, junta o agradável ao jocoso, por vezes com alguma irreverência, que o tema báquico requer e exige.
Em termos musicais, o livro suscita várias leituras sobre o acumulado musical tradicional e popular e apresenta a anotação em pauta quer de melodias tradicionais recolhidas na região dos Vinhos Verdes, quer de melodias de autores ou grupos de música popular, quer de criações ou arranjos originais sobre temas específicos, valendo a pena citar a obra para coro misto a 4 vozes da autoria do compositor Joaquim Santos, elaborada expressamente para este evento e para circular doravante no repertório dos cantares religiosos dedicados a Nossa Senhora da Vinha.

Na perspectiva do repertório da Associação Cultural e Festiva «Os Sinos da Sé», este livro sugere algumas pistas de redescoberta dos sons que nos convocaram para os trabalhos e as festas, para além de avançar com a necessária redescoberta de outros sons que se tornaram demarcadores da nossa evolução social, antes e depois de Abril de 1974.

Preço: 10,00 €.

quarta-feira, outubro 24, 2007

Passageiros do comboio escolar

Volto ao blogue neste acto de me lembrar que três colegas se aposentaram da minha escola e nunca mais os vou ver na mesma carruagem do comboio: a Manuela Carreiro (CN e Mat), o Costa Gomes (Mús) e o António Macedo (Ing e Port). Conheci a Manuela em Vila Real, na Escola Diogo Cão, nas actividades do estágio pedagógico; no ano seguinte, 1979, em Braga, na Francisco Sanches, ela seria uma das fundadoras do Grupo Folclórico de Professores de Braga, do qual fez parte durante uns anos; trabalhei com ela o projecto das campanhas da Dádiva de Sangue, numa equipa de que faziam parte a Maria José Lopes, a Luísa Ivo e o Fernando Cardoso. Atenta, crítica, por vezes seca e dura, tinha o culto da coerência e da responsabilidade. Conheci o António da Costa Gomes sempre como músico, primeiro como pianista, depois como professor; vi-o sempre envolvido em projectos de animação musical e recordarei sempre como iniciativa exemplar o seu projecto d'Os Pequenos Cantores da Francisco Sanches, a formação de um grupo dedicado à interpretação de temas originais, de cuja composição se encarregou com todo o fulgor de criação. Devo-lhe quase toda a minha curiosidade em assuntos musicais, agradeço-lhe a paciência com que me ajuda e espero ainda dele muitas contribuições para o Grupo de que faço parte: já cantamos dele alguns temas originais e outros harmonizados. É um criativo, uma torrente de generosidade, um santo. O António Macedo é um combativo, com tanto de persistente como de resistente, adepto da coloquialidade, questionador, prático da disciplina e da autoridade, mas entusiasta da troca cultural. Comecei a escrever sobre eles e fui ler uns versos ao Pires Cabral, numa obrazinha poética recente que meu irmão António me sugerira como surpresa.

Retirei então desse livro de poesia «Que comboio é este», edição do Teatro de Vila Real, 2ª edição, 2007, p. 23, a seguinte passagem:

Passageiro.

Caramba,
não preciso que mo lembrem.

Não me enterrem mais
a coroa de espinhos:
já me está apertada,
fundida com o crânio quanto baste.

E pus a banda a tocar, saí para a rua, que a vontade era visitar a estação de Vila Pouca se ela ainda pudesse ser meu ponto de partida para a Régua. Pois para o mundo é que foi, com direito a banda de música na memória deste presente, como se fora a inauguração da minha linha e como se fora a recepção da minha chegada a outro lugar. Tenho do comboio uma saudade eufórica e da condição de passageiro uma liberdade resignada, de aceitação, uma condição de outra condição. E desde então vi-me passageiro entre outros, em todos os comboios que o foram e naqueles que o parecem. Desde então não desci mais de comboio algum, não obstante a ilusão de apeadeiros ou de estações demoradas. Ando de comboio nesta naturalidade de viver. De professor me vi como passageiro de comboio, espinhado até ao tutano pelo ofício. A poesia de Pires Cabral é como água.
Entrámos passageiros na idade da flor e deixámo-nos seduzir pela viagem, essa mesma ideia da viagem com destino, nesse encantamento das mudanças de estação, nessa variedade de entradas e saídas de gente, nesse encontro perturbador de lugares e de acasos.
Deixo-me conduzir por esta ideia de ser passageiro com outros e vejo-me neste comboio escolar donde alguns se vão apeando, ontem um, depois uma, agora três, qualquer dia cinco ou seis e depois eu e um dia todos. De mim sai sempre um pouco com os outros que vão à frente. Eles ficam um pouco comigo. Eles saem, melhor, mudam de comboio, se calhar apenas de carruagem, mas deixo de os ver e deixo de me ver neles. Acontece nesta condição de passageiros essa mesma comunhão de traços de família, esse mimetismo de gestos e de tiques: misturamo-nos até nos gestos e nos rostos. Fiquei mais só até me recompor, inevitavelmente seguirei sem eles. Foram passageiros incomodados e gostei deles por isso.
Volto ao livro de Pires Cabral, oportuna metáfora também sobre a escola que nos serve de comboio. E leio:

Companheiros de viagem

Comigo viajam todas as moscas,
bandos de aves, trupes de ciganos,
o papa, a miss mundo, a empregada
do shopping e os seguranças do mesmo,
o cão que ladra no terceiro andar,
o salmão que comi ao almoço.

Minto: o salmão apeou-se
na estação anterior.
Dele viaja apenas, por enquanto,
uma espécie de sombra
e depois nada.

Eu poderia substituir os sintagmas do poeta com outras entradas lexicais: livros, alunos, disciplinas, processos disciplinares, funcionários, pais, problemas, ministros, e cada uma destas poderia ser o salmão que não digeri ou a trupe, ou a miss, ou as aves, ou as moscas, ou o papa, enfim, tudo vai comigo no comboio, tudo viaja connosco neste que é escolar e que parece servir uma linha interior a outras linhas.
Aqueles meus colegas saíram há pouco, um mesmo agora e ainda se vê no cais. Vivemos juntos desde que este comboio da Sanches era só metade e quase descomposta de recursos interiores, que por fora teve sempre grandeza de aspecto. Não começámos a falar por sedução de corpo ou de estilo; aconteceu-nos primeiro o desconforto, depois a discussão, mais tarde a partilha, finalmente o respeito e a amizade. Se algum traço comum retenho deles é este mesmo: foram três paradigmas do passageiro empenhado em chegar a algum lugar, empenhado e convencido das vantagens de chegar. Eles enterraram na cabeça essa coroa de espinhos, fundiram-na com o cérebro e pensaram-se sempre na mesma condição de serem passageiros num comboio especial, de serem os passageiros condutores de outros, de serem os animadores especiais dessa viagem do conhecimento. Entrámos na flor do sonho e sustentámo-la com insucessos, nessa esperança de viajar melhor, nesse desejo de renovar o próprio comboio. Páro um pouco, abro a janela, vejo a paisagem e regresso ao banco: estes passageiros eram da tempera de levar com eles as suas tralhas, toda a bagagem lhes fazia falta no lugar, sempre cheios de bagagem e sempre de bagagens cheias. Que fossem as ciências ou a matemática, que fosse a música, que fosse o inglês ou o português, estes passageiros eram-no de bagagem completa. Com eles ia tudo à frente, debaixo de olho, ainda por cima sempre nesse cuidado permanente de acumular as novidades de estação para estação.
Quando chegou ao comboio essa moda de viajar com distracção continuada, resistiram-lhe, puseram a cera nos ouvidos: viaja-se para aprender, não se viaja para ficar ignorante em qualquer apeadeiro. E ignorar, se foi alguma vez objectivo da viagem, parece ter ficado mesmo a ser destino e nome de estação. Passageiros da resistência, bem os posso considerar assim: ciências e matemática, música, inglês e português, tinham de ser para eles carruagens com vida própria. No comboio, os passageiros determinados acabam por fazer falta aos turistas de ocasião. Páro por aqui. Vejo o revisor ao fundo. Volto a Pires Cabral:

O revisor barafusta.
Ele acha que o meu bilhete
não é válido para este comboio,
mas apenas, quando muito,
para um qualquer tranvia suburbano.

Bem fizeram, colegas, senhores passageiros, gostei de vos ver assim. Obrigado.

terça-feira, outubro 16, 2007

RFS - outra vez no ar

De cabeça erguida é que se anda bem, mas de cabeça baixa acha-se dinheiro ou vê-se a terra que se pisa, e onde se põem os pés é dever de cuidar bem, não vá aparecer um bosteiro de cão urbano e lá se vai a sola do sapato até casa ou até à escola, lugar este mais delicado para sola de sapato entrar suja, pois há mais gente a reparar, gente com pituitária analítica, inclusive para cheiros de ar, que demais para cheiros de terra. Mas é da cabeça erguida que eu quero falar neste começo de ano e não estou a conseguir levantar o cachaço. Como é que se anda de cabeça erguida em tempo que toda a gente olha para as solas dos sapatos? Como é que se cheira o ar quando o chão de baixo está empestado de licenciosidades? Como é que se anda de cabeça erguida em maré de desinvestimento na linha do horizonte? Um homem ergue um pouco a cabeça e logo a baixa, tal é o costume, ou hábito, ou vício de olhar o chão. Mesmo quando a gente começa de levantar os olhos para ver pernas e depois seguir as suas chamadas de atenção e as suas curiosidades de encaixe ou seguimento para a cintura e depois continuar a levantar os olhos até ver o antes e logo depois o rosto e baixar de novo, que não deu para sustentar sorriso ou esperança de olhar o céu. Anda uma tristeza no ar e eu não sei dar conta dela. Anda mais gente na escola, está mais velha a escola, está mais ocupada e suja e cheia e ruidosa e entupida a escola, de gente que olha o chão. Há falta de ar? Há falta de céu? Chega de metaforizar a intencionalidade de falar daquilo que não tenho, nem acho, nem vejo onde o procuro: o entusiasmo. Não há entusiasmo no chão, não o há no ar, não cheira a entusiasmo, cheira a gente, a rebanho enredilado. Dizem-me, quando olho para o chão ouço mais vezes o que não quero, que nada deu em nada, que a montanha pariu rato de pequenez acentuada: e agora sou professor titular de olhos no chão. Mas eu obrigo-me a erguê-los: levanto-os na sala, levanto-os naqueles corredores de vento e de sol e de chuva que são os cobertos de lusalite envelhecida e frágil, levanto-os no quadro que ainda me exige o braço todo, levanto os olhos para pedir aos alunos que os levantem, que os vejo sempre de olhos em baixo, de mãos metidas entre pernas, de cabeça distraída com o tampo das carteiras. Anda aqui qualquer coisa a destemperar o gosto e não é só a minha idade, que agora até me sinto bem na leveza dos assuntos repetidos e dos exemplos renovados. Anda aqui mosca varejeira, anda aqui gravidade a mais. Procura-se leveza, arejo, vontade de voar. Chega-se a professor titular e deixa-se o avião em terra? Pois mais parece. Pode ser que a rádio ajude a ganhar lanço. Mas a nossa rádio fica no rés-do-chão, ali, no piso mais fundo do Pavilhão F, num daqueles cantos onde se passeia uma freira teimosa e resistente. Até as fadas se entrincheiraram. Isto promete. Eu vou ler aos meus alunos aquela história do Italo Calvino que começou precisamente no momento em que alguém viu outro alguém a olhar para o ar, para o cocuruto de um prédio ou de uma igreja ou de um palácio ou de uma árvore ou de uma montanha. Toca a levantar a cabeça, pessoal! Eu vejo qualquer coisa acima da minha cabeça!

sexta-feira, outubro 12, 2007

Os blogues que frequento

Leio sempre que posso, e procuro poder diariamente, o abrupto de JPP, onde o cansaço é cuidadosamente aliviado pela variedade de posturas verbais e visuais, onde a repetitividade analítica sempre me surpreende e onde os textos poéticos ou narrativos paralelos são embraiadores da própria velocidade de circulação; o poesiailimitada é uma questão de treino interpretativo, é uma obrigação de informação e uma figuração da ansiedade; o farraposdeseda é uma curiosidade intensificadora do desejo de ler mais, foi pena que o autor tivesse retirado um conto e não tivesse lá posto muitos outros que escreveu; o autor, psiquiatra, é um amigo de infância que tomo por mestre de caminhos, não de os fazer ou de os indicar, mas sobretudo de os saber andar com novos fôlegos; o sacouto por ser um lugar do encantamento das ilhas e do mar, por ser um acumular de conversas intervalares. Viajo por outros, um deles de economia, participo em poucos com comentários, passo e vejo blogues como pelas ruas das cidades em que vejo tudo e não guardo nada e me lembro depois do que nem vi. Se calhar são para este mesmo jeito de ver e de ser e de estar e de andar que os blogues se fizeram. Entusiasmei os meus alunos a fazerem um blogue. Está em crescimento: aefs-6-1.blogspot.com

sábado, setembro 29, 2007

Proposições evasivas II

(Fotografia feita em S. Bartolomeu do Mar, no dia 24 de Agosto, no ritual do «banho ao mar»)

5ª As multidões são de sempre e os consensos também, mas alguém começou, alguém teve a iniciativa, alguma causa desencadeou a reacção e o processo deu-se e sustentou-se. As causas, as origens, os começos, a partir de certa altura da reflexão, deixam de interessar. Em qualquer data de um processo, quando me interrogo: porque continuo a fazer o que se fez até aqui? - a origem está encontrada, os argumentos podem começar a elaborar-se. O argumento da tradição não evita esta interrogação, nem a desculpa, nem a substitui. Antes a requer com mais segura argumentação, ou seja, com actualização de razões.
Na imprensa, no sermão, no roteiro turístico, minguam as actualizações de argumentos. Mantêm-se as lendas, mantêm-se os mistérios, prevalecem os sentimentos e os instintos. Acredita-se e justifica-se: «mal não faz!» No fundo, é este mesmo argumento que nos deveria levar mais longe a própria criatividade, a própria ousadia.

6ª Continuamos tribais, a sobreviver. Mas a acumulação de experiências - o acumulado sonoro, verbal, icónico - teve momentos de criação, de variação, de repetição, de alteração. Baseamos a noção de identidade numa permanência de traços e de registos ou numa similitude dos processos operativos, isto é, reconhecemos a identidade por fazermos as mesmas coisas ou por pensarmos do mesmo modo, por utilizarmos os mesmos instrumentos cognitivos?

7ª Muito recentemente descobrimos a música antiga, a música medieval, reinventámo-la. Até a gravámos e agora reproduzimo-la. Na música, como noutras áreas, procurámos a «emergência» e conseguimos a ressurreição. Não há razão para descrermos. Quando minguam as fontes documentais, crescem os processos da imaginação, os da procura, os da comparação, os da construção etnográfica do próprio conhecimento.

sexta-feira, setembro 21, 2007

Proposições evasivas

(Nesta fotografia estou eu e o Frank Mocklinghoff, uma alemão especialista em registo de som, um produtor musical; estamos a almoçar na barraca do Américo Cachadinha, na romaria de S. Bartolomeu do Mar, no dia 24 de Agosto)

Há pelo menos 25 anos que calcorreio festas e romarias, quase sempre acompanhado de amigos certos, outras vezes com a minha esposa, de vez em quando só. É um divertimento de ofício, o de observar, o de conversar, o de inquirir. Quando comecei, foi atrás dos cantadores ao desafio, persegui-os por quanto era canto e esquina, fotografei-os, gravei-os, entrevistei-os, fiquei amigo de uns tantos, conhecido de alguns, estranho de vários. A par e passo observei outros intérpretes musicais, bandas e grupos folclóricos, coros de igreja, conjuntos e intérpretes. Assisti a desfiles e cortejos, dancei e cantei em raras ocasiões. Por obrigação pessoal fiz-me «romano entre romanos» e comi do que havia e onde o vi. As proposições que a seguir lavro são de risco fácil e em terra brava.

1ª Tudo (festa, cortejo, festival, actuação) se parece fazer segundo a tradição. Neste invocar da tradição tanto se instala um desejo de conservação como de mudança, ao sabor de conveniências da gestão dos eventos e da visibilidade das lideranças. A tradição manda fazer como sempre se fez, o que muitas vezes quer dizer que a tradição manda que se improvise, que se faça como se puder, que se tire partido do que há no lugar e no momento, que se invente como se inventou. A tradição é suficientemente lata para conter a sua própria aparente ultrapassagem, a tradição é um elástico eficaz. Não há nada fora da tradição. Recordo um episódio curioso: um dia, em Santa Marta de Portuzelo, estava eu a visitar uma casa apalaçada com sinais evidentes de muita acumulação de estilos e intervenções artísticas, quando se meteu à conversa o proprietário recente da mesma, um espanhol, que a comprara com a ideia do turismo de habitação e de espaço privilegiado para eventos sociais, casamentos, baptizados, além da intenção de restaurante e bar permanentes ou pelo menos sazonais. A dúvida do homem era saber como é que devia fazer o restauro da casa, que já consultara arquitectos e engenheiros e estava cheio de dúvidas, pois todos achavam que a casa era um produto de fantasias e de rasgos de arte. A conversa fez-se por outras voltas, da música às roupas, da infância à idade actual, das memórias de galegos e de portugueses, de tempos de pobreza e de tempos de ditadura, etc. e tal. A conclusão do homem, naquela atitude óbvia de «eureka» ou «ovo de colombo», ficou registada nestas palavras que reproduzo em galego ou espanhol estropiado se calhar: «Hay que seguir fantasiando!»

2ª O conservadorismo de «tipicidades», muitas vezes «mazelas e deficiências», ou seja, a manutenção de «traços locais» com valor interpretativo de genuinidade, pureza, rigor etnográfico, etc. e tal, é um argumento estafado, mas é ainda um argumento muito manipulado com eficácia. Que a estrada seja má, que as instalações sanitárias não existam, que a luz falhe, que as barracas dos comes e bebes sejam desajeitadas de tudo, que os horários não se cumpram, que os cânticos sejam executados «sabe Deus como», não são argumentos válidos para diminuírem o «casticismo» ou a natureza da festa ou do evento. Este argumento parece-me o mais frágil, ainda que o veja conviver com a argumentação da novidade, da experiência, do «uma vez não são vezes»; é muitas vezes usado por falta de proventos ou verbas, mas prevejo que brevemente seja ultrapassado por um daqueles normativos que mandam renovar, refazer, restituir, restaurar, reequipar, e outros «res» que andam no cerne da tradição.

3ª Em matéria de cortejos ou manifestações etnográficas, pratica-se uma etnografia de exclusão, ou seja, parou-se no tempo, fez-se uma selecção de traços que garantem boas fotografias, cristalizaram-se situações e retratos. O que vale é que há sempre gente a romper por outros lados, a misturar roupas e objectos, há sempre uma «inovação» para experimentar, enfim, o que vale é que anda uma angústia no ar e quando as coisas se fazem com este sentimento cada vez mais forte de serem uma caricatura do que foram, salvam-se pelo cómico, mas denunciam uma carência de abertura de actualização. Por que raio haveremos de ter vergonha de mostrar os nosso últimos 50 ou 60 anos de vida social? Quando as vacas entram na cidade, ressentem-se nos cascos da dureza do empedrado ou do alcatrão, e ainda que deixem a bosteira para os figurantes seguintes pisarem e repisarem, não parecem adaptadas.

4ª Em matéria de danças e cantares, não nos iludamos, a arte é com quem a sabe fazer, não é com quem a arremeda ou cicatriza, qualquer arte. É já tempo de nos convencermos que as danças e os cantares tradicionais não requerem roupas específicas para se exibirem ou praticarem, como é já tempo de esta juventude contemporânea aprender que se quer dançar e cantar tem de aprender como se faz, tem que dar ao canelo. Não falta quem ensine e ensine bem. Os grupos folclóricos devem começar a distinguir muito bem quando precisam de mostrar roupas da tradição e em que contextos ou situações e quando é que precisam de animar uma festa ou organizar um baile popular. Se já nem os padres precisam de estar sempre de cabeção ou de estola e hissope... (a continuar)

sexta-feira, setembro 07, 2007

De então para cá

De então pode ser o mês de Agosto e para cá é o dia de hoje: espero por uma reunião inútil, mas tem de ser assim, reunião porque nos vamos juntar uns quantos com esta função de sermos directores de turma, inútil porque se trata de uma preparação a partir de tudo quanto já se sabe e se fez em anos anteriores, mas tem de ser assim porque quem a marca não tem outra forma de ser e o lugar onde acontece tem de estar marcado por rituais de ocupação. Entretanto escrevo, porque é descompressor da atmosfera.
Escrevo na lembrança de gente que perdi nestes últimos tempos: a D. Mia, a mãe de dois irmãos meus amigos, os Farias, uma senhora que me encheu sempre a alma com aquela franqueza de acolhimento e de comunicação: ela tivera um negócio de taberna e venda e muito bem se especializara em saber encarar os fregueses e em saber adivinhar-lhes as tendências, ela acumulara experiências de trato com todos e eu bem pude saber quanto isso lhe dava vantagem para nos perceber, aos mais novos, para nos atiçar e para nos confrontar com este nosso tempo de abastança e de conforto; dela recebi alguns testemunhos que definiram o meu interesse pelas práticas musicais e coreográficas desta região, dela guardo uma lembrança de ternura e uma preocupação constante pelos meus: estar com ela era estar com todos os que temos e com todos os que somos, era ter a curiosidade de sabermos mais de nós.
Outra perda foi o Teles, meu colega de profissão, homem avantajado em todas as dimensões, no corpo, na amizade, no riso, no trabalho e na saudade; tive com ele alguns momentos decisivos neste ofício de animação cultural e neste ofício do convívio; nunca a palavra lhe foi de cerimónia e nunca o abraço lhe foi de episódio, o seu optimismo era uma força da natureza, era uma água benta de entusiasmo.
E ainda outra perda, a do «meu reitor», o professor Lúcio Craveiro da Silva, com 92 anos cheios de lucidez e de compreensão. Nos idos anos da revolução de Abril, chefiei um «comité revolucionário» de ocupação do seu gabinete de direcção da Faculdade de Filosofia em Braga, para satisfação de longo historial de reivindicação da equiparação e habilitação do curso para a docência, depois sentei-me a seu lado como representanate dos alunos no primeiro conselho directivo alargado daquela faculdade e ainda hoje me lembro com nitidez das suas palavras de recepção àquela fúria invasora do «vimos ocupar-lhe o gabinete»: «sentem-se e vamos conversar» e desarmou-nos com graça, que ele era mais reivindicativo do que nós. Falámos deste e doutros episódios do Verão quente, falámos de quanto me faltou para ser hoje mais orgulhoso de mim próprio, a última vez ali na esquina da Faculdade, depois de um encontro com música na Casa de Monção. O tempo deu-me bem a oportunidade de o ter como mestre.
Entretanto correram as festas e as marés e entre as praias de Maiorca e as de Esposende o vento e o sol proporcionaram-nos bons momentos, a mim, à minha esposa e aos amigos e familiares. Fui a S. Lourenço da Armada, com o Borralheiro e a Helena, festa que me decepcionou, não fui à Senhora do Pranto a Salto, fui a Viana do Castelo às da Sra da Agonia, outra vez com o Borralheiro e a Helena, fui às de S. Bartolomeu do Mar, com o Frank, um amigo alemão que se encontra agora entre nós e que é especialista de som, fui a S. João de Arga, com uma enchente como nunca vi, não fui à Peneda porque não pude. As festas são uma ocasião de curtimento das conversas, valem pelo descanso e pelo reparo naquilo que cuido ser a minha terra e o meu tempo.
O regresso à escola foi uma decepção, pela banalidade dos gestos e das palavras, pela curiosidade de desgaste e pela impressão de suspensão em relação às decisões que podem vir de cima, claro, do Ministério. Salvou-se e salva-se o projecto em que nos metemos para a «rentrée»: a tocata dedicada a S. Martinho de Dume, já com os alunos nos ensaios do canto, com a Ondina Cunha ao piano e a Teresa Couto como intérprete «diva» e eu a teimar no clarinete em dó, e a Céu Lucas a dar volta aos gestos e à encenação. É para o Festival de Mimos de Braga.
Em casa, nos intervalos de tudo, nos momentos de desconforto, corro com os trabalhos do vinho e da vinha, de parceria com o Aurélio de Oliveira, para apresentar no I Congresso Internacional do Vinho Verde. Só falta ensaiar. Por falar em ensaios, retomaram-se os da Associação «Os Sinos da Sé», às quintas, às 21.00 horas.
No dia 25 de Agosto foi o aniversário de minha mãe, 83 anos em situação de imobilidade progressiva, com lucidez de palavra e de memória, mas com muito tempo de silêncio e de olhar. Meu pai está com 80, estivemos lá, em Raiz do Monte, os filhos todos e quase todos os netos. Estamos ainda todos com o barulho da infância.

quarta-feira, agosto 15, 2007

Dias em conta aberta

Estamos em Cavez, Cabeceiras de Basto, ali muito perto de Arosa, na companhia do músico e sacerdote Dr. Joaquim Santos. Estou eu e a minha colega Teresa Couto, está também a irmã do compositor, D. Maria, e mais duas minhas colegas, a Ondina Cunha e a Maria do Céu, esta é que tirou a fotografia. O dia estava quente, tinhamos comido ali no restaurante ao lado, umas couves com feijões, ao gosto da terra e da simpatia das gentes. A conversa girou em torno de uma encomenda musical: uma cantata sobre textos de S. Martinho de Dume para apresentarmos com os alunos da escola Dr. Francisco Sanches no próximo Festival MIMO de Braga, agora em Setembro. A partitura já chegou, depois de umas voltas no correio. A Ondina está a estudar o trabalho que nos vai dar a todos, embora o seu criador tenha afirmado que é de boa execução. Já não é a primeira vez, nem será a última, que peço e pedimos trabalhos de criação musical a Joaquim Santos. Em sua Casa da Casinha, ali perto, em Moimenta, respira-se uma atmosfera de simpatia, de dedicação e de humildade, na sua biblioteca ou escritório ou oficina sente-se um rigor de método, nas suas palavras os problemas são ultrapassados em sons, encomendas atrás de encomendas, em todos os géneros, mas com uma preferência pelas temáticas de expressão filosófica, mergulhada nos assuntos do mundo. Ofereceu-nos discos de obras suas: gostei particularmente do trabalho «Le forme dello spirito», gravado em Roma pela Orquestra Sinfónica Tiberina, na Capela de Santo António dos Portugueses, inserido no disco Concerto dell'Imacolata, IPSAR, 2006.

Na ponte de D. Luís, no Porto, num dia em que fui com minha mulher à sua consulta regular ao Hospital de Santo António. No fim fomos ao Museu Guerra Junqueiro atrás de uma imagem de Nossa Senhora da Uva, para um trabalho próximo sobre o cancioneiro do vinho. A imagem estava lá, é bonita, é sintomática, mas não a pude fotografar. Trouxe os caminhos para a conseguir, tudo pedidos simples e rápidos, vamos a ver. Depois parámos na ponte do eléctrico, para ver as margens e para excitar memórias recentes de um casamento de amor feito ali no Mosteiro do Pilar. Depois entrámos na Igreja de Santa Clara que eu estava muito longe de imaginar que seria o espectáculo de barroco mais extensivo que já vi. Por ali subimos a muralha Fernandina, recordei-me de uma cantiga que Ricardo Jorge enviara para o Cancioneiro de Músicas Populares de César das Neves, ao tempo em que viajava pelo Gerês e tinha como amigo de relações culturais Gonçalo Sampaio e talvez me tenha recordado deste pormenor porque me lembrei também de Maria José Costa, uma amiga que perdemos recentemente. As viagens rápidas fazem-se com memórias de pormenor.
Como é o caso desta cadeira de S. Silvestre, no monte do mesmo nome em Cardielos, nesse dia 25 de Julho em que eu e o meu amigo Rogério Borralheiro lá fomos para saber de modas e de costumes ligados a práticas festivas. Andámos por pedras e mato, arranhámo-nos q.b. e viemos de lá a perorar sobre tudo quanto não fazemos por nós próprios. Valeu o encontro de um amigo meu e colega, o Castilho, natural de Cardielos, homem de todas as influências na freguesia e na festa, generoso no almoço que comemos no Bar da Confraria ou Mesa e sabedor da história da cadeira, ao que se sabe, resultado de uma bengalada de S. Silvestre para acerto de contas ou afirmação de princípios. Que o Borralheiro encontrou descanso para o seu cansaço e eu aproveitei para a circunstância. Foi um dia de riso,até pelo encontro fortuito de dois romeiros curiosos monte acima, ambos dali, ambos cantadores de desafio mas um deles também tocador de concertina, com os dedos a lembrar as melodias e os braços a abrir e a fechar, mas agora no defeso por ter filho que em breve cantará missa, estatuto que não convirá, segundo ele a quem pode sempre ser tomado por abusador, por imitador ou por aprendiz de ofício inadequado a filho padre. No dia seguinte levantei-me a coxear com dores desarticuladas no flanco esquerdo, se calhar por não me ter sentado também naquela cadeira de poder natural.

segunda-feira, julho 30, 2007

Festival Internacional de Folclore de Braga















Foi nos dias 27, 28 e 29 deste mês de Julho, em Braga, e foi o 9º Festival de Folclore com este atributo de Internacional, tendo estado presentes grupos do Chile, do México, da Letónia, da Polónia, da Ucrânia, de Cabo Verde (via comunidade imigrante de Almada) e de Portugal (grupos de Braga, de Cinfães e de Faro). O meu grupo - Associação Cultural e Festiva «Os Sinos da Sé» - que faz parte também da organização, juntamente com a CMB e os grupos Gonçalo Sampaio e Rusga de S. Vicente, actuou no primeiro dia, sexta-feira, à noite, para fechar a primeira passagem dos grupos pelo palco da Avenida Central. Os grupos «estrangeiros» apresentaram «paisagens» coreografadas das suas terras, das suas histórias; os grupos portugueses conservaram-se no retrato dos seus lugares de origem; todos deixaram que falar e que ver: a música e a dança contam as histórias desta relação entre o homem e a natureza, correm o campo semântico que vai dos gestos de criação até aos temores da despedida, projectam para diante uma certa saudade do equilíbrio de outros tempos. As duas fotografias acima não têm nada a ver com este Festival, mas têm tudo a ver com este género de espectáulos, por isso as passo a comentar. A primeira diz respeito à assistência que no dia 22 de Julho esteve em Raiz do Monte a presenciar um festival de folclore; entre a assistência estão a minha mulher e os meus pais, logo nesta primeira fila, do casaquinho cor de rosa para lá, ou seja, o boné azul, o boné beje e o chapéu branco. A segunda diz respeito à paisagem natural ou humanizada na zona de Cavez, com o rio Tâmega como espelho do céu. Se a primeira imagem for um resultado diferido da segunda, ou se a segunda for um provável fundamento da primeira, o meu propósito de escrita já poderá afirmar que em Braga estiveram reminiscências de lugares assim, com mais gente e com mais paisagens de outros rios e de outros céus. Um festival de folclore pressupõe-se como viagem de regresso a uma situação de equilíbrio entre a natureza e o homem, concretiza-se como «contemplação» de um tempo primordial de relações sociais. Ao fim e ao cabo, é assim com qualquer festival, mesmo de rock, mesmo de ópera, mesmo de música electrónica; um grupo actua para outro que assiste, tendo como conteúdos mediadores as músicas ou as cantigas que evocam as paisagens primordiais de equilíbrio e de satisfação plena das necessidades de realização pessoal. Mesmo que seja para fazer ver a que distância nos podemos encontrar dessa ideia de paisagem perfeita ou dessa ideia de natureza primordial. Os recentes espectáculos festivaleiros à volta do Planeta Terra terão mobilizado estes mesmos propósitos, com mais excessso de pertinência observadora e crítica, com mais acentuação das rupturas irreversíveis já provocadas nas paisagens e nas assistências. A minha mãe e meu pai disseram que o festival de Raiz do Monte foi bonito, que as pessoas dos grupos se esforçaram o melhor que souberam, que estas coisas não deveriam acabar, que já se vê pouca juventude nos palcos, que já se vêem muitos velhos a ver. Tirei as fotografias para me lembrar dos lugares e das situações, tirei-as para me entusiasmar por qualquer coisa que elas não mostram, mas que está lá: o nosso amor às terras, aos lugares, às pessoas, o nosso dever de preservação e de continuidade.

terça-feira, julho 24, 2007

Foram estas as flores

Levámo-las todas na mesma cesta e fomo-las deixando uma a uma nas campas dos amigos, dos familiares, dos conhecidos, dos referidos por este e por aquele. Fazemos assim todos os anos, nós, os transmontanos, poucos, em memória de todos aqueles que já morreram. A romagem ao cemitério de Monte de Arcos é uma viagem à volta de nós próprios, repetimos os lugares comuns e fixamos-nos já em pormenores, os mesmos de sempre: o hábito, a escrita, a palavra, o gesto, o sorriso, a hora, o gosto, a marca, o apetite, a teimosia, a figura, a idade. A idade acaba por determinar o nosso envolvimento silencioso, de uns por estarem afastados, de outros por estarem tão próximos, de todos pela imprevisão. Deixámos as flores e a ideia de voltar, por esta necessidade de que estamos melhor a falar dos outros. Os outros que nos deixaram mais teimosos nesta associação de vontades, mais teimosos neste acto de esperar vantagens permanecendo juntos, numa causa, num encontro, numa esquina, numa sala, numa mesa. Foram estas as flores.

terça-feira, julho 10, 2007

Para a balança dos dias escolares

Acabou o ano lectivo de 2006/2007, ontem, simbolicamente, com aquela vigília na Escola Secundária Alberto Sampaio, aqui em Braga, em acto público de reflexão e de protesto pelas decisões burocráticas que afectaram a vida profissional do professor Artur Silva e que se tomaram como aquele cúmulo de procedimentos que ultrapassa os limites da paciência, da dignidade e da honra profissionais. Foi uma vigília contra os desentendimentos, de tempo, de lugares e de pessoas, como se o indivíduo, que deveria ser o maior bem a preservar, fosse o último elo de uma cadeia de consumíveis a soterrar nos aterros da mudança social. Ficará este caso como paradigma dos desentendimentos burocráticos, aqueles que radicam na mais criteriosa interpretação das leis, e que são o espelho visível da nossa fraqueza de bom senso, da nossa covardia e da nossa submissão aos poderes. Mas foi este o clima de crispação ao longo de todo o ano: os poderes centrais (o ME, a DREN, o CAE, a Lei, o Decreto, o Despacho, o Telefone, o E-mail) a quererem reconfigurar o quadro legal do exercício da profissão docente e a quererem provocar um entendimento burocrático unidireccional da mesma e a gente a agitar-se neste norte de vento agreste que se diz «escola a tempo inteiro», que se diz «escola sem graças e chalaças sobre o poder». As anedotas são o que sobra dos desastres de entendimento. Foi um ano de muitas intervenções sobre os professores, para todos os gostos e em todos os géneros, com aquela cereja da autoridade a vir sempre ao de cima, foi um ano de muito poucas reflexões sobre as escolas que temos e de que precisamos, enfim, foi um ano de transição para outro que aí vem, provavelmente mais burocrático ainda, mais verborreico e mais autoritário, provavelmente mais sinistro. A vida também se ergue dos insucessos e das tramóias, dos aterros nascem ervas pujantes e estas vão demonstrando que há na natureza uma capacidade de reequilibrar-se e de renovar-se.
Entretanto há que pôr na balança: as aulas de 90 minutos são cada vez mais pesadas, as áreas não disciplinares são cada vez mais pesadas, a indisciplina é cada vez mais pesada, a falta de oportunidades é cada vez mais pesada, a didáctica dos saberes é cada vez mais pesada, os métodos de avaliação são cada vez mais pesados e a dinâmica relacional nas escolas é cada vez mais pesada, só que este excesso de peso vai, quanto a mim, na direcção das inutilidades. Cresce o peso da burocracia e dos regimentos, cresce o peso dos relatórios, cresce o peso das trocas de informação com os órgãos centrais, mas não cresce o optimismo nem a esperança. Entretanto impõe-se uma escola a tempo inteiro que assenta em contratações de pessoal de outra natureza, entretanto retira-se a liberdade de opção aos pais e encarregados de educação pelos ATLs e pelos Centros de Aprendizagem, entretanto as provas de aferição fingem ser o que não são, entretanto os alunos escapam ao sistema, entretanto as escolas alinham na moda dos currículos alternativos em si mesmas (a água nasce e desagua na mesma fonte), os professores envolvem-se em projectos de cópia e colagem e os passeios continuam a ser a hora mais esperada. Bom, eu também peso menos na balança, ou melhor, peso mais para o lado que não queria. Foi um ano seco.

quinta-feira, julho 05, 2007

Na despedida de mais uma colega

Fio de amor

De bondade e ternura foi o tempo
Que passámos contigo a construir
Este ofício de ver e descobrir
Onde guardam alguns o seu talento.

Foi um fio de contas o alento
Que mostraste nos actos de intuir
E ajudar a crescer, sem destruir,
Outros fios de acção e pensamento.

Cada um tem agora uma saudade
De esperar fazer mais no dia-a-dia,
Com igual intenção e habilidade,

Por aqueles que vivem a alegria
De uma ajuda ou gesto de carinho
P’ra chegarem mais longe no caminho.


(Foto tirada pelo prof. Fernando cardoso /Braga 2007)

segunda-feira, julho 02, 2007

Os dias na escola 4

São de inquietação confrangedora,
Dada a banalidade dos queixumes
E dada a opacidade dos tapumes
Que interrompem o foco a toda a hora.

domingo, junho 24, 2007

A noitada de S. João foi de camiões!

(Fotografia tirada por meu irmão António Machado no dia 23 de Junho de 2007)
Eram as trombetas do apocalipse, mas se não foram, pareceram. A noitada de S. João na cidade de Braga subiu de tom e o inferno das roncas, das sirenes e das bochechas inflamadas de ar ocupou os ouvidos, penetrou até aos tímpanos de uma memória já feita de barulhos mais ténues, mais toleráveis e menos impositivos, embora estes já andassem a cobrir uma memória de noites sossegadas, onde os estampidos eram provisórios e efémeros. Quando os martelinhos se impuseram, logo com eles vieram também os apitos da arbitragem, mas este ano chegaram os claxons de camião, essas sanguessugas da atenção rodoviária. Se a juventude estouvada se quis afirmar e exibir, ontem, na noitada de S. João, teve meios de eficácia absoluta. Fico na dúvida que tais roncos sejam apelativos da sedução, mas hoje nada se sabe de seguro sobre o terreno dos instintos. Aquelas sirenes de camião em trovoada, movidas pelo sopro pulmonar, poupando assim no ar comprimido das botijas, trouxeram o desassossego da noite. Já de tarde me encontrara com o Dr. Meneses e ele me dissera que ia a caminho da casa, a fugir da barulheira dos bombos, sobre os quais afirmava o aumento exponencial de barulho e de impacto em relação aos Zés Pereiras da sua juventude, e eu estivera ali a temperar a sua intolerância para com este exibicionismo contemporâneo, mal intuindo o que me esperava nessa mesma noite. Também vim de malas para casa, muito mais cedo do que pensara, muito mais intolerante que o Dr. Meneses. Arre!

quarta-feira, junho 13, 2007

Cantemos o S. João

Vamos atrever-nos a editar um disco com temas de origem popular e tradicional e com temas de autor. O atrevimento foi até o de sermos também autores de arranjos e de melodias, que de poéticas já o éramos, para compositores como António da Costa Gomes e Joaquim dos Santos. Mas não é o trabalho pessoal que está em causa, mas sim a dinâmica de um grupo que se revê neste símbolo esquemático, feito há anos pelo António Precioso e agora retocado na nomeada. Os temas são 12: 3 polifonias da tradição rural, a três e quatro vozes, no sistema de harmonização em fabordão, com vozes sobrepostas, simétricas quase na totalidade, mas com pormenores de desencontro ou de fim; 4 polifonias de autor, três de Joaquim Santos e uma de A. Costa Gomes, duas delas com acompanhamento instrumental, ouvindo-se numa a gaita de foles, num fraseado de volteios simples; 5 temas corais e instrumentais, com dois inéditos de raiz, um romance e uma cantiga narrativa. Tudo sobre o São João, figura icónica na cultura ocidental pela leitura utópica de esperança na renovação. Oxalá agrade, pese embora alguma insuficiência assumida.

Professor titular de coisa qual?

Fotografia de Miguel Louro, da série «A Luz Viva da Morte», que uso aqui como metáfora de uma ideia de desfragmentação.
Está a resultar muito claro que este concurso para professores titulares se vai representar no futuro próximo como um momento de ajuste de contas. Tudo nele se configura para esta ideia do acerto de contas, umas recalcadas, outras mantidas em lume aceso, outras ainda mal apagadas, outras sempre espevitadas pelos ventos da língua. Mas que contas? As pessoais e as institucionais. No que toca às pessoais, cada um diz o que quer, mas agora diz mais porque a conjuntura assim o requer: agora é preciso falar sobre os colegas, agora é preciso referir quem fez o quê e quando e como, agora requer-se que se fale de tudo, sobretudo do que não sendo objectivo mais se presta para concretizar. Corre pela escola uma algaraviada sintonizada na crítica desabrida ao estilo e à personalidade de cada um: pelo que me toca, já ouvi de tudo, mas ainda mais terei de ouvir enquanto a procissão andar às voltas: que eu fui intratável, que eu fiz e aconteci, que eu não liguei a este nem àquele, que eu só me ocupei de cargos com visibilidade, que eu sou um daqueles para quem o concurso se fez por encomenda. Não discuto nem contesto, estas críticas e muitas outras são a minha vida e têm sido o meu sustento de feitio e de trabalho, e ainda hei-de ouvir muitas mais, senão morro de tédio e de falta de assunto. O nervo espicaçado rejuvenesce o tecido. No que toca às críticas institucionais, a coisa já pia mais fino. Este concurso é um revelador de quê? De um tipo de escola em que nos envolvemos em todo o tipo de trabalhos que agora não aparecem nos critérios de promoção e de contabilidade de pontos, que nos gastámos em actividades que agora não são minimamente valorizadas nem sequer referidas, que andámos a trabalhar para nada. Pois esta crua realidade é que nos está a pôr ao rubro, afinal este concurso só pontua cargos e mais cargos, não pontua desempenhos ou estilos de docência, não pontua dedicações nem preenchimento de papéis. É esta a realidade que nos põe a disparatar contra tudo e contra todos, mas é esta a realidade. Não julguem que os meus pontos resultam das aulas que dei ou das fichas que concebi para os alunos, ou das cantigas que lhes criei, ou das cenas e dos passeios que com eles desenvolvi, ou das horas que gastei em apoio lectivo ou em dedicação à escola, ou das histórias que lhes contei, ou das acções de formação em que participei quer como líder, quer como cliente. Os meus pontos para professor titular resultam da aplicação de uns critérios objectivos aplicados aos meus últimos sete anos de profissão docente. Este concurso é dilemático na sua essência e demoníaco nos seus propósitos: daqui para a frente, eu deverei continuar atento às actividades que derem pontos para a progressão na carreira ou deverei continuar disponível para todo o tipo de dedicações à escola e aos alunos? Daqui para a frente eu ocuparei cargos para exercer uma função pedagógica ou ocuparei cargos para obter os pontos necessários à futura progressão? Eu vou só dar dois ou três exemplos de dedicação docente que neste concurso não servem para nada: o caso primeiro pode ser o de um programa de rádio escolar: quem o faz e quem o sustenta não ganha nada com ele; mas a seguir posso indicar a paciência ilimitada dos colegas que gerem toda a informática da escola: não há qualquer ponto para o que fizeram; depois posso invocar os meus colegas e amigos, e eu próprio, contadores de histórias que servem todo o tipo de encomendas: pois que se contentem em contentar histórias ponto a ponto e até os podem aumentar que eles nunca aparecerão no concurso. A feira ainda não desarmou e está longe de esgotar os estoques da boa língua. Mas que este pode ser um bom ponto de partida para uma interrogação há muito desejada, pode: o que é que andamos a fazer que se veja e tenha sabor e cheiro e preço e gasto e não seja só um discurso de pedagogia verbal?

quinta-feira, maio 24, 2007

Em memória da Maria José Costa

Eu levarei comigo as tuas cinzas,
Lançá-las-ei em terra de palavras,
Serão flores discretas muito lindas,
Hão-de colher-se em vozes partilhadas.

segunda-feira, maio 21, 2007

Um casamento, uma comunhão e um baptizado

(Estas duas fotos foram tiradas por meu irmão António Machado; na da esquerda a mãe segura o afilhado e a madrinha limpa-lhe a cabecinha; na da direita o padrinho segura a vela e a mãe tem o menino ao colo) O Padre Orlando, da Cedofeita, Porto, presidiu e fez o baptizado: foi humanamente perspicaz e apelativo.
No dia 19 de Maio estive num casamento muito singular, o da filha de um amigo, filha essa que exerce a sua profissão numa instituição a que me ligam laços de solidariedade educativa, não obstante os reparos que tenho distribuído para que essa instituição seja mais eficiente em termos de recursos e de competências demonstrativas. Este casamento, que se estendeu pela tarde e pela noite, foi continuado no domingo por uma primeira comunhão e por um baptizado, ambos no Porto, de manhã, ambos de dois irmãos e meus sobrinhos, da parte de um irmão meu. Fomos os padrinhos, eu e minha esposa, completando assim uma ligação mais intima em termos das nossas duas famílias, posto que já éramos padrinhos do lado da família de minha esposa e agora ficamos a sê-lo do lado da minha, para além de o sermos do lado de outras, as de amigos. Nós não fomos felizes em termos de sucessão e isso agora até vem ao caso, porque se relaciona tudo e a nossa cabeça é o nosso mundo e o nosso mundo são as nossas realizações e frustrações, estas maiores que aquelas, porque somos de muito sonho e de menor concretização deles. Todavia sonhámos e tivemos duas meninas gémeas que não vingaram naqueles poucos dias de presença na maternidade do Hospital de S. Marcos. Então toda a escuridão do mundo foi abafada por uma esperança sem limites de nova oportunidade e próxima, mas não quis a fortuna nem a vida que fosse como sonhávamos e hoje estamos entregues a todo o amor aos outros que nos são próximos e relativos. Não deve um homem falar destas coisas num blogue destes, bem sei, mas as palavras fugiram-me e eu fui atrás delas só para evitar que se espaventassem em exagero com este lugarejo de fama que o blogue lhes é. Mas era aos minutos da fama que eu queria chegar e cheguei. A noiva e o afilhado e o batizando foram apenas um enxerto de imaginário, mas o essencial vem a seguir. Casamentos e comunhões e baptizados são ritos de passagem, mudanças de estado, entradas para novos estatutos da pessoa. De muitas e variadas formas se celebram, mas o seu essencial é todo feito dessa massa humana que se chama imaginário e esperança no novo, aspiração superior de mudança, desejo de outra plenitude, na comunidade, na família, na relação a dois, na vida pessoal. Vem-me à memória o choro colectivo que se desencadeou na igreja da minha freguesia nesse dia em que a comunhão solene do meu grupo de catequese nos obrigou a um compromisso colectivo de sermos melhores meninos, melhores cristãos e melhores cidadãos dali para a frente: foi a derrocada da contenção de lágrimas, desatou tudo a fungar e a soluçar que foi uma carrada de frescura. Depois as fotografias e a boda compensaram-nos. Mas onde eu quero chegar é à escola e à televisão, onde num dia destes apareceu, fulgurante e arrasador, um professor de Harvard a declarar-se portador de um novo método de ensino e de aprendizagem, desinibindo-se cruamente diante das câmaras a expor o seu caos de docência, que consistia precisamente em desafiar os alunos, expondo-lhes um problema a resolver e deixando-os depois em tal discussão que se convencessem uns aos outros do que sabiam e do que era preciso saber para descobrir as soluções do problema. Que os alunos se convençam uns aos outros com as suas explicações e os seus raciocínios, com os seus argumentos e as suas crenças, que sejam eles próprios a mobilizar os recursos informativos e documentais para encontrar as soluções. A cada passo aparecem estes minutos de fama e de visibilidade a lembrar-nos que anda alguém atrás da pólvora, que anda alguém a experimentar soluções. Já na minha formação profissional houve disto tudo; desde o trabalho cooperativo, desde a dinâmica de grupos, desde a sala em redondo e em quadrado, desde os quadros interactivos, desde a pesquisa em laboratório, desde a exposição pura e simples, desde o faça você mesmo, desde o experimente e torne a experimentar. A gente anda sempre a baptizar-se em pedagogias e a gente anda sempre a comungar novas possibilidades de alimentação desta cadeia de relações pessoais que é o ensino, que é a aprendizagem. A gente anda sempre a casar-se com gurus da última moda, ou seja, da última lapalissada. Tudo serve, tudo está bem, tudo enriquece a gente. A novidade é precisamente esta: a de uma pessoa fazer dos seus momentos de vida ritos de passagem para algo melhor e de superior realização. A gente até parece que não corre risco nenhum em optar pelo caos ou pela directividade plena da exposição pura e simples, a gente quando não estiver bem muda-se, volta a experimentar. Uma noiva quer casar-se para sempre e catequisando quer comungar a eternidade e o baptizando quer entrar no reino de Deus. É este programa de futuro que merece as modas pedagógicas, não são estas que precisam daqueles momentos para se revelarem como provisórias e efémeras. Os métodos variados devem estar ao serviço dos princípios. Mas não foi disto que falei à noiva, nem aos meus dois sobrinhos do Porto.