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domingo, outubro 29, 2006

A Luz Viva da Morte: livro e exposição

O livro: A Luz Viva da Morte, de Maria da Conceição Azevedo, com fotografias de Miguel Louro.

Local: Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, Largo Paulo Orósio, Braga.

Dia 31 de Outubro, 21.30 Horas, com a presença dos Professores Doutores Carvalho Guerra e Cassiano Reimão

Tomando a fotografia como linguagem da referência, mas explorando o ludismo da criação e da exposição, Miguel Louro aceitou, e bem, «ilustrar» um livro singular – A Luz Viva da Morte – dedicado à interpretação antropológica dessa realidade última que se inscreve nas nossas vidas, seja como limite, seja como passagem: a morte.

Ou não fosse a fotografia, em si, uma fixação mortal, e mortífera, das mais vivas e cruas realidades ou dos mais vividos e díspares momentos de ser. Aquilo que a fotografia é, é a morte de um instante de vida, uma interrupção do fluxo temporal, uma posse de corpo sem alma, a memória do simulacro, a construção do mausoléu.

Mas não fosse também a fotografia um produto da vida, portanto, uma técnica extensiva do corpo, para a considerarmos, na sua deriva de simulações, a mais contrastiva oposição à morte, ou seja, trazendo todos os recalcamentos para a superfície, a mais atrevida manifestação do erotismo criador.

Fiquemos, então, com este velho compromisso entre o eros e o tanatos, redimindo naquele adjectivo, não a idade da técnica (os 160 anos da fotografia), mas a idade das forças que equilibram os sistemas vitais (a velhíssima idade da luz, a velhíssima idade do desejo).

O livro de Maria da Conceição Azevedo, A Luz Viva da Morte, é o resultado de uma apurada tese de doutoramento sobre a educação da vida, a paideia do ser humano, no pressuposto de que é possível e desejável falar em valores culminantes – «os valores que determinam as escolhas fundamentais da existência e são condição da possibilidade de realização de todos os outros valores» (Obra citada). O livro transporta-nos pelo interior da educação que o homem faz para sua própria realização pessoal, iluminando demoradamente, em várias isotopias da interpretação religiosa, as relações, os modos e os estilos, que a morte tem imposto ao ser humano e outros tantos que este vai inventando para a superar, ou não fosse esta a utopia a perseguir.

O caminho encontrado por Miguel Louro foi um regresso a si mesmo, aos seus traumatismos físicos e psicológicos de um passado recente, usando agora a máquina e a técnica como meios reveladores desse estado comatoso e letárgico a que fora sujeito há 15 anos, por motivo de acidente automóvel. Já na exposição retrospectiva dos seus 25 anos, Miguel Louro ensaiara esta deriva imaginária, naquele espaço esventrado que fora a Sala Nobre do velho Tribunal de Braga: expusera, então, um conjunto de fotografias «anómalas», se relacionadas com as outras, mas produzidas com uma intencionalidade de abstracção se vistas em função da problemática da morte: eram fotografias com excesso de movimento e carência de precisão referencial, expressões da emoção, marcas de actos falhados, vestígios de palavras censuradas, corpos apagados, estados subvertidos, luzes residuais – a violentação da foto: a normalidade do enquadramento para a anormalidade do conteúdo – tudo coincidindo num espaço em que o descalabro das superfícies prenunciava o abismo das profundidades, num lugar que desencadeara a cólera e em que o fotógrafo estivera dos dois lados, ora como réu, ora como perito.

As fotografias ocorrem nas páginas deste livro como ancoradouros subtis da leitura, como margens fugidias da viagem, como tempos de repouso do olhar, como marcadores da abstracção. O poder catalítico da fotografia acaba por ser outra forma de ilustração, outra subtileza do seu poder de sedução.

Diz-se que a falta de luz gera o preto, que o excesso de luz gera o branco, que os excessos de branco e de preto cegam, impedem de ver, que sem ver se morre, que ver é precisamente viver, ou seja, que viver é graduar, equilibrar, a escala de luz entre o preto e o branco, progredindo ou regredindo na nitidez de definição dos contornos, progredindo ou regredindo na visão esclarecida dos conteúdos, progredindo ou regredindo na construção do próprio acto de ver. Não deixa de ser sintomático que numa escala de gradação da luz o fotógrafo confira aos vocábulos preto, branco e cinzento a função de marcadores referenciais, atribuindo-lhes mesmo uma função temática, conteudística, narrativa e poética: o campo da foto é povoado pelos seres, o preto, o branco, o cinzento, e estes seres jogam os seus papéis na história: eles agem no sentido de nos darem a percepção de fundo do túnel, eles remetem-nos para um imaginário de velocidade, eles orientam-nos para um horizonte de eternidade. Parafraseando Fernando Pessoa, este acumular de fotos de Miguel Louro vai no sentido de vermos para lá de nós, em busca dessa coisa linda que está sempre para lá de outra coisa linda, e essa coisa é que é linda.


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